Na terça-feira, 4 de junho, em Nova York, estive no jantar de primavera da Sociedade das Américas. Paul Volcker, duas vezes presidente do Fed (o banco central dos EUA) entre 1979 e 1987, apresentou um quadro atual da economia americana.
Os números recentes indicam uma saída da crise: melhora a confiança do consumidor e aparecem novos empregos. Mas a Bolsa de Valores permanece em baixa. É que ninguém acredita mais na contabilidade das empresas. Os escândalos sucedem-se desde o desastre da Enron, e os investidores, assustados, parecem redescobrir o charme das moedas guardadas debaixo do colchão.
Sobretudo nas últimas décadas do século 20, o americano de classe média (mesmo baixa) foi instigado a comprar ações para multiplicar as reservas destinadas à sua aposentadoria. A fim de encorajá-lo, o capitalismo americano, disse Volcker, promoveu rigorosas auditorias de contas: o investidor seria sempre informado sobre o estado das empresas nas quais decidiria apostar. A mágica funcionou: nas últimas décadas, não só o consumo mas também a poupança contribuiu para o crescimento econômico.
Na visão de Volcker, a atual crise de confiança seria motivada pela conduta duvidosa de alguns (ou de muitos) dirigentes. Com uma boa reforma do sistema de auditoria, o investidor recuperará seu bom humor e tudo continuará como antes.
Por que tantos dirigentes seriam tentados, de repente, pela malandragem? Uma explicação banal acusa o tipo de remuneração que veio a ser dominante: além de pagarem um salário, muitas empresas prometem vender a seus dirigentes uma quantia de ações, numa data futura, ao preço de hoje (ou de ontem). Graças a essa opção de compra, o dirigente terá um lucro proporcional ao aumento do valor das ações da companhia durante sua gestão. Há um risco: os dirigentes podem ser motivados a inventar falcatruas para inflar artificialmente o valor das ações da companhia. Antes que a verdade apareça, eles embolsam seus lucros -e os pequenos investidores que se ralem. Talvez fosse prudente voltar às maneiras tradicionais de retribuir.
De qualquer forma, não acredito que a origem da crise de hoje seja a epidemia de dirigentes pilantras. E duvido de que a falta de confiança do investidor seja um acidente transitório.
No 10 de maio passado, morreu um grandíssimo sociólogo americano: David Riesman, autor de "A Multidão Solitária" (1950) -uma obra ainda profética.
Riesman descrevia três tempos de nossa cultura: 1) um passado, em que a vida era regrada por tradições e costumes instituídos, 2) a modernidade, animada pelo projeto interior do indivíduo, sua vontade de mudar a si próprio e ao mundo, 3) os dias de hoje, em que (pressentimento milagroso) não somos definidos pela tradição ou pela certeza de nossos projetos: o critério que nos orienta é o que os outros pensam de nós. Somos sociais como nunca, pois só existimos na (e pela) multidão. Somos solitários como nunca, pois, na hora de dialogar, é difícil encontrar sujeitos que sejam gente: esbarramos nos reflexos das identidades que a multidão reconhece e festeja.
Riesman constatou, por exemplo, que, na formação dos jovens, o grupo de pares (que aprova ou desaprova) se tornava tão importante quanto a hierarquia familiar. Numa época ainda sem televisão, ele previu que, nas escolhas políticas, triunfaria o marketing: não votaríamos para defender uma idéia, mas em quem nos seduzisse (ou, eu preferiria, em quem nos parecesse suscetível de ser seduzido por nós). Nesse mundo, o valor das mercadorias é cada vez menos decidido pelo custo ou pelo valor de uso: as mercadorias valem pela aprovação que encontram na opinião da multidão.
Por que teria sido diferente quando se tratou de convencer o cidadão contemporâneo a investir sua poupança em ações? O valor intrínseco das empresas (critério dos investidores do passado) cedeu o passo ao mesmo tipo de argumentos que influenciam o consumidor.
Em particular nos anos 90, a propaganda americana passou a incentivar subliminarmente não só o consumo mas também o investimento. Tomar café Starbucks deve ser melhor ainda para quem é acionista da Starbucks. E a Microsoft: você quer ser apenas usuário ou fazer parte do mito? Muitos pequenos investidores compraram ações para se aproximarem de empreendimentos ou de mercadorias aprovados pela opinião da multidão.
Ao mesmo tempo, a valorização abstrata das ações tornou-se a missão prioritária dos dirigentes (em vez dos fundamentos: produtividade, crescimento etc.) simplesmente porque essa valorização atrairia investidores cada vez mais tratados como fregueses.
Um belo dia, o divórcio entre o valor fictício produzido pelo poder de sedução de uma marca e o valor efetivo da empresa acabou assustando muitos.
A crise, na verdade, era previsível desde que o cidadão comum foi chamado a fazer-se de investidor. Para que não desse em desastre, teria sido necessário dispor de cidadãos que não se definissem como consumidores -ou seja, que não fossem solitários na multidão.
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