Cathy Freeman vai tentar os 200 m rasos, que não são sua especialidade. Competirá sem pressão, tipo: se conseguir, melhor. A imprensa local crê num duelo entre Cathy e Marion Jones, a favorita. O marido da americana (CJ Hunter, campeão de arremesso de peso) testou positivo para anabolizantes. Isto não tem nada a ver com ela, mas é suficiente para pintá-la em cores sombrias, enquanto Cathy é toda sorrisos. O "Sydney Morning Herald" colocou-as em primeira página, com um subtítulo equivocado: "Same race, different circumstances". Eles queriam dizer "Mesma corrida, circunstâncias diferentes". Mas "race" significa também raça. Como Marion Jones é negra americana, lia-se: Cathy e Marion, mesma raça. O clima de reconciliação que preside a festa olímpica tem seus atos falhos.
O paralelo, na verdade, é furado. Na Austrália não houve importação de escravos africanos. O país, além de estar longe das rotas atlânticas, nasceu tarde demais para isso (o tráfico estava em seus últimos suspiros). Os aborígenes eram os habitantes imemoriais desta terra. Seu destino não é paralelo com o dos negros, mas com o dos índios sul e norte-americanos. Os jovens que carregam as medalhas e as bandeiras nas premiações estão vestidos como australianos do cerrado (o "bush"): akubra (é o chapéu de abas australiano), impermeável de tecido encerado e botas.
Os onipresentes voluntários estão também de akubra, mas com uma camisa cujos motivos evocam a arte aborígene. Os indícios apontam para o lugar onde a reconciliação pode acontecer: a terra do "outback", o retroterra quase deserto e selvagem. É o lugar onde é possível, sem idealizações baratas, reconhecer que os aborígenes sabem viver melhor do que os brancos. É o lugar onde a cultura aborígene impõe respeito. É também o lugar de um patrimônio compartilhado, de onde talvez australianos e aborígenes consigam hoje enxergar uma nação comum.
Ocorre que a Amazônia tem exatamente essa função para o Brasil. No entanto a reconciliação não está na ordem do dia. Basta conferir o lugar que coube aos índios nas festas dos 500 anos. Nada de estranho nisso tudo: o país tem uma tradição de exclusão antiga e estabelecida. Ele funciona a exclusão, assim como um motor, a gasolina. Falando nisso, Claudinei Quirino está na semifinal dos 200 m. Sua glória e dificuldade é que ele não é empurrado, como Cathy, pela vontade de inclusão de uma nação inteira.
Ao contrário, carrega nas costas o peso de uma persistente vontade de excluir. Por isso nesta madrugada terei ido lá gritar: "Corre, Claudinei, corre".
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