Cada vez que, numa roda de amigos, se fala das eleições, alguém deplora que a campanha não seja uma disputa entre idéias e programas.
A reclamação pela falta de debate de fundo não é a manha de um amigo chato. Todos, em um momento ou outro, desempenhamos esse papel inevitavelmente. Parece uma regra: nas campanhas eleitorais, lamentamos a ausência de um enfrentamento construtivo entre os projetos de governo e desprezamos a preponderância da atenção dada às pessoas dos candidatos.
Ora, os projetos de política pública dos principais pretendentes podem não ser causa de grandes entusiasmos, mas são conhecidos e publicados em livros e jornais. Aparentemente, poucos os lêem.
Quando um de seus amigos se queixar da falta de debate de fundo, lance uma discussão sobre os projetos de governo. Na maioria dos casos, você constatará que o amigo reclamante tem uma idéia muito vaga dos ditos projetos. E verá sua proposta de discussão ser aprovada por unanimidade, mas imediatamente esquecida. O papo voltará para o que todos adoram repetir: Ciro é irritado, Serra é antipático, Lula é grosso e Garotinho se faz de seráfico. Ou, então: Ciro é enérgico, Serra é uma pessoa séria, Lula é dos nossos e Garotinho é boa-pinta.
Em suma, esbravejamos contra o esvaziamento do debate político, mas estamos a fim de falar só dos candidatos.
Não é um efeito da cordialidade nacional, pela qual as pessoas contam mais que as idéias. Nas últimas eleições americanas, qualquer um que comparasse as propostas políticas de Al Gore com as de George W. Bush constataria que o primeiro defendia os interesses da classe média, e o segundo, os interesses da grande indústria. Mas Gore perdeu por ser "elitista" e Bush ganhou (mais ou menos) por ser "popular". Enfrentaram-se duas figuras, não dois planos de governo. E, no dizer de muitos, Bush foi favorecido por seus erros e suas trapalhadas - sinais de autenticidade.
Então, como perdemos o interesse pela política pública? "O Declínio do Homem Público", que Richard Sennett publicou em 1974, nos serve de guia para explicar a sensibilidade política contemporânea. Os anos 60 promoveram a idéia de que as verdadeiras revoluções devem acontecer dentro de nós. Para mudar o mundo, mude a si mesmo e não conte com o Congresso ou a Esplanada dos Ministérios. Tampouco conte com o partido, com a conquista do poder etc.
A intimidade foi valorizada como lugar onde era preciso resolver os conflitos mais urgentes e verdadeiros. Isso produziu um descrédito da política pública. Surgiram as perguntas: "Revolucionário, como trata sua companheira e suas crianças? O que sabe de si e de sua sexualidade?".
Hoje, escreve Sennett, "entendemos muito bem que o poder é uma questão de interesses nacionais e internacionais, entendemos o jogo entre as classes e entre os grupos étnicos, entendemos o conflito entre regiões e religiões. Mas não agimos segundo esse entendimento". Na hora de votar, por exemplo, não escolhemos planos de governo, mas personalidades. Como as escolhemos?
A importância atribuída à intimidade faz com que a autenticidade se torne um parâmetro. Gostamos de candidatos "autênticos", que mostram suas tripas. E isso vale seja qual for a qualidade das tripas, pois a autenticidade é um critério abstrato, que não garante nada. Um candidato descreve veridicamente as condições e as possibilidades do país: nós o acharemos sincero. No entanto preferiremos outro que se atrapalha na apresentação dos fatos, mas que nos revela sua intimidade e, portanto, parece mais autêntico.
Muitos homens políticos devem ter-se dado conta dessa mudança: desistem de dar prova de autocontrole, soltam as emoções e choram como crianças.
Para Sennett, é suicida o líder que declara: "Esqueçam minha vida privada, tudo o que precisam saber de mim é quais ações tomarei uma vez eleito". Desde os anos 60, a credibilidade de qualquer sujeito é função de sua capacidade de parecer autêntico. Não é diferente para um candidato: sua "credibilidade" não tem a ver com seu projeto político (veridicidade dos pressupostos, razoabilidade das propostas), mas com a capacidade de mostrar sua intimidade. Pois, para nos conquistar, ele deve mostrar-se autêntico.
De fato, na corrida em curso, até agora, os que parecem mais "autênticos" encabeçam as pesquisas. Dos olhos de Lula marejam as lágrimas na hora de evocar sua infância e as misérias do povo e, provavelmente, isso vale mais que o projeto de governo do PT. Ciro se irrita que nem a gente e é carinhoso com a Patrícia, e isso vale mais que os livros escritos com Mangabeira.
Enquanto isso, a campanha de Serra parece insistir na qualidade de sua atuação como ministro e na sua competência, como se as eleições fossem decididas apenas num debate em que os diferentes planos de governo seriam comparados e discutidos. Quanto a Garotinho, sua fé poderia valer como sinal de autenticidade, mas, para isso, deveria ser, no mínimo, mais atormentada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário