Uma empresa da Flórida chamada CATscan 2000 manda pelos EUA afora seus caminhões transformados em laboratórios: oferece tomografias computadorizadas do corpo inteiro por menos de US$ 600. É possível parcelar -não a conta, mas o corpo, que é divisível em três zonas.
Chamo o número da empresa: 1-87-RU-AT-RISK (1-87-será que você está em perigo?). Confirmam que não é necessária nenhuma prescrição médica. Só o dinheiro. Infelizmente, no momento, nenhum dos laboratórios está próximo de meu domicílio. Em geral, eles param nos estacionamentos das igrejas de pequenas aglomerações. Segundo uma reportagem do "New York Times" de 27 de maio, uma tomografia grátis é oferecida em troca ao pároco ou ao pastor. Os caminhões lembram os vendedores ambulantes do elixir de longa vida, que, no passado, iam de feira em feira. O letreiro diz: "Faça sua tomografia. A detecção precoce do câncer e da doença cardíaca pode significar a cura!". Em cada caminhão, há um técnico e um recepcionista que marca horário e cobra. Os resultados são interpretados mais tarde por um radiologista e chegam pelo correio. Claro, nenhum seguro de saúde reembolsa o custo da tomografia, mas, se um problema for detectado, o paciente levará o exame a seu médico, que agirá em consequência.
Nas grandes cidades há laboratórios menos espetaculares que os caminhões, mas que também efetuam tomografias computadorizadas a pedido do cliente, sem uma indicação e uma razão médica específicas.
Essas práticas duvidosas são apenas sintomas das expectativas do paciente de hoje. Ninguém acredita mais no silêncio dos órgãos como prova de seu bom funcionamento. Não vale a idéia de que a doença começaria com o desconforto, com a dor e com as queixas. Nossa relação com o corpo é paranóica: ele nos esconde coisas, faz-se de saudável, mas, no meio disso, é capaz de alimentar cânceres e outras porcarias.
Essa atitude corresponde ao espírito da época: o futuro é nosso tempo preferido. Nossa capacidade de mudar, de progredir e de crescer importa mais do que o peso do passado. Nossas potencialidades nos definem muito mais do que nosso estado presente. Do mesmo jeito, a experiência atual do corpo não basta para definir a saúde, como seria o caso numa cultura que privilegiasse o presente. A saúde que nos importa é a futura.
A medicina, portanto, deve sobretudo prevenir (ou seja, prescrever condutas que favoreçam a saúde) e detectar precocemente (ou seja, espreitar os primeiríssimos sinais das doenças, para esmagá-las na hora). A partir dos 40 anos, pessoas que se sentem perfeitamente saudáveis esperam a verdade sobre o estado de seu corpo de investigações clínicas que são hoje, paradoxalmente, a rotina da vida saudável: mamografias, papanicolaous, toques variados, exames de PSA ou, no caso, tomografias computadorizadas do corpo inteiro.
Graças a isso, muitas vidas são salvas (no mínimo, prolongadas). Mas há um custo. Qual?
Quem leva suas economias para o caminhão da CATscan 2000 sonha com um check-up no estilo "Star Trek". Infelizmente, nossa realidade é menos hollywoodiana: talvez tenhamos um raio parecido com o da nave espacial Enterprise, mas não temos a mesma habilidade diagnóstica nem a mesma medicina.
Para cada vida salva, há casos em que aparecem lesões milimétricas que ninguém consegue interpretar com segurança ou nódulos tão ínfimos que seu sentido é incerto. A vontade de pegar as coisas a tempo não se traduz só em curas mais eficientes. Às vezes, a detecção precoce descobre anomalias que não autorizam a certeza de um plano de cura. É possível que essas anomalias não sejam prelúdio de nada ou, então, que anunciem o pior. Em geral, nesses casos, a medicina é honesta: confessa os limites de sua competência, descreve as perdas e os riscos acarretados pelo tratamento de lesões que poderiam ser inócuas e deixa os pacientes livres para decidir se tais microcalcificações do seio anunciam ou não um tumor ou se tal tecido suspeito da próstata crescerá ou seguirá dormindo. É uma escolha impossível: entre intervenções invalidantes que talvez sejam desnecessárias e uma abstenção pela qual o paciente talvez decrete sua morte. Milhões de pessoas circulam pelo mundo perguntando-se, como Sigourney Weaver depois do encontro com o monstro, se carregam ou não um "alien" no corpo.
Na tentativa de definir pelo futuro não só nossa vida, mas também nossa saúde, descobre-se o óbvio: para quem venera o futuro e vive na antecipação, o presente se banha facilmente na angústia.
P.S.: Estréia amanhã, no Brasil, "Minority Report - A Nova Lei", de Steven Spielberg. O filme (inspirado por um conto de Philip K. Dick) imagina um sistema policial capaz de reduzir a zero a criminalidade: basta que sejam punidos não os crimes passados, mas os crimes futuros.
Em matéria de saúde, parece que corremos atrás de um sonho parecido: o de sermos curados das doenças que teremos. Para muitos, o sonho vira pesadelo.
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