Três semanas atrás, Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA, visitou Cuba. Fidel Castro deixou que ele se endereçasse aos cubanos em espanhol e ao vivo, sem censura. Carter criticou o regime castrista pelo desrespeito aos diretos fundamentais. Fidel aplaudiu e, numa espécie de réplica, enumerou as conquistas sociais da Revolução Cubana.
Essa contraposição sem diálogo jogou-me de volta à minha adolescência, nos anos 60, na Itália. Bastava esticar as pernas além da Cortina de Ferro (ao alcance de um carro de estudante) para verificar o horror totalitário do socialismo real. Por outro lado, o "milagre" capitalista do pós-guerra italiano não tratava cada cidadão com a mesma generosidade -longe disso. Embora ambas essas verdades fossem óbvias para todos, entre direita e esquerda só havia um diálogo de surdos, como entre Carter e Castro.
Os liberais diziam: "Nos países socialistas, falta qualquer liberdade". No bate-boca, a esquerda respondia: "A liberdade da qual vocês estão falando é a liberdade de morrer de fome e de não ter emprego".
De um lado, um apelo aos direitos e às liberdades fundamentais; do outro, a proclamação de um sistema justo e participativo. Como entre essas posições não havia mediação, era lógico supor que elas se excluíssem reciprocamente. Os liberais, para proteger as liberdades, deixariam as crianças pobres morrerem de fome. Os comunistas aceitariam a existência do gulag à condição de que houvesse leite, sopa e pão na mesa de todos. Parecia valer um axioma pelo qual não haveria liberdade sem injustiça e não haveria justiça sem sacrificar as liberdades.
Como entender essa idiotice que atravessa o debate político desde o pós-guerra até o encontro cubano de Castro e Carter?
Em época de eleições, as obras de Michael Oakeshott (filósofo inglês, morto em 1990) deveriam ser leitura obrigatória, começando com "O Racionalismo na Política", de 1947. Oakeshott é um conservador: suas obras são disponíveis a preço camarada no "Liberty Fund", que é o equivalente liberal das antigas edições de Moscou. De fato, ele é conservador por ser crítico das armadilhas da razão moderna (aparte para os filósofos: Oakeshott é mais lúcido que Isaiah Berlin, porque sua desconfiança da razão não o leva a se entusiasmar bestamente com a tradição romântica e irracionalista).
A idéia central de "O Racionalismo na Política" é a seguinte: desde o começo da modernidade, a autoridade do costume estabelecido e da tradição deixa de orientar a vida política. Essa tarefa é entregue à nossa razão. Ótimo, mas a razão tende a ser abstrata: ela é capaz de pensar planos e de instituir princípios. Também ela sabe inventar técnicas para dobrar o mundo na direção que lhe parece certa. Mas ela não sabe nem quer lidar com a complexidade da vida concreta.
Para Oakeshott, tanto a afirmação dos direitos humanos feita por Carter quanto o plano de justiça social promovido por Castro seriam exemplos de puras abstrações racionalistas. A vida concreta é feita, por exemplo, de liberdades que devem ser desrespeitadas porque ferem a moral comum ou porque seriam fatais para a coesão da comunidade. A vida concreta é também feita de injustiças inevitáveis, pois repugna à modernidade uma excessiva igualdade entre indivíduos, e não há luta possível contra os privilégios tradicionais sem incentivar os méritos e as competências. Enfim, na vida concreta, uma justiça social sem liberdade não vale nada. Como não vale nada a liberdade sem justiça.
Em suma, o discurso político, entregue à razão, torna-se abstrato e, por isso, ineficaz. Corolário trágico: quanto mais o debate politico é tomado por retóricas abstratas, tanto mais a política concreta acaba nas mãos dos canalhas.
Com um pouco de sorte, retrospectivamente, o século 20 aparecerá como o século que serviu para inspirar desconfiança nos radicalismos, por eles serem sempre racionalistas, abstratos e, portanto, incapazes de propor algo que preste para a vida concreta.
Em maio de 68, nos muros de Paris, apareceu uma frase arrebatadora, que me seduziu: "Seja realista, peça o impossível". Ora, pensando bem, pedir o impossível é o que sempre faz o racionalismo em política: é fácil e não serve para nada.
Pierre Barouh, um amigo, músico, poeta e tradutor de Vinicius para o francês, escolheu, como lema, uma correção da frase de maio de 68. A "seja realista, peça o impossível", ele preferiu: "Seja utopista, peça o possível".
Isso aconteceu antes que o governo FHC promovesse a "utopia do possível". Clovis Rossi, na Folha de terça-feira, critica essa expressão, que lhe parece elogiar uma mediocridade resignada. Entendo esse risco, mas o outro risco, para o qual alerta Oakeshott, é que, à força de pedir o impossível, o possível nunca aconteça. Nisso, o filósofo conservador torna-se próximo da nova esquerda: difícil não é conclamar princípios, difícil é mexer com a vida concreta, respeitando sua complexidade e correndo o risco de querer coisas que podem acontecer de verdade.
muito bom.
ResponderExcluir