quinta-feira, 1 de fevereiro de 2001

Uma outra maneira de dar o peito

Jenna Franklin é inglesa e terá 16 anos no dia 23 de agosto deste ano. Para seu aniversário, os pais lhe oferecerão implantes de silicone nos seios. A praxe é esperar até mais tarde (depois dos 20 anos) para que a intervenção modifique um corpo que já tenha parado de crescer. Mas duvido que a moça não encontre um cirurgião disposto a operá-la logo. Tanto mais que os pais generosos são conselheiros profissionais em cirurgia plástica. E a mãe é uma veterana que fez seios, nariz, bochechas e duas lipos.

Essa notícia fez recentemente a primeira página dos tablóides ingleses. Prevaleceram as expressões indignadas contra nosso mundo que cultua as aparências: onde iremos parar se os pais autorizam ou, pior, transmitem diretamente o dever de agradar aos outros? Que desastre moral se prepara? E por aí vai.

A história e a polêmica se tornaram um despacho da Associated Press do começo de janeiro -que é minha fonte.

Jenna e sua mãe, Kay Franklin, foram entrevistadas. Jenna disse que desejava seios maiores desde os 12 anos e, questionada por que, acrescentou: "Precisa ter seios para ser bem-sucedida". E ainda: "Uma pessoa em cada duas na televisão teve implantes. Se eu quiser ser bem-sucedida, devo tê-los também e eu quero ser bem-sucedida, embora no momento ainda não saiba no quê". E enfim: "Só quero ser feliz com o meu corpo".

Kay, a mãe, declarou: "Há tantas jovens que se deprimem ou se atrapalham por causa de sua aparência. Então, se der para fazer algo para evitar isso, ótimo".

Gosto dessa história pelas reações que produz. Faça a experiência: conte para alguém. Na enorme maioria dos casos, a resposta será despropositadamente indignada. Como pode essa mãe desnaturada induzir na filha uma tal religião das aparências?

Antes de jogar mais uma pedra, pense um pouco: será que o presente da mãe de Jenna é essencialmente diferente do gesto das numerosas mães que oferecem academias, spas e regimes a suas filhas? Ou mesmo que lhes impõem aparelhos ortodônticos que parecem cabrestos?

Na verdade, a mãe de Jenna não é diferente de nós. Ela é a banalidade da maneira moderna de amar os rebentos: queremos que eles seduzam bem além do que nós conseguimos. Não imaginamos uma forma de felicidade, uma gestão do prazer ou uma forma de sucesso que não passem pela conquista da aprovação dos outros. E como não querer a felicidade de filhos e filhas?

Quanto a Jenna, sua fala vale um livro ou dois sobre o tema do narcisismo. Ela nos explica que a relação com nós mesmos, nossa maneira de julgar a imagem que aparece no espelho passa sempre pelo olhar dos outros.

Jenna quer ser feliz com o seu corpo. E acha que isso acontecerá quando ela fizer parte do grupo de implantadas que povoam a tela da televisão. Aparecer na televisão não é concretamente um ideal para Jenna (ela não quer ser apresentadora, nem modelo, nem atriz), mas é uma boa metáfora do sucesso narcisista, pois é provável que quem está na televisão seja aprovado pelo olhar dos espectadores.

Ou seja, Jenna quer (e deve) ser gostada para se gostar. Esse sucesso narcisista é um fim em si: o campo no qual ela poderia ser bem-sucedida é indiferente. A fantasia de Jenna é o sucesso que os seios lhe darão: a profissão em que os mesmos seios poderiam promovê-la não alimenta seus sonhos.

A vida de Jenna, mesmo com os seios novos, não será fácil. Como não é fácil, em geral, a vida de todas as nossas jovens -se suas mães se parecem com Kay. A dificuldade não está na tarefa de serem bonitas, mas na impossibilidade de definir um cânone.

Se o cirurgião fizer um bom trabalho, homens, mulheres e a própria mãe, todos poderão adular os seios perfeitos de Jenna. Mesmo assim, aposto que a moça não parará de achá-los insuficientes, exagerados, assimétricos, desproporcionados etc.

A dificuldade do narcisismo moderno não reside na tarefa de agradar, mas na perpétua insegurança. É inevitável: se a tarefa da vida for agradar aos outros que nos importam, nenhum olhar será definitivo, nenhum elogio e nenhum amor bastarão para decretar que o seio é perfeito. Pois o julgamento dos outros é uma suposição nunca resolvida. Podemos contar as pétalas da margarida (me ama, não me ama, me ama...) ou modificar o corpo (mais silicone, menos silicone...).

Na mitologia grega, um salteador chamado Procusto espreitava os viajantes. Queria forçar cada um deles a caber perfeitamente num leito. Esticava ou cortava fora os membros dos infelizes. Para o sujeito moderno, o problema não é evitar Procusto, mas encontrá-lo, para saber enfim o que precisa cortar e o que esticar. Encontro impossível: Procusto é apenas um mito.

P.S.: A procura de Procusto não é um problema só feminino, tipo: as mulheres sempre quiseram ser desejadas etc. Os homens e os rapazes das últimas décadas pensam como Jenna e sofrem da mesma incerteza. Na próxima coluna, comentarei pesquisas recentes sobre essa mudança na relação dos homens com seus corpos.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 6

Até o ano que vem, em Porto Alegre
CONTARDO CALLIGARIS

DE PORTO ALEGRE

Na última manhã do Fórum, a cerimônia de encerramento está atrasada. O plenário, repleto, entoa coros. Paro na frente da sala de imprensa, que já começa a esvaziar. Uma faixa chama a minha atenção: "Legalizar o aborto é possível" -é o resto de uma pequena manifestação do dia anterior. De repente, estranho: num país onde as mulheres encaram o pesadelo dos abortos artesanais, um Fórum dito Social mal tocou no assunto. Também a presença feminista foi tímida. Havia um estande do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids e certamente houve oficinas preocupadas com o cotidiano dos corpos e dos desejos. Mas foi difícil encontrá-las.

Até visualmente o Fórum foi dominado pelos bonés vermelhos da CUT, as bandeiras do PT e os bonés verdes da Via Campesina. Nada parecido com o caleidoscópio de cores que é esperado nos encontros da nova revolta, depois de Seattle.

Em poucos minutos, no saguão meio vazio, seis delegados de oficinas diferentes me abordam. Cada um me entrega uma cópia do relatório de sua oficina. O leque vai desde um projeto de arte ecológica até a idéia de constituir uma democracia representativa mundial via Internet. A alma de meu defunto tio Ubaldo, anárquico e fanático do esperanto, deve estar nesse saguão, com seu sonho de língua universal na mão.

No entanto, no plenário, cantam "Guantanamera". Parece um resumo do Fórum: aqui no saguão, delegados de oficinas que ninguém notou procuram um último jornalista para quem confiar sua mensagem. E, na sala, bandeiras, coros, celebrações e holofotes.

A imprensa caiu na armadilha. Cobriu os comícios e entrevistou os políticos de sempre para receber as respostas de sempre. Às quatro da madrugada de ontem, heróicos repórteres escutavam mais uma coletiva de José Bové. O agricultor francês mereceria o codinome de "Lavoura arcaica": defende um protecionismo absoluto em agricultura, que seria um desastre para qualquer produtor brasileiro e que, na França, é uma carta da luta imperial francesa contra a cultura americana. E nós com isso? Os repórteres cobriam, na verdade, o MST que adotou Bové. Seguiam os holofotes manobrados pelas organizações da esquerda tradicional.

Anunciam, enfim, que o Fórum de 2002 será de novo em Porto Alegre. Ótimo. O governo do RS e a prefeitura da capital gaúcha se qualificam para hospedar o Fórum não por serem do PT, mas por realizarem uma nova forma de participação popular na administração da coisa pública.
Seria bom lembrar isso na hora de organizar e convocar 2002. Essa exortação vale apenas se existe a intenção de que Porto Alegre hospede, em 2002, um Fórum da nova esquerda -coisa que o Fórum que acabou ontem não conseguiu ser.

terça-feira, 30 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 5

Fórum alegre

CONTARDO CALLIGARIS
DE PORTO ALEGRE

D epois de cinco dias de Fórum, me descubro entregue a uma espécie de ciclotimia. Quando estou nas oficinas da tarde - sobretudo as que são propostas por ONGs que trabalham em projetos sociais concretos -, sinto-me prestes a acreditar na possibilidade de um mundo melhor e confiante no futuro da espécie. Nos depoimentos da noite e nos painéis da manhã, meu humor é variável. Fico sombrio e irritado quando me deparo com falas projetadas para entusiasmar. As falas que entusiasmam não são necessariamente as mais políticas. Ao contrário, como notou Lula em seu testemunho, os atos mais concretos talvez sejam os mais políticos. As falas que entusiasmam (e me deprimem) são aquelas que tentam fazer apelo ao que há de pior - em mim e, portanto, devo concluir, também em meus companheiros de platéia. O que é isso? É a disposição humana a aderir para fazer grupo, acompanhada por um pensamento mágico, em que a certeza deriva do entusiasmo e da constatação de que ele é compartilhado ao redor de nós. Quando essa sensação me pega no pescoço, a desconfiança é física - uma mistura de medo com depressão. Devo ter um gene contra o entusiasmo coletivo - herança do antifascismo do meu pai. Peço vênia ao leitor se isso me leva a privilegiar, no Fórum, os momentos que mais me irritam. Por exemplo, às vezes, durante o Fórum Parlamentar (que reúne deputados e senadores de 29 países), toquei o fundo do poço: houve várias falas comprometidas só com o entusiasmo imediato dos ouvintes. Poderia aguentar firme e, por exemplo, privilegiar a plataforma que o Fórum Parlamentar apresentaria ontem. Provavelmente será um documento significativo. Afinal, o Fórum das Autoridades Locais (prefeitos e autoridades municipais) apresentou uma lista de propostas que compõem uma ética básica da administração citadina. Eu me pergunto: como seria um Fórum que me deixasse constantemente esperançoso? Seria composto de mais oficinas, poucos painéis com tarefas de trabalho bem específicas e pouquíssimos testemunhos. Nesse Fórum ideal, como foi o caso em muitas oficinas, seria bem-vindo discordar e não seriam colocados em causa os pressupostos éticos de quem discorda. Nesse Fórum, não seriam vaiados nem os que julgamos inimigos, pois todos saberiam que ninguém detém o monopólio da solidariedade. Nesse Fórum, não aceitaríamos que a descrição da realidade fosse alterada para embelezar os fracassos de nossas idéias e de nossos esforços. Nesse Fórum, um debate com participantes de Davos não seria um match de acusações para o prazer da torcida. Esse Fórum alegre, de fato, já está acontecendo durante uma boa metade do tempo - o que é um sucesso e justifica que a coisa volte a acontecer.

domingo, 28 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 4

O perigo de ouvir só o que a gente gosta
CONTARDO CALLIGARIS
DE PORTO ALEGRE

Na tarde de sexta-feira, fui escutar Eduardo Galeano. Queria uma fala bonita, depois de oficinas específicas e práticas. Foi bonito demais.

Galeano leu uma seleção dos textos de seu livro "Patas Arriba" (1999) e abriu-se o debate.
Recebeu perguntas sobre o subcomandante Marcos, McDonald's, a repressão do narcotráfico etc.

Fosse qual fosse a bandeira levantada, ele nunca decepcionava, ou seja, sempre conseguia responder exatamente o que a platéia queria ouvir.

Afirmou, por exemplo, que "a luta contra a droga é só uma máscara da guerra contra os pobres" e que não há americanos do norte na cadeia por tráfico de drogas. A platéia ovacionou feliz.
No começo, ele falou de uma crise universal da fé na capacidade de transformar a história e o mundo.

Ele tem razão. É necessário reconstituir a confiança na possibilidade de ação.
Mas será que o melhor caminho para isso é o culto coletivo de enunciados que têm apenas a função de celebrar nossa fé comum?

É o mesmo mecanismo da missa em latim: não importa o que está sendo falado, importa a celebração.

Desde o primeiro dia do Fórum, o trabalho de quem coloca as mãos na massa complexa do mundo parece ser silenciado pelo clamor da celebração.

Assim Jorge Beinstein afirmou que temos muito o que aprender com a democracia cubana. Ahmed Ben Bella (ex-presidente da Argélia) afirmou que não há democracia nos Estados Unidos, o que, na verdade, deveria seduzi-lo, pois também disse que ele não é democrata. Todos aplaudidíssimos.

Em Davos, os participantes pagam US$ 20 mil para escutar um argumento imprevisto -não seriam loucos de pagar esse dinheiro para ouvir o que já pensam.

No Fórum de Porto Alegre, às vezes, parece que milhares vieram do mundo inteiro para ouvir exatamente o que queriam e já sabiam. É verdade que é de graça e, com isso, a festa é legal.
Mas se o problema é tomar (um pouco) as rédeas do mundo, melhor levar a realidade mais a sério.

sábado, 27 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 3

Topografia

CONTARDO CALLIGARIS
EM PORTO ALEGRE

O parque da Harmonia -um bonito espaço arborizado na beira do rio Guaíba- abriga o acampamento das delegações indígenas e o da juventude. Neste último, leio a faixa do grupo Juventude Participativa de Alvorada: "Sem juventude não há revolução". A juventude é um lugar-comum retórico da modernidade, provável parente da paixão pelas novidades. A ponto de todos os totalitarismos que conheço terem feito uma apologia da juventude. Giovinezza! Giovinezza! Por sorte, aqui o clima parece ser democrático: de discussão e de festa tranquila.
As delegações indígenas e os "jovens" convivem simpaticamente. Mas há diferenças de ecossistemas. De noite, o acampamento dos jovens quer continuar a festa e amplificar a música. Os índios acham que está na hora de dormir.
Entre os índios e os jovens militantes, estão os verdadeiros indígenas: um grupo de sem-teto que moram no parque da Harmonia desde sempre. Eles estão muito felizes com o Fórum. Não sabem o que é, mas constatam que traz benefícios: chuveiros, sanitários, comida, um pronto-socorro médico. Devem achar que a cidade decidiu assentá-los ao ar livre, como gostam.
Que maravilha!
Mas nem todos passam a noite no parque. Paolo Gasparotto, o colunista social do "Zero Hora", assinala que haverá uma recepção para Danielle Mitterand e Jean-Pierre Chévènement. Será oferecida pelo consulado francês no clube Leopoldina Juvenil, que é o clube tradicional da classe mais abastada da cidade. Duvido que os membros de "Le Monde Diplomatique" não apareçam. Seria a reunião da esquerda-caviar.

A UTOPIA DO DIA

Responsabilidade - Acabar com a responsabilidade limi- tada de empresas e corporações de maneira que os dirigentes sejam individualmente responsáveis. Por exemplo, a Firestone sabia que uma grande quantidade de pneus montados no Ford Explorer explodia, mas atrasou a decisão de chamar de volta os veículos, talvez por medo das repercussões sobre a cotação das ações (cf. "Idéia feita do dia"). Entretanto dezenas de pessoas morreram. A Firestone pagará danos e multas punitivas. Mas, sem o princípio da responsabilidade limitada, os dirigentes iriam para a cadeia.

IDÉIA FEITA DO DIA

Pela qualidade - Pagar aos trabalhadores com ações talvez não leve à sua participação concreta. Mas -é uma outra idéia feita- pagar aos dirigentes com opções garantiria a qualidade de seu empenho. Eles teriam, assim, o maior interesse no futuro da empresa. Essa idéia, imposta pela globalização especulativa, produz efeitos trágicos na gestão das empresas, pois muitos dirigentes (donos de pacotes de opções) trabalham mais para valorizar a empresa no mercado financeiro do que para desenvolver seu potencial e sua presença na produção.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 2

Um cheirinho de naftalina

CONTARDO CALLIGARIS
EM PORTO ALEGRE

N uma entrevista coletiva para a imprensa, Bernard Cassen, diretor de "Le Monde Diplomatique", disse que o Fórum de Porto Alegre não é contra aquele de Davos; ao contrário, Davos está contra Porto Alegre. Pois, como ele explicou, na Suíça, os poucos tramam contra os muitos. Acrescentou que, em Davos, só há indivíduos falando por conta própria e, portanto, defendendo interesses pessoais. Em Porto Alegre, há representantes de organizações, "pessoas que representam mais do que a si mesmas". Em suma, os muitos têm mais razão do que os poucos, e é melhor não falar em seu próprio nome.

Em assembléias de 30 anos atrás, esses chavões retóricos rendiam aplausos certos. Eu achava que, com a acumulação dolorosa das experiências, a esquerda tivesse desistido de negar suas melhores origens iluministas e individualistas.

No programa de Porto Alegre, o número de organizações e grupos norte-americanos mal passa de dez. Claro, os "baderneiros" de Seattle, com suas tendências anárquicas, odiariam ouvir que falar em seu próprio nome é menos legal do que representar grupos. Ou que os muitos são sempre melhores do que os poucos.

No futuro, seria interessante que a revolta contra o mundo neoliberal não fosse toda traduzida ideologicamente pelo mesmo academismo político francês. Isso acaba excluindo grupos e indivíduos (mas os indivíduos não importam, não é?), que não combinam com o cheiro da naftalina.

Triste confirmação de última hora: na cerimônia de abertura houve vaias para a pequena delegação dos Estados Unidos e aplausos para a Coréia do Norte (uma delegação oficial?).

quinta-feira, 25 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 1

Preliminares

CONTARDO CALLIGARIS
EM PORTO ALEGRE

Qual é , para mim, a relevância do fórum?
A realidade econômica da globalização pode ser violenta, mas também pode ser corrigida. Aliás, os impasses (e os horrores) são óbvios até para muitos dos que estão em Davos.
Preocupa-me mais não o Consenso de Washington, mas o nosso próprio consenso. Ou seja, a facilidade com a qual, nas últimas três décadas, as classes médias ocidentais mais bem-intencionadas acabaram pensando que os sonhos progressistas teriam sido enfim realizados (ou quase). Por exemplo, "ser livre" é poder escolher produtos num mercado aberto e mundial.
"Participar democraticamente" é poder investir on line, sem intermediários.
"Ser informado" é dispor das mesmas informações do que dispõem os investidores institucionais. "Desenvolvimento" é crescimento do PIB. E por aí vai.
Parece que, por malícia ou por preguiça, sem que nos déssemos conta, os termos com os quais pensávamos nosso futuro foram desvirtuando-se. Do Fórum Social Mundial espero, sobretudo, isto: que devolva seu alcance a algumas palavras. Não seria pouca coisa.
A cada dia (ou quase), apresentarei brevemente um projeto utópico discutido no fórum (ou em seus bastidores). Também criticarei uma idéia feita contestada (ou adotada) aqui.

Utopia do dia
Para limitar o poder político de empresas e corporações, uma reforma das leis de financiamento das campanhas eleitorais (a começar pelas americanas) adotaria o seguinte princípio: só os cidadãos, singularmente, devem ser autorizados a financiar candidatos e legendas, pois só os cidadãos, singularmente, votam. Para evitar espertezas, haveria uma contribuição máxima por votante - digamos, por exemplo, cem dólares. Também seria permitido financiar apenas um candidato ou uma legenda por eleição -ou seja, não mais seria possível contribuir com as campanha de todos para ser sempre credor de quem ganhasse. Se os fundos levantados fossem insuficientes, teríamos campanhas mais breves, mais concretas e menos espalhafatosas. É um problema?

Idéia feita do dia
Nos anos 90, triunfou a idéia de que pagar aos trabalhadores com ações ou opções seria uma nova forma de todos controlarem o processo produtivo. Eram ultrapassados o capitalismo démodé da velha economia e o socialismo derrotado: graças às ações possuídas, os trabalhadores seriam proprietários. Problema: as oscilações do valor de ações e opções têm pouquíssima relação com os esforços dos trabalhadores-acionistas. Ou seja, a distribuição de títulos não cria nenhuma participação concreta. Por exemplo, imaginemos que uma empresa tenha sido racionalizada, eufemismo para dizer que ela demitiu 10 mil funcionários. As ações sobem. Os desempregados, que levam consigo seus pacotes de ações e opções, devem ficar tristes ou alegres?

Por que escutar adultos inconsistentes?

Os adultos conclamam que é importantíssimo ajudar e aconselhar crianças e adolescentes. Dizem que querem iluminar o caminho de seus rebentos, propor ideais e servir de exemplo. Mas, geralmente, na hora do vamos ver, eles apenas exigem duas coisas: obediência e resultados escolares. Essa é a conclusão de uma recente pesquisa do Search Institute -uma organização de fins não-lucrativos que promove o bem-estar de crianças e adolescentes. A pesquisa foi feita com adultos americanos, mas aposto que os resultados seriam os mesmos em qualquer país ocidental.

Nos últimos dez anos, o Search Institute elaborou uma descrição do capital moral cuja presença facilitaria o desenvolvimento socialmente harmonioso de uma criança ou de um adolescente. Chegou-se a uma lista de alicerces que, naturalmente, não são dádivas divinas. Eles devem ser construídos pelo comportamento dos adultos e das comunidades em que vivem os jovens.

Eis alguns exemplos banais de comportamentos que produzem capital moral. Ter conversas significativas com os jovens e dar conselhos são atitudes pelas quais os adultos manifestam seu apoio -o que constitui um bom alicerce para o desenvolvimento dos jovens. Solicitar a sua opinião produz neles um sentimento de autonomia -outro sustentáculo necessário. Servir à comunidade de maneira exemplar é uma conduta pela qual um adulto institui expectativas sociais positivas. Ensinar valores compartilhados e discutir valores pessoais permite a elaboração de uma ética. Ensinar respeito pelas diferenças culturais cria uma competência social. Transmitir tradições confere à juventude uma identidade. E por aí vai.

Foi assim estabelecida uma lista de 19 ações dos adultos que seriam essenciais para os jovens. O Search Institute quis saber se os americanos colocavam fé nesse catálogo. Foram realizadas 1.425 entrevistas aprofundadas com adultos representativos da sociedade americana em sua diversidade. Os pesquisadores jubilaram-se pois, das 19 ações da lista, 9 foram qualificadas como cruciais por 70% dos entrevistados e outras 9 foram assim qualificadas por entre 50% e 70% dos adultos entrevistados.

Em suma -independentemente das diferenças de origem étnica, fé religiosa, sexo etc-, a maioria dos adultos americanos compartilha de um verdadeiro consenso sobre as ações que eles poderiam e deveriam realizar para ajudar, assistir e acompanhar o desenvolvimento de crianças e adolescentes. O resultado deveria inspirar uma onda de otimismo pedagógico.

Mas a pesquisa também quis verificar se os mesmos adultos praticam essas ações que a maioria deles considera importantíssimas para o bem-estar de crianças e jovens.

Consternação! Constatou-se que, das 18 ações que suscitam seu grande entusiasmo (retórico), a maioria dos adultos pratica somente estas duas: exigir respeito e bom desempenho escolar.
Conclusão: a relação dos adultos com jovens e crianças é marcada pela inconsistência. Os comportamentos não correspondem às proclamações.

Imaginemos um exemplo caseiro. Um adulto pode acreditar sinceramente que a honestidade de todos garantiria um país melhor e, portanto, proclamar que a honestidade é um valor que deve ser frisado no espírito de todas as crianças. Entretanto esse adulto talvez seja nepotista, aproveitador, desrespeitoso da coisa pública etc. Isso seria justificado eventualmente pela constatação habitual: todos são assim, não serei o único trouxa. Portanto o adulto vai perorar sobre os valores morais, mas não se aventurará a transmiti-los direta e concretamente a filhos e filhas por receio de ser tachado de hipócrita e mentiroso. Os jovens são sempre excelentes intérpretes dos adultos e raramente deixam de perceber a incongruência do que está sendo preconizado com o que está sendo praticado.

Não é por acaso que, de todos os entusiasmos pedagógicos dos adultos, sobram, em geral, as duas ações mencionadas. Elas parecem escolhidas a dedo. Primeiro, os adultos não param de exigir respeito: provavelmente, com esse pedido abstrato, eles tentem compensar a perda de autoridade moral que foi produzida por sua própria hipocrisia.

Segundo, eles querem bons desempenhos escolares. A sabedoria moral proclamada é reduzida a uma exigência pragmática de sucesso: "Estude, meu filho/minha filha!". Se a exortação não for acompanhada de razões morais concretas, ela não soará diferente de "veja se consegue se dar bem na vida". Os jovens podem obedecer a essas duas exigências, mas sempre adotando, resignados, o cinismo dos pais.

É difícil sair desse impasse entre gerações: o desprezo suscitado pela inconsistência dos adultos torna os jovens impermeáveis (ou quase) a qualquer palavra pedagógica.
P.S. A íntegra dos resultados da pesquisa pode ser consultada em www.search-institute.org. O título da pesquisa é "Grading Grown-ups - Avaliando os Adultos".

quinta-feira, 18 de janeiro de 2001

O adolescente deprimido e a professora inválida



Converso regularmente com um adolescente de 17 anos, exasperado e deprimido. Ele já teve outras experiências terapêuticas forçadas e não aguenta mais falar de pai, de mãe, de irmãs e de companhia. Em geral, comentamos as notícias do dia.

Na semana passada, ele foi atraído por uma história "edificante". Uma universidade americana dedicara um anfiteatro a uma professora de escola primária e secundária que, depois de uma longa carreira de ensino, foi paralisada pela doença de Lou Gehrig (uma distrofia muscular progressiva) e seguiu ensinando. Quando perdeu a voz, passou a ensinar surdos-mudos. Na reportagem, ela estranhava a atenção e os elogios: era uma mulher em paz com ela mesma e com o mundo, sem furores caritativos ou vocações martirológicas. Sua vida parecia simplesmente normal.

Meu jovem amigo comentou que, se estivesse no lugar dela, já teria acabado com sua própria vida. Essa idéia, concordei, passaria por qualquer cabeça. Mas por que a professora não foi por esse caminho?

Claro, se ela atravessasse a vida como uma prova aos olhos de Deus, poderia encontrar conforto na perspectiva de uma recompensa final. Mas como seria possível essa existência - ao mesmo tempo dura e tranquila- sem o recurso da fé religiosa? O insuportável numa doença como essa, afirmou então meu interlocutor, são os limites, as impotências.

Notei que há uma infinidade de coisas que não conseguimos fazer. Afinal, não sei voar, nem ficar sem respirar por mais de dois minutos. Com paciência condescendente, meu amigo explicou que essas são coisas que ninguém consegue fazer. O que dói, acrescentou, é não conseguir fazer as coisas que os outros conseguem. E declarou que, se tivesse uma invalidez grave, talvez ele pudesse seguir vivendo, mas só entre pessoas tão inválidas quanto ele. Conclusão da conversa: o problema não é a invalidez, o problema são os outros. Melhor dizendo, a necessidade de se comparar aos outros.

Voltemos à professora. Ela transmitia uma sensação de paz justamente porque, pelo menos na aparência, escapava ao demônio da comparação. Justificava sua vida em si. Parecia ter nascido como um soldado ao seu posto, com uma tarefa definida. Que chovesse ou fizesse sol, que ela estivesse saltitante ou paralisada, tanto fazia, pois ela era professora, sua vida era ensinar.
O demônio da comparação não é um acidente, nem uma patologia. Ao contrário, talvez seja a norma social contemporânea: é nos comparando aos outros que encontramos nosso lugar, nossa função e nosso valor.

Essa arquitetura social comparativa foi inventada na esperança de produzir uma sociedade livre e mais justa. De fato, se todos se definem por comparação, todos podem mudar, evoluir, crescer. Ninguém é forçado a exercer uma função, ninguém tem sua vida decidida pelo berço em que nasceu ou pela cor da pele. Mas há um paradoxo: a sociedade assim produzida acarreta um potencial inédito de exclusão. Pois qual lugar sobra para quem não tem recursos para competir?

Quem, por qualquer razão, não pode encarar a comparação é mais excluído do que os párias numa sociedade de castas ou os escravos do passado. O horror moderno é que as vidas humilhadas, impedidas ou azaradas não encontram mais justificação nenhuma na ordem da sociedade e do mundo: elas são puras derrotas. A não ser, evidentemente, que a gente consiga seguir um pouco o exemplo da professora e encontrar sentidos para a vida que não sejam comparativos.

Olho para meu jovem amigo. Visivelmente não se lava há mais de um dia. Nem o rosto. Sua roupa é manchada e muito amassada. Deve ter dormido com ela.

Sua tristeza e seu desleixo não se confundem com o estilo "excluído-fashion" -feito, sei lá, de cabelos amarelos e calças rasgadas à Xuxa. Muitos adolescentes manifestam algum desprezo pela ordem moderna do mundo - por exemplo, pelas coisas que os adultos prezam, só para serem invejados pelos outros. Quase sempre é um fazer de conta salutar: os adolescentes parecem querer se subtrair do jogo adulto das comparações, mas é uma atitude que serve para eles tornarem-se incomparáveis. Essa revolta banal é um momento padrão no processo de assimilar a sociedade dos adultos.

A depressão de meu jovem amigo está um pouco além disso. Ele é mesmo apavorado e revoltado pela corrida que o espreita, aquilo que chamam de vida. Pior, ele se desespera porque sabe que sua raiva e sua indignação são mais alguns elementos desprezíveis de conformismo, apenas maneiras banais de querer ser diferente.

Trouxe-me a história da professora para formular uma pergunta: será que há como inventar uma vida que se justifique por algum mérito intrínseco? Será que dá para sonhar com uma maneira de viver que não deveria tudo ao olhar dos outros?

Pois é, competir, se distinguir, brilhar são as formas básicas de nossas relações sociais. Mas eis um aviso aos pais e aos adultos que gostariam de ser escutados por jovens e adolescentes: a professora, de sua cadeira de rodas, pode falar mais alto do que muitos Bill Gates.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2001

Leis para indigentes morais

Acaba de chegar a Massachusetts um grupo de adolescentes sudaneses que viajaram diretamente da Idade da Pedra, ou quase, até a América de 2001.

Eis a história, segundo a reportagem do "Boston Globe". No fim dos anos 80, o governo fundamentalista muçulmano do Sudão começou a perseguir os cristãos separatistas do sul do país. Os jovens machos dessas populações (33 mil), particularmente ameaçados, fugiram marchando (e morrendo) para a Etiópia, onde ficaram em campos de refugiados. A guerra civil local forçou os jovens a uma nova marcha de 500 quilômetros até o Quênia. Sobraram 5.000 filhos das tribos Dinka e Nuer, que agora estão sendo distribuídos pelos Estados Unidos. Para muitos, a viagem de avião é a primeira experiência em um transporte motorizado.
Conversas bostonianas no fim-de-semana: qual será o maior estranhamento para esses jovens? A neve e a calefação? Os celulares? A Internet?

As organizações de assistência, conhecendo as dificuldades de um transplante cultural violento, pediram que os anciões das tribos gravassem sua sabedoria para os jovens levarem consigo na forma de fita cassete. Na nova terra, isso seria um recurso valioso na hora dos apuros. Os anciões consignaram, assim, suas melhores diretivas. Ora, aos ouvidos americanos, os preceitos, uma vez traduzidos, soam genéricos ao ponto de serem inutilizáveis.

Por exemplo: "Aconselho-lhes que sejam muito cuidadosos com as mulheres". Se um desses jovens acabar no mesmo colégio onde estudaram meus filhos, ele receberá um código escrito no qual é dito que, na área do colégio, são proibidos beijos prolongados. Aprenderá que, segundo o código, prolongado é um beijo durante o qual a intenção das partes pode mudar. Ou seja, um beijo é comprido demais quando um dos dois tem dificuldade em interrompê-lo caso não esteja mais a fim. Continuando seus estudos, o mesmo jovem encontrará novos códigos explicitando quantas vezes o consentimento deve ser pedido a cada etapa da corte amorosa.

Outro conselho prático dos anciões: "A cerveja é uma coisa que vocês não conhecem. Não se metam nisso". Equivalente civilizado: bebidas alcoólicas só podem ser compradas depois dos 21 anos; quem aparentar menos de 40 deverá mostrar identidade; menor de 21 pode entrar num lugar onde se vende bebida alcoólica só se for também restaurante; é proibida a venda de álcool no domingo; é proibido beber em lugares públicos, mas é permitido beber na rua com a condição de que a garrafa não apareça, e por aí vai.
O maior choque para os jovens sudaneses não virá das diferenças de comportamento. O susto virá da quantidade de leis formais detalhadas e explícitas que regram a vida americana, enquanto a vida da tribo era regrada por poucas normas quase sempre implícitas -ou seja, pela confiança de todos numa moral comum tácita.

Nossas leis tornam-se cada vez mais detalhadas, pois há a idéia de que um código exaustivo garantiria o funcionamento de uma comunidade justa. De fato, essa proliferação revela a angústia de uma cultura insegura de suas opções morais. Por sermos indigentes morais, compilamos uma casuística da qual esperamos que nos diga exatamente o que fazer em cada circunstância. O dito legalismo da sociedade americana, tão frequentemente denunciado, é apenas o sinal dessa indigência.

A tentativa de animar uma comunidade por uma lengalenga de leis testemunha a fraqueza do vínculo social. Não podemos confiar numa inspiração moral compartilhada, portanto inventamos regras para ter, ao menos, muitas obrigações comuns.

Na Olimpíada de Sydney, uma jovem ginasta romena perdeu sua medalha de ouro por ter tomado duas pílulas de Sudafed (pseudoefedrina). Esse banal descongestionante nasal era incapaz de melhorar a performance da atleta. Todos admitiram isso, mas, por estar a pseudoefedrina na lista das substâncias proibidas, a sanção pareceu necessária. Foi exemplar do quê? Do triunfo da moral ou de nossa incapacidade social de decidir segundo a consciência?
Pense em dois mundos. Num deles, seria possível e adequado apertar o ombro de um adolescente que sai de casa, dizendo: "Comporte-se direito, meu filho". No outro, entregar-lhe-íamos um calhamaço de diretivas, pois não poderíamos apostar que ele compartilhasse conosco e com todos a mesma implícita preocupação moral. Não é preciso dizer em qual desses mundos vivemos.

P.S. Sobre a relação entre normas sociais implícitas e leis, um livro recente ajuda a pensar: "Law and Social Norms", de Eric Posner. Nestes dias, li também "When Law Goes Pop", de Richard Sherwin, que é uma história da invasão da cultura popular pela prática jurídica, de Perry Mason até os programas da "Court TV" americana -processos verdadeiros debatidos e decididos ao vivo por juízes que são estrelas da televisão. Talvez a prática jurídica ocupe tanto espaço na cultura popular porque o espetáculo da administração da lei substitui e compensa a mediocridade de nosso senso moral.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2001

Tampas e panelas de pressão

Na manhã de 26 de dezembro, em Wakefield, perto de Boston, Michael McDermott, 42, foi para o trabalho armado até os dentes e matou sete colegas a tiro. Então esperou a chegada da polícia.

A imagem de McDermott, barbudíssimo, desgrenhado e inquietantemente grande, foi servida como uma caricatura de ogro. Mas as reportagens desmentiam o fenótipo. Ele era um cara legal. Doava plaquetas sanguíneas a cada duas semanas. Era adorável com as crianças. Entendia de explosivos, mas dava conselhos pacifistas a seus interlocutores.

Único problema: uma pequena dívida de Imposto de Renda e um atraso nas mensalidades do carro e do condomínio. Eis o estopim presumido: a pedido do governo, uma parte do salário do homem seria retida automaticamente, e ele não gostou. Sete mortos por causa de 3.000 dólares?

Felizmente para os comentaristas, surgiu uma outra explicação: McDermott não devia estar bem da cabeça, pois tomava Prozac e outros remédios não determinados. O advogado de defesa certamente alegará a irresponsabilidade, no estilo: se tomava Prozac, devia ser louco.

É uma idiotice. Mas é o preço do sucesso dos antidepressivos: eles se transformaram em aspirinas do espírito. São frequentemente prescritos por clínicos apressados e sem diagnóstico específico. Está triste? Tome, que faz bem! Está delirando? Também tome, nunca se sabe! Usar Prozac pode ser índice de qualquer condição: "spleen" do poeta, angústia do vestibulando ou esquizofrenia.

O advogado de McDermott também considera a possibilidade de uma "defesa Prozac", ou seja, tentará mostrar que os efeitos colaterais do Prozac foram responsáveis pela fúria de seu cliente. Há um precedente: o caso de Joseph Wesbecker, que, em 1989, em Louisville, Kentucky, semeou a morte em seu lugar de trabalho e deu um tiro na cabeça.

A Eli Lilly (fabricante do Prozac) foi processada por sobreviventes e herdeiros das vítimas: eles alegavam a responsabilidade do remédio no comportamento de Wesbecker. A decisão inocentou o Prozac, mas, dois anos mais tarde, a Corte Suprema do Estado descobriu que a Lilly pagara secretamente aos querelantes para que, sem revelar o acordo, eles enfraquecessem seus argumentos e perdessem o processo (os detalhes estão no recente "Prozac Backlash", de J. Glenmullen).

Portanto é provável que o processo McDermott reanime as acusações contra o Prozac. Será tempo perdido debatendo uma questão mal colocada.

É verdade que a molécula do Prozac pode ocasionalmente produzir ansiedade e agitação graves, mas as histórias de Wesbecker e de McDermott denunciam sobretudo um extraordinário mau uso clínico. Um exemplo. Os antidepressivos, quando chegaram ao mercado, foram prescritos também para atenuar os efeitos de lutos dolorosos. Tratava-se de combater o efeito químico produzido no cérebro pela perda e assim atenuar o sofrimento.

Numerosos psiquiatras, psicólogos e psicanalistas acharam essa possibilidade bem-vinda, mas lembraram que o sujeito, mais cedo ou mais tarde, deveria fazer seu luto. Ou seja, melhor que o remédio não anestesie totalmente e que seja acompanhado por um trabalho psicoterapêutico para que o sujeito possa, aos poucos, reconhecer sua dor e conviver com ela.

Isso vale para todo sintoma psíquico. Alterar quimicamente humores, afetos e pensamentos sem oferecer a possibilidade de questionar o destino e as circunstâncias que levaram ao mal-estar é arriscado.

Wesbecker, um mês antes de seu surto assassino, passou a tomar Prozac sem acompanhamento psicoterapêutico. Quiseram "melhorar" a química de seu cérebro sem ajudá-lo a debater as idéias paranóicas que se iam formando na sua cabeça. A história de McDermott parece ser a mesma.

O sujeito está em ebulição? Pois bem, não vamos mexer com o que está na panela! Só apertemos a tampa! Mas, por mais que a panela seja de pressão, se ninguém encontra um jeito de baixar o fogo, não há tampa que aguente.

Nas histórias de McDermott e de Wesbecker, o culpado não é a molécula do Prozac, mas uma cultura que coloca uma fé infinita nas possibilidades de mudança e, ao mesmo tempo, seduzida pela facilidade, acredita em atalhos e milagres. Por exemplo, no atalho da pílula que cura logo e muda a cabeça sem conversa.

Hoje, os comentaristas do caso de McDermott estão prestes a acusar a molécula do Prozac com o mesmo entusiasmo de quem esperava que a molécula resolvesse sozinha os problemas da vida.

Ora, McDermott, por exemplo, nasceu Mike Martinez. Ele é latino, não irlandês. Aos 22 anos, decidiu mudar de nome e de origem. Engraçado, todos mencionam esse fato pouco banal, e ninguém pergunta: o que houve? Qual foi o drama interno (e social) que levou a uma decisão tão radical? Questão complicada, com a qual certamente McDermott não conseguiu lidar pelo atalho da mudança de nome. Assim como, nos últimos meses, as pílulas mágicas e silenciosas que ele tomou não resolveram as perguntas que seguiam fervilhando na sua cabeça. Foram apenas tentativas de segurar a tampa...

quinta-feira, 28 de dezembro de 2000

Prosperidade e miséria da década que acaba

Chega o fim do ano. Ao mesmo tempo, terminam o século e o milênio. Apesar dessa circunstância excepcional, é a década de 90 que, nestes dias, me parece merecer um balanço.

No controle da Polícia Federal americana, em Miami, há três filas: a da esquerda para os visitantes, a do meio para os residentes e a da direita para os cidadãos americanos. Um agente grita: "Vocês, cidadãos, passem à direita, avancem sem esperar...". E acrescenta: "You own it!". O tom maroto situa o significado de sua frase entre "é seu direito" e "vocês são donos do pedaço".

Penso, no estilo dos anos 90: "Falou certo! A democracia é uma espécie de co-propriedade. Há o dono da cobertura com piscina e o cara da quitinete do primeiro andar. No entanto são condôminos". Mas de onde vem essa idéia de democracia como condomínio? Lembro o antigo slogan da Bolsa de Nova York: "Own a share of America", ou seja, "Seja dono de uma parte (um título acionário) da América". Justamente criava uma confusão deliberada entre ser acionista e participar de uma democracia.

Desde os anos 40, vigora o projeto de convencer o cidadão de que possuir ações é um investimento seguro e altamente moral. Quando, mais tarde, os americanos foram convidados a investir autonomamente o dinheiro acumulado para suas aposentadorias, eles puderam, assim, participar da festa especulativa com todo o orgulho, pois quem investe em ações -sugeria o slogan- investe na nação, portanto ele persegue o bem comum.

Os anos 90 deram o toque conclusivo ao marketing da especulação. Graças à Internet, tornou-se fácil negociar ações e fundos passando por cima dos intermediários tradicionais. Dispensar os serviços dos agentes financeiros foi apresentado como uma revolução social, uma maneira de devolver o poder aos cidadãos. Graças ao investimento eletrônico, renascia a democracia direta.

Os cidadãos-investidores da década que acaba não precisam que ninguém os proteja contra os colossos da economia mundial. Eles desconfiam até dos governos, que sempre podem ser comprados por esses monstruosos poderes. Preferem manifestar diretamente sua vontade. Está cansado da IBM e prefere o estilo cool de Steve Jobs? Compre ações da Apple. Quer punir a Nike por ela explorar crianças tailandesas? Venda suas ações da companhia. O investidor exerceria sua influência diretamente sobre os verdadeiros centros do poder.

As cassandras repetem que o mundo de hoje seria governado por companhias que se situam acima dos governos nacionais eleitos e que são, portanto, insensíveis às formas tradicionais de controle político. Talvez elas tenham razão, mas já encontramos o remédio certo. O cidadão ideal dos anos 90, comprando e vendendo livremente suas ações, retoma as rédeas do mundo.

Essa idéia não teria vingado sem a ajuda de um outro consenso que também domina o espírito dos anos 90. A década começou simbolicamente, em novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim. A vitória do capitalismo sobre o socialismo foi promovida não como triunfo de formas melhores de participação democrática, mas como vitória da liberdade de mercado. O consenso dos anos 90 grita que o mercado livre é o grande, talvez o único, pressuposto da democracia, a qual só avançaria pela queda dos impostos alfandegários e das reservas de mercado.

A década promoveu nos EUA e, progressivamente, no mundo ocidental um consenso inédito segundo o qual investir, especular e consumir são as práticas democráticas por excelência. Uma fantástica operação cultural conseguiu fornecer um pretexto moral tanto à sede de lucro do capital financeiro como ao consumo supérfluo: ambos manifestariam nosso anseio de democracia.

Segundo os anos 90, a democracia vinga quando podemos comprar e vender livremente produtos e ações. Ou seja, o meio democrático de agir sobre o mundo, nossa expressão política eficiente é a compra e venda. Somos cidadãos por sermos investidores e consumidores. PFL, PSDB, PT... qualquer escolha é irrelevante. Mas importa que possamos circular nos corredores dos supermercados e escolher a Garoto contra a Nestlé e a Tobler. Logo voltaremos para casa e, indignados, sei lá, com o custo dos remédios, venderemos on line nossas ações farmacêuticas.

Em 1989, o capitalismo ganhou do socialismo. O sonho dos anos 90 talvez fosse que o capitalismo tripudiasse também sobre a democracia liberal e realizasse uma nova utopia econômica, psicológica e social na qual o mercado seria a única dimensão de nossas vidas.
Em novembro de 1999, exatamente dez anos após a queda do Muro de Berlim, houve a primeira de uma série de manifestações -a de Seattle contra a Organização Mundial do Comércio. Disseram que era uma baderna. Só podia: todo barulho é pouco para nos acordar do sonho dos anos 90.

Ainda bem que a década acabou. Como o Grinch com o Natal, acho que ela queria roubar a democracia.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2000

O paradoxo da razão e de Narciso

"Será que o Timor Leste deve mesmo ser independente?" Estava voltando de Dili, quando um amigo me colocou essa pergunta. Respondi, sem refletir, que não havia mais escolha. É o argumento óbvio, que vale nos lugares onde a brutalidade da repressão deixou um passivo inesquecível.

Onde isso não aconteceu, tomar partido é complicado. Será que a Catalunha deve se separar da Espanha? E a Córsega da França?

Em geral, aplaudimos a idéia de que todos têm direito de decidir seu destino. Que as pessoas e os povos escolham livremente se querem associar-se ou dissociar-se! Viva a autodeterminação.

Por outro lado, acreditamos que a razão deveria sugerir caminhos de convivência e de harmonia universais. Compartilhando uma mesma faculdade de pensar, poderíamos apaziguar todos os nossos dissídios à condição de argumentar segundo a santa razão.

Isso em tese, pois, de fato, sempre nos acompanha o sentimento de diferenças irreconciliáveis, que só serão resolvidas a facadas. Tendemos a explicar essa contradição da forma seguinte: no caminho da razão e da paz universal, nos perdemos correndo atrás de ódios étnicos e religiosos, racismos, egoísmos e oportunismos - paixões alimentadas por nosso narcisismo doentio. Extraviados, em vez de raciocinar, gritamos: "A minha (etnia, religião, opinião) é melhor que a sua...". "

Sujeitos racionais poderiam calmamente decidir quem jogou melhor no domingo passado. Agora, se você tiver uma paixão (irracional) para o Corinthians, e eu para o Palmeiras, não haverá diálogo.

Pois bem, esse iluminismo espontâneo, pelo qual nossa razão seria uma sábia conselheira, leva chumbo no relatório de Richard Nisbett sobre "Cultura e Sistemas de Pensamento", que já comentei aqui na semana passada.

Nisbett e seus colegas conceberam uma experiência para verificar se ocidentais e orientais lidam de maneiras diferentes com os argumentos que contestam suas opiniões. Os pesquisadores reuniram dois grupos, ambos compostos por coreanos e norte-americanos.

Ao primeiro grupo, eles apresentaram uma série de argumentos a favor de subvencionar uma pesquisa científica. Todos os membros desse primeiro grupo (coreanos ou americanos) foram uniformemente convencidos. Ao segundo grupo, eles apresentaram os mesmos argumentos a favor, mas acrescentaram uma outra série de argumentos (mais fracos) contra o projeto de pesquisa.

Aqui apareceu a diferença: os coreanos levaram em conta os argumentos contrários e ficaram menos convencidos da necessidade de fundar a pesquisa. Os americanos, longe disso, uma vez examinados os argumentos contrários, ficaram mais favoráveis ainda ao projeto que estava sendo criticado. De fato, eles ficaram mais entusiastas que seus conterrâneos que não foram expostos a nenhuma contestação do projeto.

Nisbett e colegas concluem: quando lhes forem apresentados argumentos contra, os orientais questionam sua própria opinião, enquanto os ocidentais, paradoxalmente, exaltam sua posição inicial. A lógica da reação é esta: quanto mais você me critica, tanto mais me convenço de que estou certo.

Está assim refutada a idéia de que o diálogo e o debate possam resolver nossos conflitos. Aparece uma propriedade inesperada da conduta racional ocidental: a oposição não produz argumentação, mas um fortalecimento "paixonal" da posição inicial.

Estávamos acostumados a perceber a razão como árbitro imparcial que tenta conciliar nossas diferenças raivosas. Eis que, segundo a experiência de Nisbett, a própria razão alimenta a divisão e o conflito.

Podíamos imaginar ingenuamente que houvesse dois sujeitos dentro de cada um de nós: por um lado, o idiota de Narciso, apaixonado por sua própria imagem e cuidadoso apenas de seu interesse. Pelo outro, um sujeito nobre e desinteressado que gostaria de obedecer à razão. A superioridade desse último brilharia num conflito moral resumido pela pergunta: você gosta mais da sua cara ou da verdade? Ora, a experiência proposta por Nisbett mostra que Narciso e a razão caminham juntos, indissociáveis e sem contradição. Aliás, nosso racionalismo fomenta nosso narcisismo: longe de controlar nossas paixões, a razão tem paixões por conta própria.

Curioso paradoxo: somos dotados de um formidável instrumento de debate, mas esse instrumento é sem muita eficácia para nós, pois, no fundo, pouco nos interessa que a razão triunfe. Só nos interessa ter razão.

P.S.: Há uma explicação possível desse paradoxo. A razão ocidental é fundada na certeza subjetiva: em princípio, os sujeitos sabem intuitivamente o que é racional ou não. Por exemplo, "uma afirmação não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa": essa certeza não vem dos livros nem da autoridade da tradição. Ela está em cada um de nós. Exercer a razão significa confiar em nossa intuição subjetiva. Talvez não seja de estranhar que o exercício da razão acabe encorajando um gigantismo do sujeito, o qual, uma vez que é dono da verdade, confunde facilmente suas razões com "a" razão.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2000

E se a razão não fosse universal?

Sophia Loren ganhou o Oscar em 1961. Tôni S., sentado ao meu lado na classe, murmurava: "Ash coixxash de Sophiia Lôooren...". Cada sílaba era um suspiro erótico.

Alguns colegas psicanalistas da escola francesa ainda falam de "estrutura" com a mesma emoção que Tôni reservava para as coxas da Loren. Se emocionam com a idéia de um mundo de conteúdos irrelevantes organizados por "fatos de estrutura" (vibrato).
Você faz manteiga com leite de iaque nas montanhas do Tibete, eu compro margarina vegetal na esquina. Eu sou anárquico, e você é monge, mas Santa Estrutura paira sobre nossas diversidades: pensaremos e sofreremos do mesmo jeito.

A idéia de uma razão universal é essencial para que a modernidade possa propor uma sociedade de sujeitos equalizados, dotados dos mesmos direitos.

Aliás, a onda racionalista francófona dos anos 50, 60 e 70 era bem-intencionada. Depois da guerra e do genocídio, afirmava: "Você usa quimono, e eu, terno. Não vamos nos matar por isso, pois raciocinamos igual".

A partir dos anos 70, surgiu a suspeita de que o racionalismo traduzisse as aspirações imperialistas de uma cultura branca, masculina, heterossexual e fundamentalmente européia ou norte-americana. Esse debate político não atingiu o dogma da universalidade da razão. Em geral, parecemos admitir a diversidade das idéias e dos costumes e manter a universalidade das formas básicas de perceber e pensar.

Nesse cenário, há uma novidade. No recente congresso da American Psychological Association, foi apresentada uma vasta pesquisa sobre "Cultura e Sistemas de Pensamento". O relatório (por Richard Nisbett, psicólogo da Universidade do Michigan, e outros) será publicado na "Psychological Review" de janeiro.

Nisbett e colegas testam sujeitos da Ásia Oriental e norte-americanos justamente para comparar as maneiras de perceber o mundo e de pensar.

Concluem: "Um número indefinidamente grande de processos cognitivos presumivelmente "básicos" são de fato "maleáveis". (...) As diferenças qualitativas entre populações excluem qualquer pretensão de universalidade desses processos".

Eis apenas três testes, como exemplos. Crianças chinesas e americanas devem organizar um grupo de figuras humanas. As chinesas colocam os meninos, as meninas e as mulheres de um lado e os homens do outro, porque -explicam- as crianças precisam de mães (é uma relação privilegiada).

Os pequenos americanos, ao contrário, separam os adultos das crianças, porque os grandes diferem dos pequenos. Ou seja, os asiáticos organizam a realidade baseando-se em relações entre os objetos, enquanto os americanos preferem organizá-la segundo categorias.

Participantes coreanos tendem a julgar não válido um juízo formalmente correto, se sua conclusão não for plausível. Os americanos mostram a tendência inversa. Ou seja, para os sujeitos asiáticos, o saber que deriva da experiência é, no mínimo, tão importante quanto o respeito da lógica formal.

Jovens japoneses e americanos observam e logo descrevem um desenho animado de cenas submarinas. A grande maioria dos americanos começa referindo-se ao peixe maior: "Havia um peixe nadando à direita". Quase todos os japoneses descrevem primeiro o fundo: "Havia um lago...".

Os japoneses produzem, em sua descrição, o dobro de referências a elementos não-animais (algas e pedras), que não oferecem suporte à identificação. Em contrapartida, os japoneses têm dificuldade em reconhecer o mesmo peixe quando ele reaparece em contextos diferentes.

Os resultados sugerem processos cognitivos discordantes (por exemplo, na apreensão da causalidade e das covariantes) e experiências do mundo bem distintas.

Para os autores, a origem das diferenças encontradas está na organização da sociedade, verdadeira matriz dos processos cognitivos. Esses seriam elaborados inicialmente para lidar com as imposições da convivência social.

Por exemplo, desde a Grécia antiga, o Ocidente valoriza a pessoa autônoma. É normal que essa cultura exalte o debate entre indivíduos, em que a argumentação e a lógica são reguladores decisivos.

Nas culturas asiáticas, ao contrário, é valorizada a continuidade de uma hierarquia harmônica: o compromisso, a conciliação e a coexistência dos opostos são aqui os valores -inclusive lógicos e cognitivos.

A ciência ocidental moderna, nessa perspectiva, é um efeito da tradição retórica individualista.

Para sua demonstração, Nisbett escolheu uma diferença cultural máxima -entre o Oriente e o ápice (americano) do Ocidente. No entanto ele antevê que, entre culturas mais próximas, haja outras diferenças da razão -mais finas, mas não menos significativas.

Para a cultura brasileira, que há tempo se pergunta qual é a relevância de sua diferença, a descoberta de Nisbett é crucial. Quem sabe consigamos verificar um dia se os jeitos sociais brasileiros determinam processos cognitivos específicos. Ou seja, até onde o Brasil é diferente?

Não acabei: na próxima semana, salvo urgências, mais Nisbett.

quinta-feira, 30 de novembro de 2000

Vacinas contra as drogas

Os consumidores assíduos de cocaína, heroína ou maconha que querem se livrar de sua dependência encontram hoje recursos químicos de duas classes. Existem produtos que atenuam a sensação de falta. E outros que podem substituir cada uma das drogas, oferecendo uma alternativa consolatória e -espera-se- menos nociva.

Em todo caso, é fundamental que o sujeito mantenha firme a determinação de parar. Para ajudá-lo nisso, há programas de desintoxicação, grupos de interajuda etc.

Ora, um artigo publicado na "New Scientist" de 10/6/2000 traz uma novidade: é possível que verdadeiras vacinas contra as drogas estejam prontas nos próximos três anos. O princípio é o seguinte: moléculas similares à molécula de uma droga são associadas a uma proteína que as torna detectáveis pelo sistema imunológico. Elas podem, assim, servir de isca para estimular a produção de anticorpos específicos.

Um preparado dessas moléculas é injetado no sujeito. A partir daí, as moléculas de droga que entrarem no corpo serão "reconhecidas" pelos anticorpos e aniquiladas, antes que a droga se torne ativa no organismo. Macacos, ratos e humanos, uma vez vacinados, por mais que cheirem ou injetem, não conseguem nenhum barato. O sujeito pára de se drogar, porque a droga não faz efeito. A idéia surgiu nos anos 70, com uma vacina contra a heroína, que funcionava (em macacos), mas oferecia proteção por um tempo muito curto. Nos anos 90, chegou uma vacina contra a cocaína, que foi mais bem-sucedida e está sendo testada em humanos. Há pesquisas em curso para quase todas as drogas.

À primeira vista, o projeto inspira simpatia. As vacinas podem ajudar os sujeitos que se desintoxicam e prevenir as recaídas. Quem sabe, elas ajudem a sarar as cracolândias das metrópoles mundiais.

Mas a idéia das vacinas é também um exemplo da extraordinária desistência moral de nossa cultura. Logo nós, modernos, inventores da liberdade individual, parecemos confiar mais numa modificação material de nossos corpos do que em nossas livres escolhas e decisões. Pois se trata disso: alguém se injeta uma vacina que torna a droga inoperante para que a tarefa de resistir aos charmes da droga seja delegada ao corpo. O sujeito pode afrouxar sua determinação, pois os anticorpos se manterão intransigentes.

Por esse caminho, imaginemos que alguém, por razões morais, decida praticar o celibato e se manter puro: em vez de disciplinar seus desejos incômodos, ele deveria se capar. Se um dia chegássemos a identificar genes ou zonas cerebrais responsáveis por comportamentos que preferiríamos evitar (violência, agressividade, mentira etc.), por que não pouparíamos nossos esforços éticos, recorrendo diretamente a alterações corporais?

Alguém achará que estou exagerando: afinal, quem decide tomar a vacina é o sujeito que quer ser desintoxicado. Livremente, ele resolveria nunca mais ser exposto à tentação da droga.
Certo. Mas aposto que, se dispuséssemos de vacinas contra as drogas, esqueceríamos de pedir o consentimento dos vacinados. Como evitar que um governo decida imunizar toda a população "de risco" (a começar pela carcerária)? Como evitar que os pais vacinem todos os seus rebentos? Qualquer profissional ou pai que conheça a inércia agressiva de um maconheiro adolescente concordaria com essa decisão preventiva. Em pouco tempo, a vacina contra as drogas seria obrigatória e universal.

Se a imunização valesse para a vida inteira (assim como é esperado), lamentaríamos um sério empobrecimento da experiência humana. Adeus, Thomas De Quincy, Charles Baudelaire, Allen Ginsberg e outros drogados. Mas isso é o menos grave.

Eis o pior: quando um caminho importante é impedido, os humanos sempre encontram outros jeitos e inventam desvios. Sobretudo comportamentos que insistem e se impõem (aparentemente) contra nossa vontade -como é o caso da toxicomania- não são escolhas de vida acidentais.

Eles são peças relevantes da engrenagem da personalidade. Por isso não podem ser retirados como se fossem espinhos no pé. Torná-los fisicamente impossíveis significa obrigar o sujeito a encontrar outros comportamentos que tenham uma função análoga na engrenagem. Ou seja, quem renunciar a se drogar apenas porque seus anticorpos impedem a ação da droga achará outros jeitos de gritar sua rebeldia ou sua tristeza.

Em suma, os anticorpos policiarão, talvez, um dia, o uso das drogas. Evitaremos, assim, esforços morais excessivos, e nossas vidas serão, desse ponto de vista, normalizadas. Mas não é o caso de se preocupar em demasia com a chegada de um mundo uniforme e aborrecido.

De fato, as vacinas antidrogas (e remédios análogos) prometem um mundo explosivo e incerto. Eis por que: algum mal-estar psíquico e social mantém as drogas bem perto do centro da experiência contemporânea. Se formos imunizados contra as drogas, o mal-estar será silenciado sem ser ouvido. É inevitável que ele insista e volte a se dizer sob outras formas, imprevisíveis. E provavelmente com violência renovada.

quinta-feira, 23 de novembro de 2000

Nas eleições americanas, ninguém votou feliz

Na sexta-feira , fui para o armário de ferramentas, achei uma fita adesiva de sete centímetros de largura, cortei um pedaço e censurei o canto direito inferior da tela da televisão. Alívio.

Quem, nestes dias, assiste à CNN via cabo sabe do que estou falando. O epílogo das eleições americanas é acompanhado pela presença constante dos índices da Bolsa de Valores. Aparecem alternadamente Dow Jones e Nasdaq, com sua variação do dia e uma pequena flecha- verde, para cima, ou vermelha, para baixo. Durante o tempo em que a Bolsa permanece aberta (das 9h30 às 16h, horário da Costa Leste norte-americana), os índices são atualizados constantemente.

É uma prática normal da CNN: as oscilações da Bolsa são notícias relevantes para o grande número de americanos que administram diretamente seu fundo de pensão.

Mas, no caso, foram dez dias de comentários, declarações e debates sobre o futuro político dos EUA com as siglas "Dow" e "Nasdaq" que piscavam, como mensagens subliminares, ludibriando a significação da eleição. Acima (mais exatamente, embaixo, à direita) de tudo o que Bush e Gore pudessem representar, Wall Street pisca. Bush quer impedir que os votos sejam recontados? Muito bem, e a Bolsa? Gore faz um gesto de conciliação? E a Bolsa? A pulsação dos índices parece ameaçar: cuidado, humanos, os deuses poderiam irritar-se.

Descobri que não sou o único incomodado com essa presença tutelar. Bastou sair de casa. Na televisão, aparecem os estados-maiores ameaçando brigas institucionais, assim como militantes democratas e republicanos quase se batendo. Talvez na Flórida as coisas estejam assim: com os dois partidos assoprando a brasa, os próprios jornalistas têm dificuldade em sair do tom polêmico da campanha.

Mas aqui, no nordeste dos EUA, duas semanas depois da eleição, a comédia dos resultados incertos está tendo um efeito diferente. A conversa sobre as eleições é frequente, mas sem entusiasmo: é um dever chato. Ela segue um cenário fixo -que descobri conversando com conhecidos ao redor de uma mesa de jantar. Logo verifiquei sua validade com vários desconhecidos, num café new age como Starbuck's, num bar para yuppies a fim de aperitivo e num pub enfumaçado frequentado por trabalhadores manuais.

No começo, sempre há indignação com o sistema eleitoral que está sendo objeto da zombaria mundial. Alguém lembra uma piada: a rainha Elizabeth teria decidido revogar a independência das colônias, já que essas não conseguem votar direito. Ou então Hugo Chávez e Fujimori estão a caminho da Flórida para monitorar o processo de recontagem dos votos.

A fase indignada dura pouco: logo todos concordam que a metodologia concreta da votação deve ser modernizada. Conclusão provisória: que contem os votos do melhor jeito e que a Justiça decida. E basta. Ninguém parece estar a fim de uma discussão partidária. Não é raro que, de ambos os lados, se comente que essa votação tão parelha é uma bênção -pois o eleito, seja ele quem for, não terá poder político nenhum para realizar suas promessas de campanha.

Isso confirma o que sugerem alguns comentadores: o voto dividido manifestaria que a nação aspira a um governo de centro ou de união. No mínimo, com o atraso do resultado das eleições, parece que os americanos tiveram o tempo de concluir que, na verdade, os dois candidatos não eram nem propunham nada do que eles queriam.

Os eleitores se reconciliam no malogro comum: ninguém, nesta eleição, votou feliz. Por isso é fácil conversar na hora de um desempate tão delicado. Mediocridade dos candidatos? É possível. Mas existe outra hipótese.

Três vezes, nestes últimos dias, ouvi comentarem que "não estaríamos neste pepino se, no lugar de Bush, John McCain tivesse sido escolhido como candidato republicano, pois ele ganharia disparado". A cada vez, os democratas presentes concordaram e declararam que eles também teriam votado nele.

Não sei se McCain teria ganhado, caso fosse escolhido como candidato. O fato é que ele aparece agora como um candidato que teria arrasado. Ora, além de suas qualidades morais, McCain era o único defensor de uma reforma radical do financiamento das campanhas. Ele é lembrado por isso: no imaginário de todos, em sua corrida presidencial, foi derrubado pelas corporações.
Ninguém lembra direito os detalhes da reforma proposta, mas, nas conversas de bar, sobra um princípio extremo: não há por que conferir a pessoas jurídicas o privilégio de apoiar candidatos. Afinal, essa deve ser a prerrogativa apenas de quem vota, do cidadão, da pessoa física, "da gente".

Até ontem, essa idéia era uma utopia democrática de ditos "marginais", lutando contra "o sistema". A surpresa é encontrá-la hoje circulando numa variedade de espíritos de classe média.

A eleição empatada encoraja todos a pensar que cada voto conta. Esse sentimento, temperado com uma dose básica de individualismo americano, parece avigorar a fé nas virtudes de uma democracia mais direta. Sobretudo menos vendida. Não seria mau.

quinta-feira, 16 de novembro de 2000

Conselhos para não gastar demais nas festas

É fácil , hoje, encontrar sujeitos que gastam muito mais do que podem -e não só no fim do ano. Eles preocupam os economistas e também os psicólogos e os psiquiatras. Pois há quem considere essa inclinação uma doença, talvez um vício.

Naturalmente, sempre se encontram explicações singulares. Um sujeito quer, inconscientemente, se desfazer de uma fortuna acumulada de maneira duvidosa. Outro deseja sua própria bancarrota, numa verdadeira fantasia erótica. E por aí vai.

Mas, atrás dessa variedade, há um pano de fundo. Nós, modernos, somos obrigados a gastar além de nossas necessidades. Melhor dizendo, nossas necessidades vão além da subsistência física: devemos adquirir e consumir, sobretudo para sermos reconhecidos por nossos concidadãos. Somos de classe A, B, C, D ou E não por nascença ou por outras qualidades intrínsecas, mas segundo quanto possuímos e consumimos, ou seja, segundo quanto gastamos.

Não é de estranhar, portanto, que as estatísticas repitam que os americanos de classe média não poupam nada e se endividam demais. Isso vale para aqueles que se beneficiaram da recente prosperidade dos EUA. Imagine o drama dos outros: empobrecem e devem aumentar os gastos -uma vez que, em nossa cultura, é essa a forma básica da competição social.

No entanto há algo além disso na conduta do gastador. A maioria dos sujeitos que se queixam de sua compulsão (e contemplam estupefatos as contas no fim do mês) compartilha uma fórmula mágica. Na hora de proceder a uma nova compra, eles dizem: "Com tudo o que eu trabalho, tenho direito!". Eles ultrapassam assim suas hesitações. As considerações sobre o dinheiro disponível são silenciadas. O que importa -afirma o sujeito- é que "trabalho dez horas por dia" ou então "saio à luta a cada manhã", "estou na batalha o tempo inteiro", portanto "mereço, é meu direito". Em suma, nós nos sentimos autorizados a gastar não por nossa solvência, mas por nossos méritos.

O cartão de crédito parece ter sido inventado para facilitar essa estranha aritmética. Ele tem uma função dupla. Estabelece meu status, que depende não do que eu tenho, mas de quanto posso gastar (os cartões dão acesso às salas VIPs dos aeroportos). E, sobretudo, o cartão me compreende: sabe que tenho menos dinheiro do que mereço e corrige essa injustiça, autorizando-me a comprar e consumir.

Gastando, afirmamos o triunfo de nossos méritos e de nossos direitos contra a inércia da conta bancária e o peso de nossas dívidas.

Não é uma surpresa que essa conduta seja tão popular. A modernidade começa quando o sujeito não é mais definido por seus deveres, mas por seus direitos.

Enquanto modernos, nosso destino não é ditado pelo serviço que devemos ao dono da terra, pelo dízimo que devemos à paróquia ou pela obediência e pelo respeito que devemos aos anciões da tribo. Em vez disso, nós vivemos livres, com o direito de dispor de nossa pessoa, de circular pelo mundo, de falar sem censura etc. Os direitos se multiplicam. O sujeito tradicional era mais bem descrito como rede de obrigações. Nós somos feixes de direitos.

Com isso, os limites concretos que contrariam o exercício de nossos direitos tornam-se insuportáveis e irrelevantes. Pouco importa que o sujeito ganhe R$ 12, R$ 30, R$ 50 ou R$ 200 por dia. Trabalha muito e, portanto, merece uma televisão de 36 polegadas e alta definição. Ele tem direito (subjetivo) -seja qual for sua mesada (desprezível consideração objetiva).
Ouço sujeitos com dificuldades financeiras: "Se não tenho direito a comer num bom restaurante depois de um dia de trabalho, para que trabalhar?". "Mereço umas férias, afinal, tenho direito de ter uma vida." E o senhor Cartão é o único que compreende nosso problema.
Essas considerações seriam apenas divertidas, se não fosse por um detalhe: no meio da afirmação (um pouco maníaca) de seus direitos, o sujeito moderno é triste.

É uma constatação clínica: a depressão acompanha a caravana aparentemente alegre de nossos direitos e reivindicações. Por quê?

Ultimamente, coube-me ajudar um homem arrasado por uma depressão grave, desde que lhe fora recusado o cartão de crédito em uma loja de departamentos. Havia uma clara desproporção entre esse incidente menor, sem consequências concretas, e a prostração do sujeito. Descobriu-se que a recusa inesperada da loja trazia a lembrança de que sempre resta uma obrigação fundamental, uma dívida que pesa. Ou seja, nosso "direito de ter uma vida" (merecida) não consegue abolir nosso dever de morrer um dia.

Morrer deve ser mais simples, sem dúvida, para quem nasce e vive como um devedor. No momento final, devolve um par de botas que sempre considerou emprestadas. Quem se define pelos direitos, e não pelos deveres, vive uma vida mais engraçada, mais aventurosa e, provavelmente, mais justa. Mas desaprende a morrer. Não lida bem com o fato de que um dia nosso crédito acaba.


É verdade que as companhias de cartões de crédito não nos prepararam bem para essa eventualidade.

quinta-feira, 9 de novembro de 2000

De novo, divórcios e crianças

Quinze dias atrás, nesta coluna, comentei uma pesquisa que desmente algumas banalidades afirmadas apressadamente desde os anos 60.
Segundo essa pesquisa, não é verdade que o divórcio afete as crianças só de maneira passageira. E a felicidade ou o alívio dos pais que se separam não parece ser um grande consolo para os rebentos do divórcio.

A perspectiva de ver os pais mais felizes não faz necessariamente a felicidade das crianças. Claro, elas sofrem também quando o casamento dos pais se eterniza numa tragicomédia de brigas ou no silêncio do ódio e da indiferença. No entanto a coluna queria salientar a leviandade de quem pinta o divórcio em cor-de-rosa.

Recebi uma enxurrada de e-mails: comentários e depoimentos, todos corajosos e complexos. Concordando ou não comigo, os leitores entenderam que eu propunha que os pais freassem seus impulsos divorcistas e pensassem mais nas crianças. Reconheço-me nessa sugestão, mas a questão é, obviamente, complicada. Por isso volto ao assunto.

A família sobreviveu às maiores mudanças de nossa sociedade e cultura. Parece ser a única instituição imortal -constante peça central da reprodução social. De fato, ela sobreviveu porque mudou, adaptou-se aos tempos.

Deixou de ser uma pequena tribo e se tornou nuclear, composta quase exclusivamente pelos pais e suas crianças. Também ela não se organiza mais para administrar bens em conjunto e assegurar a continuidade da dinastia.

Hoje ela se funda nos sentimentos de seus membros: é nuclear e apaixonada. Aliás, é nuclear justamente por ser fundada em um princípio -a paixão dos cônjuges.

Às vezes, o núcleo deve incluir os avós ou um parente que sobrou, mas é com pesar e abrindo uma exceção. Isso, não por ingratidão ou porque a convivência com os patriarcas ou os primos seja necessariamente chata, mas porque a casa é um ninho de amor e, como tal, requer uma intimidade protegida.

Aceitar conviver com outros é ameaçador: sugere que a festa amorosa acabou, e a obrigação da consanguinidade passou a prevalecer sobre as necessidades do sentimento. Na família moderna, o amor também rege o laço entre os pais e as crianças.

Certo, achamos que os miúdos nos devem respeito, porque tal é sua obrigação. Mas, no fundo, queremos que eles obedeçam por amor. Assim como nós, de fato, os provemos de cuidados não por obrigação de pais (que nos pareceria um dever bem abstrato), mas porque os amamos.

A família assim construída corresponde exatamente ao que somos: indivíduos apaixonados por nossa liberdade e convencidos de que a autenticidade dos sentimentos é nosso melhor guia. O resultado é uma instituição bonita, intensa e condicional: se o amor acaba, acaba a festa.
Podemos lamentar essa volatilidade, mas, de fato, ninguém aguentaria mais casamentos que não fossem justificados pelos sentimentos e pela esperança de uma união feliz. Assim como dificilmente os pais aguentariam crianças que obedecessem só por obrigação tradicional.

Aceitemos, então, os casamentos eternos enquanto duram. Resposta à pergunta "como reconhecer o fracasso?": no mínimo, seria bom evitar que ele fosse um efeito da intransigência, que surge quando a aspiração a ser feliz se transforma numa exigência imperiosa e impossível. Tipo: "Shangri-Lá!, não aceito nada menos que isso e quero que seja agora ou então nada".
Como observou com toda razão uma leitora, Maria Renata Pinto Coelho, "é o casamento -e não o divórcio- que nos é vendido como um conto de fadas".

A expectativa excessiva produz intolerância. Com isso, negociar e procurar os compromissos sempre necessários numa vida de casal (e, em geral, numa família) parecem constituir uma traição de nossos sonhos de união perfeita. Nós nos divorciamos por esperar demais do casamento.

Ora, as modalidades da convivência ou da separação dos pais transmitem às crianças uma espécie de lição de vida implícita. Por exemplo, um casamento mantido no sofrimento e na humilhação pode transmitir às crianças uma lição (péssima) de resignação e covardia. Outro, também mantido ao custo de mil compromissos, pode transmitir uma humildade saudável, ensinando que é possível amar, mesmo quando o parceiro não corresponde plenamente às nossas fantasias.

Do mesmo jeito, um divórcio pode ser uma lição de honestidade, significando que os pais não quiseram arcar com uma mentira. Outro divórcio pode simplesmente sugerir às crianças que a felicidade deve ser perseguida a qualquer custo.

Esse é o caso pior. Pois como convencer um adolescente de que ele deve ir para a escola e desistir do enésimo "baseado", se, no seu entender, seus pais se separaram logo para não desistir de nenhum hipotético prazer?

A moral de buscar prazer e felicidade a qualquer custo é, notou em seu e-mail outra leitora, Rosangela Padovan, um "sinal dos tempos", ou seja, mais uma causa que um efeito dos divórcios. Concordo. Mas essa não é uma razão para que os pais validem essa máxima duvidosa nem na hora de se separarem.

quinta-feira, 2 de novembro de 2000

Efeitos colaterais

Atendi vários sujeitos que procuravam (legitimamente) uma análise ou uma terapia para sofrer menos e viver melhor, mas que se preocupavam com as mudanças que a terapia poderia acarretar. Temiam que a experiência os transformasse ao ponto de empobrecer suas vidas. Tratava-se, quase sempre, de artistas, convencidos de que havia uma relação entre seus sofrimentos neuróticos e sua capacidade de criar e se expressar.

Imaginemos um exemplo análogo aos casos que conheci. Um sujeito viveu uma infância particularmente nefasta: sei lá, o Camboja na época de Pol Pot, deportações, campos, mortes, lutos e fome. Hoje, nosso sujeito -refugiado em terras hospitaleiras- faz desses horrores a fonte privilegiada de sua inspiração artística. Críticos e público reconhecem que sua produção expressa, por exemplo, uma angústia que alcança proporções universais. Nela, todo mundo reconhece um pouco de seu próprio desamparo.

Mas nosso artista acorda a cada noite urrando, perseguido por pesadelos de caveiras e meninos armados de metralhadora. Ele vive numa ansiedade que impede qualquer procura amorosa. A solidão multiplica sua dor.

Imagine agora que esse sujeito peça a ajuda de um psicanalista ou de um psicoterapeuta. Ele quer dormir melhor e aprender a sorrir. No entanto ele suspeita que seu sofrimento seja a alma de sua arte -ou seja, daquilo que ele tem de melhor para oferecer ao mundo. Sua preocupação não é apenas um cálculo oportunista como: se me curo, perco a habilidade que paga minhas contas. Há mais: separar-se desse sofrimento lhe parece uma traição, pela qual ele desistiria de ser ele mesmo.

Essa preocupação não deve ser minimizada. Em princípio, uma psicoterapia ou uma análise não produzem (não conseguem produzir) mudanças que não sejam desejadas pelo sujeito. Aliás, geralmente isso é considerado como um limite da eficácia das psicoterapias. Reclama-se de que elas não conseguem extirpar nossas neuroses como se extirpam sisos cariados. No caso que estou levantando, ocorre o contrário: os sujeitos receiam que suas neuroses sejam extirpadas como dentes.

Essas reflexões nascem lendo um artigo notável de Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria da Johns Hopkins University. O texto faz parte da coletânea "States of Mind" (editada por R. Conlan), que é, de longe, o conjunto de textos mais honestos e sérios que já li sobre a relação entre cérebro e mente (portanto entre psicoterapia, psiquiatria biológica, neurologia etc.).

Jamison constata que existe uma correlação estatística entre a criatividade artística e a psicose maníaco-depressiva. Contrariamente ao que sugeria a ideologia dos anos 60 e 70, a doença criativa não é a esquizofrenia, mas a mania, em sua alternância com a depressão. Ora, a psicose maníaco-depressiva tem origem genética. Mais cedo, mais tarde, o gene que torna alguns sujeitos vulneráveis a essa doença será isolado. Portanto disporemos de uma cura preventiva.
Redfield Jamison pergunta: "Se há uma relação entre desordens do humor e gênio artístico, que riscos corremos tratando a desordem ou mesmo, pelos testes e pela terapia genética, eliminando-a completamente?" O risco seria produzir uma humanidade futura sem os equivalentes de Schumann, Tennyson, Hemingway, Lowell, Edgar Poe etc.

Segundo Jamison, o problema é que, com o sofrimento maníaco-depressivo, seria suprimida uma parte relevante (embora dolorosa) da experiência humana. "Esperamos -ela escreve- que (os artistas) contemplem aqueles aspectos da vida que nós preferimos ignorar; que eles olhem para a brevidade da existência, que vejam a corrupção do universo e saibam como a morte nos espreita e que, com isso, ainda consigam afirmar a força da vida perante a morte. É bem possível que sofrer de psicose maníaco-depressiva permita a algumas pessoas criativas produzir essas reconciliações".

Jamison (que sofre ela mesma da doença) não minimiza o sofrimento maníaco-depressivo. Tampouco recusa os tratamentos possíveis. Mas lembra que a doença psíquica é também uma vivência que estende os limites da experiência humana. Suprimir geneticamente uma dimensão dessa experiência é tanto mais problemático quando, como nesse caso, ela permite a existência de obras que valem para todos.

Fácil egoísmo de leitor ou espectador? Acho que não. Muitos criadores não gostariam de se ver livres de sua mania e de sua depressão se, em troca, perdessem o que dá sentido a suas vidas. O poeta Robert Lowell dizia de suas crises de mania que "a glória, a violência e a banalidade dessa experiência" é algo que vicia. Certamente ele não aceitaria uma cura cujos passos ele não pudesse controlar cuidadosamente.

P.S.: A coluna da semana passada, "Crianças do Divórcio", suscitou um número inusitado de e-mails. Agradeço aos leitores. É impossível responder a todos. Na próxima quinta, retomarei o tema, debatendo algumas das questões levantadas pelos comentários recebidos.

quinta-feira, 26 de outubro de 2000

As crianças do divórcio

De 31 de outubro a 4 de novembro, acontecerá em Curitiba o Congresso Internacional de Ética e Cidadania. Apresentarei um relatório sobre as mudanças na família contemporânea.

É um tema ideal para um encontro no qual dialogarão juristas e psicanalistas. Pois, no caso da família, é possível verificar como as mudanças jurídicas pesam na transformação de nossa subjetividade.

Começarei por 1969, quando, na Califórnia, aceitou-se que maridos e mulheres se divorciassem sem pretextar adultérios ou crueldades físicas e mentais. Os legisladores ratificaram, assim, a opinião da maioria. Claro, há casamentos em que os cônjuges traem a confiança recíproca ou passam o tempo se jogando louça na cabeça. Mas, pensavam os californianos, na maioria dos casos, isso não é necessário para querer se separar. Chega de ter que inventar amantes e manchas roxas para convencer o juiz.

A lei autorizou, então, que dois adultos casados pudessem separar-se, desde que um deles, sem dramas e culpas, simplesmente não estivesse mais a fim. Você sabe como é, o tempo passa, o amor se perde, as crianças gritam, os cabelos do parceiro embranquecem e a pessoa se pergunta: não será a hora de viver dias mais agradáveis?

A lei californiana conquistou rapidamente o resto dos Estados Unidos e do mundo. Ganhou até nos lugares onde se divorciar continuou sendo complicado. Pois, de qualquer forma, a lei californiana promoveu um novo padrão de racionalidade em matéria de casamento. Tornou-se banal considerar que é legítimo (ou seja, justo, mesmo se não for legal) separar-se, quebrar uma família, quando um dos dois ou os dois acham que o laço perdeu a graça.

Faz sentido. Tentar ser feliz é um direito moderno. Por que deixaríamos que o casamento infernizasse nossa vida? Com a facilidade dos divórcios, surgiu a pergunta: como as crianças lidarão com essa experiência?

A psicologia produziu uma série de afirmações apressadas. Sem verificar, assegurou que seria muito melhor para os filhos lidar com a separação dos pais que assistir às suas brigas cotidianas e à sua constante infelicidade. Geralmente, acrescentou que, por mais que seja doloroso, o divórcio, para a criança, seria uma crise passageira.

Essas idéias eram palavras para justificar uma prática social que corresponde aos desejos dos adultos. J.Wallerstein, J.Lewis e S.Blakeslee acabam de publicar "The Unexpected Legacy of Divorce" (A herança inesperada do divórcio, Hyperion, NY), em que pesquisam filhos e filhas de divorciados ao longo de 25 anos. Demonstram que, para as crianças, o divórcio não é uma crise passageira, mas acarreta consequências que incidem sobre a vida adulta. Salvo casos de violência explícita, as crianças são mais felizes com uma família que se mantenha unida, mesmo que seja de briga em briga.

No livro, o divórcio é culpado por todo tipo de sequela nas crianças, desde depressões severas até dificuldades tardias na vida sentimental e amorosa. Os fatos são convincentes, mas faz falta uma explicação mais satisfatória que a trivialidade segundo a qual o divórcio seria traumático por produzir abandono ou, no mínimo, negligência por parte dos pais -muito preocupados em refazer suas vidas.

Ora, numa recente emissão de rádio consagrada ao livro, um sujeito telefonou para comentar: "Pois é, concordo com tudo, mas será que os pais não têm direito de ser um pouco felizes?".
A pergunta manifesta qual foi a mudança subjetiva ratificada pela lei californiana e desde então adotada pela consciência moderna. Ela diz que o projeto de ser feliz é mais importante do que qualquer obrigação -inclusive a de criar as crianças no quadro de uma família. Os pais que se divorciam transmitem esta opção a seus rebentos, que se tornam, portanto, os arautos da nova disposição subjetiva, assim resumida: o que mais importa é se dar bem.

A mudança em questão explica muito do que nos estranha na conduta das crianças do divórcio e, por extensão, dos jovens. Pois, quer seus pais sejam divorciados quer não, todos os jovens pertencem hoje à (primeira) geração do divórcio. São filhos da época em que a única obrigação institucional que sobreviveu na modernidade -a da família- cedeu, enfim, diante do ditado: procure sua felicidade individual!

Não é o caso de moralizar sobre essa mudança institucional e subjetiva. Seria apenas um exercício de nostalgia estéril e um pouco hipócrita. As autoras do livro sugerem uma série de medidas terapêuticas e preventivas para ajudar as crianças do divórcio. São idéias para limitar os danos, pois é duvidoso que possamos resistir a uma mudança já incorporada por nossa cultura.

Muitas vezes nos queixamos, porque nossos rebentos se engajariam pouco em causas nobres, se drogariam mais, tentariam prosperar sem suar nenhuma camisa e outros lugares-comuns da besteira parental. De fato, os ditos rebentos respondem ao que lhes foi transmitido quando decidimos que nosso anseio de felicidade, conforto e prazer não deve recuar- nem mesmo pelo bem deles.

quinta-feira, 19 de outubro de 2000

Saudosa maloca

Na próxima semana, vou a Porto Alegre para participar do congresso "Brasil: Descoberta/Invenção". De novo, os 500 anos. Comemorei a fatídica semana de abril em Porto Seguro, na Conferência dos 500 Anos dos Povos Indígenas. As questões levantadas naqueles dias seguem comigo.

Estamos vivendo a Década Internacional dos Povos Indígenas. Ela terminará com a Declaração dos Direitos Indígenas, que será votada na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 2002.
Um primeiro esboço da declaração é conhecido desde 1994. O eixo é a idéia de que a autonomia política e econômica de um povo é essencial para que ele possa preservar sua cultura.

Faz sentido. Afinal, os povos indígenas mantidos sob tutela política e à força de subsídios sociais tornam-se quase sempre miseráveis caricaturas de si mesmos. Seus usos e costumes, sua cultura e seu artesanato se reduzem a uma pacotilha de suvenires para turistas ecológicos.
Aproveitando minha estada em Sydney no mês de setembro, mergulhei um pouco no debate local sobre o presente e o futuro dos aborígines. Li várias defesas do separatismo, propondo que os aborígines constituam uma nação e um Estado à parte. Todos os autores afirmam que uma comunidade de cultura implica a autonomia, a soberania e a autodeterminação de uma nação.

Alguns contam com a Declaração de 2002 para que a reivindicação indígena possa ser levada a uma corte internacional, onde seria apoiada pelas Nações Unidas (que sancionarão a declaração). Entende-se que essa perspectiva dê alguns calafrios no governo australiano. Os governos americano e brasileiro também não achariam muito engraçado.

Mas, por mais que essas propostas pareçam incômodas aos governos e às maiorias culturais ocidentais, elas se fundam numa premissa com a qual todos parecem hoje concordar. Até quem se opõe ao separatismo reconhece que uma cultura deve ser preservada por algum tipo de autonomia e soberania. Ora, esse acordo automático me inspira um certo mal-estar.

Pois aparece, assim, um paradoxo: as idéias que alimentam o projeto de separatismo ou autonomia indígenas são obviamente opostas à colonização cultural dos povos indígenas. Mas essas idéias encontram um acordo quase unânime justamente por serem a fina flor da própria cultura ocidental.

Explico: as idéias de autodeterminação e soberania do povo são invenções da filosofia das luzes, aqui adaptadas à idéia de que a uma cultura deva corresponder uma nação -que nasce com o romantismo alemão. Em suma, os princípios pelos quais nos parece bom que os indígenas se separem e se autogovernem não foram transmitidos pelos anciães das tribos. Eles são importados.

Isso não muda minha simpatia para com os movimentos aborígine ou indígena. Mas corta o embalo: é chato descobrir que nossas melhores intenções podem ser culturalmente tão colonizadoras quanto uma integração forçada.

Nesse campo, o cúmulo é representado por nosso desejo de preservar as culturas indígenas. O cuidado com a preservação do passado, de seus monumentos e vestígios é uma paixão muito recente -nasceu na segunda metade do século 19. Ora, nosso desejo de preservar as culturas indígenas nasce porque, por considerá-las (erroneamente) como primitivas, achamos que elas sejam um resto de nosso passado. Queremos guardá-las intatas não por generosidade, mas como um álbum de daguerreótipos de família.

É bem possível que, com o pretexto de preservar, queiramos de fato forçar a permanência de nossos "protegidos" numa espécie de presente imutável, feito para satisfazer apenas nosso anseio nostálgico.

Alguém poderia responder: "Tanto faz! Preservando, damos a índios e aborígines uma chance para que vivam segundo sua cultura". Mas os fatos dizem outra coisa: as políticas de preservação das quais parecemos capazes podem ser tão genocidas quanto uma conquista. É o que percebemos quando visitamos reservas indígenas pelo mundo afora.

Quanto mais somos modernos, ou seja, quanto mais nos definimos pelas potencialidades de nosso futuro, tanto mais sofremos de nostalgia. Adoramos a nostalgia, porque ela nos confirma na ilusão de que temos uma identidade, embora perdida. Graças à nostalgia, acreditamos ser alguma coisa a mais do que nossa agenda de amanhã. Por isso, para nos "reencontrar", frequentamos pousadas sem luz elétrica, tomamos chás "orgânicos" e, no mesmo estilo, protegemos reservas indígenas.

Não é um acidente se essa preservação regularmente avilta o que queremos preservar. Precisamos da imagem de um passado feliz. Mas precisamos também que, vista de perto, essa imagem seja um pouco repugnante. Sem isso, não poderíamos continuar correndo. Ou seja, os índios são sábios, vivem de acordo com a natureza etc. Mas damos um jeito para que a maloca da reserva, de fato, feda a álcool e a abandono.

Azar dos índios: além de ter sua terra conquistada, vieram ocupar um lugar desconfortável da psique moderna -onde são idealizados, sob a condição de se perder na miséria.

segunda-feira, 2 de outubro de 2000

Encerramento

De fato, as medalhas de ouro são de prata coberta de folhas de ouro -seis gramas por medalha.

O Brasil estava antevendo cinco medalhas de ouro. Assim, perdemos 30 gramas de metal precioso. Não vamos fazer drama. Há de se convir que não é muito -sobretudo comparando com o ouro que, nos séculos passados, deixou o Brasil a destino da Europa.

Brincadeira à parte, não sei mesmo se é para reagir ao pouco sucesso nesta Olimpíada. Há a tentação de esquecer e pensar em outras coisas, que inelutavelmente parecerão mais sérias. Nesse caso, adotaremos a seguinte versão: os brasileiros melhoraram suas colocações em uma série de especialidades (isso é verdade). Apenas faltou um pouco de sorte.

Mas talvez essa seja uma boa ocasião para inventar uma política de cuidados com o esporte de competição, para que as alegrias oferecidas pelas vitórias futuras ajudem a criar e valorizar a imagem de uma comunidade de destino. Impor respeito geralmente ajuda a se respeitar a si mesmo.

Em Montreal-1976, a Austrália teve uma de suas piores atuações: nenhum ouro, uma prata e quatro bronzes. Em 24 anos -três gerações de atletas- subiu ao quarto lugar na classificação das nações (atrás de EUA, Rússia e China).

Como isso aconteceu? Imediatamente depois de Montreal, foi fundado o Instituto Australiano do Esporte (AIS), com o intento de reunir em Canberra todos os melhores atletas australianos, oferecendo-lhes a possibilidade de viver e treinar juntos e de viajar seguidamente para fora do país, confrontando-se com adversários internacionais. O Instituto se associou às diferentes federações, criando um programa de identificação de talentos, pelo qual são reconhecidos precocemente os fenótipos de possíveis atletas. É só uma indicação.

Hora de concluir. A cerimônia de encerramento foi melhor do que a de abertura -cheia de humor e ironia. Mas senti um mal-estar quando moças vestidas de Grécia antiga, caminhando hieraticamente em câmera lenta para sugerir valores sagrados, vieram passar a bandeira olímpica para o prefeito de Atenas. A música de fundo era tão óbvia quanto a tentativa de criar alguma significação elevada para o evento.

Tudo bem, o ideal olímpico é bonito etc. Mas a semântica de elevador sempre cheira a manipulação. Se as Coréias estiverem unidas em 2004, quando a juventude do mundo competirá em Atenas, não será por ter desfilado juntas em Sydney. O desfile terá sido a ocasião de expressar um anseio. Só isso. E já é bastante.

Os bons sentimentos, quando encenados ostensivamente, ficam melequentos e dão vontade de voltar logo para o mundo real.

domingo, 1 de outubro de 2000

Balanço olímpico

O primeiro-ministro australiano, John Howard, fez três observações que me chamaram a atenção.

A primeira tenta recuperar politicamente um sucesso esportivo. Howard não é muito favorável à autonomia dos aborígines e à idéia de compensações pelos abusos passados. Ele interpretou a vitória e a popularidade de Cathy Freeman como a prova de que a comunidade australiana estaria menos dividida do que dizem.

Para entender o alcance dessa declaração, imagine que, depois da bela conquista da prata no revezamento 4 x 100 m, FHC venha e declare que o Brasil está unido e solidário, pois quatro homens correram juntos até as estrelas.

Escutando esta primeira observação de Howard, quase fico contente que a campanha do Brasil seja um meio fracasso.

A segunda declaração do premiê é mais interessante. Segundo Howard, os australianos, a começar pela crianças, não praticam esporte quanto se esperaria. Isso parece estranho, pois é cômodo considerar os resultados olímpicos como uma consequência da difusão democrática do esporte. Ou seja, se todos pudessem nadar, jogar tênis, teríamos mais campeões. Na verdade, não é bem assim. Os países socialistas no passado simultaneamente democratizaram a prática do esporte e promoveram o esporte de competição. Mas as duas coisas não vão necessariamente juntas.

Uma piscina em cada escola não é suficiente para produzir dez Gustavo Borges e, entre eles, por fatalidade estatística, um Ian Thorpe. Para produzir atletas ainda é preciso um incentivo econômico, técnico e popular.

Aqui a coisa complica. Todos queremos uma piscina em cada escola. Mas não concordaríamos com a idéia de que seja também uma prioridade incentivar o esporte de competição para ganhar mais medalhas. Há coisas mais urgentes, você dirá com razão.

Mas considere o seguinte. Por que um grupo de fiéis se cotiza para construir uma igreja, quando cada um deles mal consegue pagar as contas do mês? É que, sem igreja, eles não constituiriam uma comunidade e cada um deles seria ainda mais derrelito no mundo. Por que organizar exposições e subvencionar as artes quando há famílias passando fome? Por que erigir monumentos quando ainda faltam casas? É que, sem tudo isso, os sem-teto ficariam também sem história, sem cultura e sem Brasil. A mesma lógica vale provavelmente para o esporte de competição.

Justamente, Howard -foi sua terceira observação- disse que os Jogos estavam sendo psicologicamente ótimos para a Austrália. Pois é, não gostaríamos de poder dizer o mesmo para o Brasil?

quinta-feira, 28 de setembro de 2000

Corre, Claudinei, Corre

Cathy Freeman vai tentar os 200 m rasos, que não são sua especialidade. Competirá sem pressão, tipo: se conseguir, melhor. A imprensa local crê num duelo entre Cathy e Marion Jones, a favorita. O marido da americana (CJ Hunter, campeão de arremesso de peso) testou positivo para anabolizantes. Isto não tem nada a ver com ela, mas é suficiente para pintá-la em cores sombrias, enquanto Cathy é toda sorrisos. O "Sydney Morning Herald" colocou-as em primeira página, com um subtítulo equivocado: "Same race, different circumstances". Eles queriam dizer "Mesma corrida, circunstâncias diferentes". Mas "race" significa também raça. Como Marion Jones é negra americana, lia-se: Cathy e Marion, mesma raça. O clima de reconciliação que preside a festa olímpica tem seus atos falhos.

O paralelo, na verdade, é furado. Na Austrália não houve importação de escravos africanos. O país, além de estar longe das rotas atlânticas, nasceu tarde demais para isso (o tráfico estava em seus últimos suspiros). Os aborígenes eram os habitantes imemoriais desta terra. Seu destino não é paralelo com o dos negros, mas com o dos índios sul e norte-americanos. Os jovens que carregam as medalhas e as bandeiras nas premiações estão vestidos como australianos do cerrado (o "bush"): akubra (é o chapéu de abas australiano), impermeável de tecido encerado e botas.

Os onipresentes voluntários estão também de akubra, mas com uma camisa cujos motivos evocam a arte aborígene. Os indícios apontam para o lugar onde a reconciliação pode acontecer: a terra do "outback", o retroterra quase deserto e selvagem. É o lugar onde é possível, sem idealizações baratas, reconhecer que os aborígenes sabem viver melhor do que os brancos. É o lugar onde a cultura aborígene impõe respeito. É também o lugar de um patrimônio compartilhado, de onde talvez australianos e aborígenes consigam hoje enxergar uma nação comum.

Ocorre que a Amazônia tem exatamente essa função para o Brasil. No entanto a reconciliação não está na ordem do dia. Basta conferir o lugar que coube aos índios nas festas dos 500 anos. Nada de estranho nisso tudo: o país tem uma tradição de exclusão antiga e estabelecida. Ele funciona a exclusão, assim como um motor, a gasolina. Falando nisso, Claudinei Quirino está na semifinal dos 200 m. Sua glória e dificuldade é que ele não é empurrado, como Cathy, pela vontade de inclusão de uma nação inteira.

Ao contrário, carrega nas costas o peso de uma persistente vontade de excluir. Por isso nesta madrugada terei ido lá gritar: "Corre, Claudinei, corre".