quinta-feira, 8 de agosto de 2002
Crise do mercado ou crise do sujeito?
Muitos dizem que a crise de Wall Street em 2001 e 2002 é um efeito da ganância. A Bolsa estaria caindo porque a conduta dos dirigentes de várias empresas (Enron, Worldcom, Tyco etc.) feriu a confiança do investidor. Se for assim, a dificuldade será resolvida logo: os desonestos irão para a cadeia, as auditorias futuras serão de verdade, e a classe média reinvestirá suas economias. Tudo voltará a ser como antes.
Minha previsão é um pouco diferente.
Desde o início do século 19, deixamos de calcular o valor social de cada um com base no lugar, na classe e na família em que nasceu. Para definir o valor de uma pessoa, suas riquezas começaram a contar mais que sua origem. Passamos de uma época que venerava o "ser" (nobre, burguês ou escravo) para uma época que venerava o "ter". A mudança foi democrática: afinal, era difícil escapar do destino que nos reservavam as diferenças de nascença (só à força de casamentos), mas, no breve espaço de uma vida, por ventura ou pelo trabalho, um indivíduo podia transformar seu status, se esse dependesse apenas de sua riqueza.
Uma sociedade organizada pelas diferenças de posses e bens não é necessariamente espalhafatosa. "Eu sou mais rico, mas me visto, moro e vou para a igreja como você, que trabalha em minha fábrica." O capitalismo começou desse jeito: com uma moral calvinista, sem simpatia por pompas e luxos. Não podia durar assim: para produzir mais bens e riquezas (e, portanto, um pouco de bem-estar para todos), era preciso crescer. E, se os abastados não consumirem de uma maneira vistosamente diferente, quem absorverá os frutos do trabalho? No fim do século 19, as riquezas tornaram-se conspícuas: diferenças de consumo, e não só de carteira.
Essa nova ostentação era o primórdio de uma mudança da subjetividade que seria exigida poucas décadas mais tarde, quando a época do "ter" entrou em crise, em 1929. Até então, numa exuberância parecida com a nossa nos anos 90, acreditava-se numa expansão ilimitada. Os ricos se tornariam mais ricos e mais numerosos. Graças a isso, todos trabalharíamos e produziríamos cada vez mais. Mas a coisa encalhou.
O esbanjamento dos endinheirados não era suficiente para motivar a máquina produtiva. A saída da crise, depois da imediata intervenção dos governos e da guerra, veio por uma transformação que se impôs nos anos 60 e deu seus frutos nos anos 80 e 90.
Dessa vez, passamos de uma sociedade organizada pelas diferenças de bens e posses para uma sociedade comandada pela aparência. Não se trata mais da necessidade de o rico mostrar sua riqueza. Parecer rico torna-se mais importante do que ser rico. Vale mais um pobretão chique do que um ricaço maltrapilho. Essa nova hierarquia, fundada nos sinais exteriores de "invejabilidade" mais do que de riqueza, abre possibilidades insuspeitadas de consumo e de crescimento. Pois, de repente, os pobres são instigados a consumir tão conspicuamente quanto os ricos. Por um instante, qualquer um de nós pode parecer-se com os ricos, usando um sabonete de R$ 10. Vale a pena comprar uma bolsa que nos custa uma semana de trabalho. É normal gastar em estilo mais do que em aluguel e comida.
Para a subjetividade da época do parecer, não devemos o que somos nem ao berço nem às posses, mas ao olhar dos outros. Outro avanço democrático, não é? A calça certa, um lenço, um corpo malhado ou siliconado permitem o acesso ao clube dos que parecem privilegiados, que é o que importa.
Estávamos nessa "festa" desde os anos 80. Aconteceu o previsível: a subjetividade dominante impôs seu feitio à sociedade inteira, inclusive à economia. Na época do "ter" (conspícuo ou não), valiam as empresas que produziam, acumulavam e trocavam riquezas reais. Na época do parecer, a economia também preferiu o parecer: valiam as empresas que "pareciam" ricas, ou seja, que produziam sobretudo sua própria imagem. Ser "cool" tornou-se uma estratégia empresarial. "O pessoal aqui trabalha de calça de brim, tem academia no escritório, e toma-se chá orgânico à vontade. Somos "cool", e isso prova o valor de nossa empresa, mesmo que a gente só perca dinheiro." Obviamente, num mundo em que parecer é mais importante do que ser, as ações da empresa fazem parte da fachada. Valorizá-las (mesmo por um embuste contábil) é mais importante do que aumentar a produtividade ou equilibrar balanços.
Essa bolha estourou. Talvez estoure também o tipo de subjetividade que foi a alma da bolha. Assim como 1929 anunciou o fim da época do "ter", 2001 e 2002 anunciariam o fim da época do "parecer".
Nesse caso, poderíamos esperar que a crise de hoje prometesse figuras novas da subjetividade. Em vez do yuppie de Wall Street, os jovens que se engajam no Peace Corps. Em vez dos elegantes e dos malhadíssimos que povoam nossos shopping centers, membros de ONGs. Depois da subjetividade do "ser", do "ter" e do "parecer", quem sabe, seja a hora de uma subjetividade do fazer e do fazer, se possível, as coisas certas.
Mas, provavelmente, estou sonhando.
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