quinta-feira, 20 de junho de 2002

Mata, mas não estripa



"Estupra, mas não mata!" Tempos atrás, essas palavras de Paulo Maluf foram objeto de zombaria. Era fácil interpretá-las como coisa de machista, para quem o estupro não seria grande coisa.

Mas é claro que a idéia de Maluf não era essa. Simplesmente ele pedia que os criminosos se limitassem ao estrito necessário. Ou seja, ele os exortava a serem racionais: "Você gosta de estuprar? Então, contente-se em estuprar. Para seu crime, matar a vítima é desnecessário, sem utilidade. Matar não é o que você quer e, se a coisa azedar, agravará sua pena".

Por razões análogas, hoje, dá vontade de pedir: "Mata, mas não estupra", ou melhor, "mata, mas não estripa". É o inverso das palavras de Maluf só em aparência, pois as duas frases nascem do mesmo estranhamento.

Elias Maluco e seus homens quiseram eliminar Tim Lopes porque o repórter tinha exposto os negócios do narcotráfico numa reportagem. A decisão de vingar-se e de impedir que o repórter continuasse suas investigações corresponde a um cálculo racional dos traficantes: "Calem esse cara". Mas por que ele foi espancado, torturado, mutilado? O requinte de horror seria de alguma utilidade para o narcotráfico? Ao contrário, a crueldade dos assassinos produziu um zelo policial que atrapalha o tráfico mais do que atrapalhariam as reportagens de Tim Lopes. Em suma, a eliminação do repórter poderia responder a um interesse do crime organizado. Mas isso não vale para o requinte.

A crueldade é uma fraqueza do criminoso, um momento em que ele não consegue se conformar com os interesses de seu próprio empreendimento: seu gozo passa à frente das necessidades do crime. É o estuprador que mata, arriscando-se a pegar mais cadeia do que deveria. É Elias Maluco, que aproveita uma execução para torturar e, com isso, mobiliza como nunca a opinião pública e as polícias contra seus negócios.

Seria cômodo atribuir esses excessos a um traço psicológico dos criminosos. Justamente, Elias não é chamado de maluco?

Ora, a criminalidade nacional é quase sempre gratuitamente cruenta. Ela não é regida pelo cálculo entre o que o crime pode render, o risco de ser preso e a importância da punição. Em vez de perseguir o lucro máximo e o risco mínimo, nossos criminosos perdem-se nos meandros da violência desnecessária. Como já foi observado muitas vezes, em regra, muitos preferem roubar a furtar, e não é por incompetência. Eles sabem se apoderar de um carro estacionado ou arrombar a porta de uma casa vazia, mas preferem encarar os donos: não renunciam ao "prazer" de arrebentar um corpo ou, no mínimo, de impor uma ameaça física. A escolha do sequestro como forma privilegiada de assalto confirma essa regra.

De onde vem essa propensão a deixar que a vontade de gozar passe à frente das exigências racionais do empreendimento? O exemplo vem de cima. As classes privilegiadas nacionais adotaram, obviamente, o exercício moderno do poder: contratual, mercantil, limitado e, sobretudo, rentável. Mas há um modelo atávico que resistiu à modernização. Ele aparece com o grande número de trabalhadores cuja função não responde à racionalidade produtiva moderna. Sua tarefa é assistir à vida cotidiana dos privilegiados. São manobristas para que nos esquivemos do esforço de estacionar, office-boys para que evitemos as filas de banco, personal trainers cotidianos para que dispensemos o esforço de ler uma tabela de exercícios, babás para mães que não trabalham, passadeiras, faxineiras e por aí vai.

Esse exército de serviçais é um arcaísmo, uma brecha na racionalidade produtiva. Ele não corresponde a nenhum imperativo do projeto moderno. Sua única necessidade está no prazer proporcionado aos privilegiados.

Cuidado: não acredito nem um pouco que Elias Maluco ou Fernandinho Beira-Mar estejam vingando os serviçais das classes privilegiadas. Essa idéia talvez seja do gosto do Comando Vermelho, mas é uma idiotice. A relação entre o gozo dos criminosos irracionalmente cruentos e o gozo dos privilegiados irracionalmente mimados por um exército de serviçais é outra.

Acontece que, com a modernidade, os desfavorecidos ganham o direito (e, infelizmente, o dever) de invejar. Quando olham para a classe dominante, a imagem que surge não é a de Antônio Ermírio passando suas manhãs na Beneficência Portuguesa, assim como não é a imagem corajosa do empreendedor. Essas figuras talvez prevaleçam numericamente. Mas, para o olhar da inveja, o que define as elites é a forma mais sensível de seu privilégio. No caso, é o gozo que se destaca por passar à frente da racionalidade produtiva, o gozo que reside em dispor de um exército de serviçais -resto dos prazeres da escravatura.

Talvez os criminosos cruentos realizem, de um jeito sangrento e caricatural, um ideal nostálgico das elites. Talvez, deixando seu gozo interferir na racionalidade dos empreendimentos criminosos, eles estejam apenas imitando as elites invejadas.

Mas esse é apenas um aspecto do que faz o requinte da crueldade criminosa. Voltarei ao assunto.

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