O perigo de ouvir só o que a gente gosta
CONTARDO CALLIGARIS
DE PORTO ALEGRE
Na tarde de sexta-feira, fui escutar Eduardo Galeano. Queria uma fala bonita, depois de oficinas específicas e práticas. Foi bonito demais.
Galeano leu uma seleção dos textos de seu livro "Patas Arriba" (1999) e abriu-se o debate.
Recebeu perguntas sobre o subcomandante Marcos, McDonald's, a repressão do narcotráfico etc.
Fosse qual fosse a bandeira levantada, ele nunca decepcionava, ou seja, sempre conseguia responder exatamente o que a platéia queria ouvir.
Afirmou, por exemplo, que "a luta contra a droga é só uma máscara da guerra contra os pobres" e que não há americanos do norte na cadeia por tráfico de drogas. A platéia ovacionou feliz.
No começo, ele falou de uma crise universal da fé na capacidade de transformar a história e o mundo.
Ele tem razão. É necessário reconstituir a confiança na possibilidade de ação.
Mas será que o melhor caminho para isso é o culto coletivo de enunciados que têm apenas a função de celebrar nossa fé comum?
É o mesmo mecanismo da missa em latim: não importa o que está sendo falado, importa a celebração.
Desde o primeiro dia do Fórum, o trabalho de quem coloca as mãos na massa complexa do mundo parece ser silenciado pelo clamor da celebração.
Assim Jorge Beinstein afirmou que temos muito o que aprender com a democracia cubana. Ahmed Ben Bella (ex-presidente da Argélia) afirmou que não há democracia nos Estados Unidos, o que, na verdade, deveria seduzi-lo, pois também disse que ele não é democrata. Todos aplaudidíssimos.
Em Davos, os participantes pagam US$ 20 mil para escutar um argumento imprevisto -não seriam loucos de pagar esse dinheiro para ouvir o que já pensam.
No Fórum de Porto Alegre, às vezes, parece que milhares vieram do mundo inteiro para ouvir exatamente o que queriam e já sabiam. É verdade que é de graça e, com isso, a festa é legal.
Mas se o problema é tomar (um pouco) as rédeas do mundo, melhor levar a realidade mais a sério.
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