quinta-feira, 7 de dezembro de 2000

E se a razão não fosse universal?

Sophia Loren ganhou o Oscar em 1961. Tôni S., sentado ao meu lado na classe, murmurava: "Ash coixxash de Sophiia Lôooren...". Cada sílaba era um suspiro erótico.

Alguns colegas psicanalistas da escola francesa ainda falam de "estrutura" com a mesma emoção que Tôni reservava para as coxas da Loren. Se emocionam com a idéia de um mundo de conteúdos irrelevantes organizados por "fatos de estrutura" (vibrato).
Você faz manteiga com leite de iaque nas montanhas do Tibete, eu compro margarina vegetal na esquina. Eu sou anárquico, e você é monge, mas Santa Estrutura paira sobre nossas diversidades: pensaremos e sofreremos do mesmo jeito.

A idéia de uma razão universal é essencial para que a modernidade possa propor uma sociedade de sujeitos equalizados, dotados dos mesmos direitos.

Aliás, a onda racionalista francófona dos anos 50, 60 e 70 era bem-intencionada. Depois da guerra e do genocídio, afirmava: "Você usa quimono, e eu, terno. Não vamos nos matar por isso, pois raciocinamos igual".

A partir dos anos 70, surgiu a suspeita de que o racionalismo traduzisse as aspirações imperialistas de uma cultura branca, masculina, heterossexual e fundamentalmente européia ou norte-americana. Esse debate político não atingiu o dogma da universalidade da razão. Em geral, parecemos admitir a diversidade das idéias e dos costumes e manter a universalidade das formas básicas de perceber e pensar.

Nesse cenário, há uma novidade. No recente congresso da American Psychological Association, foi apresentada uma vasta pesquisa sobre "Cultura e Sistemas de Pensamento". O relatório (por Richard Nisbett, psicólogo da Universidade do Michigan, e outros) será publicado na "Psychological Review" de janeiro.

Nisbett e colegas testam sujeitos da Ásia Oriental e norte-americanos justamente para comparar as maneiras de perceber o mundo e de pensar.

Concluem: "Um número indefinidamente grande de processos cognitivos presumivelmente "básicos" são de fato "maleáveis". (...) As diferenças qualitativas entre populações excluem qualquer pretensão de universalidade desses processos".

Eis apenas três testes, como exemplos. Crianças chinesas e americanas devem organizar um grupo de figuras humanas. As chinesas colocam os meninos, as meninas e as mulheres de um lado e os homens do outro, porque -explicam- as crianças precisam de mães (é uma relação privilegiada).

Os pequenos americanos, ao contrário, separam os adultos das crianças, porque os grandes diferem dos pequenos. Ou seja, os asiáticos organizam a realidade baseando-se em relações entre os objetos, enquanto os americanos preferem organizá-la segundo categorias.

Participantes coreanos tendem a julgar não válido um juízo formalmente correto, se sua conclusão não for plausível. Os americanos mostram a tendência inversa. Ou seja, para os sujeitos asiáticos, o saber que deriva da experiência é, no mínimo, tão importante quanto o respeito da lógica formal.

Jovens japoneses e americanos observam e logo descrevem um desenho animado de cenas submarinas. A grande maioria dos americanos começa referindo-se ao peixe maior: "Havia um peixe nadando à direita". Quase todos os japoneses descrevem primeiro o fundo: "Havia um lago...".

Os japoneses produzem, em sua descrição, o dobro de referências a elementos não-animais (algas e pedras), que não oferecem suporte à identificação. Em contrapartida, os japoneses têm dificuldade em reconhecer o mesmo peixe quando ele reaparece em contextos diferentes.

Os resultados sugerem processos cognitivos discordantes (por exemplo, na apreensão da causalidade e das covariantes) e experiências do mundo bem distintas.

Para os autores, a origem das diferenças encontradas está na organização da sociedade, verdadeira matriz dos processos cognitivos. Esses seriam elaborados inicialmente para lidar com as imposições da convivência social.

Por exemplo, desde a Grécia antiga, o Ocidente valoriza a pessoa autônoma. É normal que essa cultura exalte o debate entre indivíduos, em que a argumentação e a lógica são reguladores decisivos.

Nas culturas asiáticas, ao contrário, é valorizada a continuidade de uma hierarquia harmônica: o compromisso, a conciliação e a coexistência dos opostos são aqui os valores -inclusive lógicos e cognitivos.

A ciência ocidental moderna, nessa perspectiva, é um efeito da tradição retórica individualista.

Para sua demonstração, Nisbett escolheu uma diferença cultural máxima -entre o Oriente e o ápice (americano) do Ocidente. No entanto ele antevê que, entre culturas mais próximas, haja outras diferenças da razão -mais finas, mas não menos significativas.

Para a cultura brasileira, que há tempo se pergunta qual é a relevância de sua diferença, a descoberta de Nisbett é crucial. Quem sabe consigamos verificar um dia se os jeitos sociais brasileiros determinam processos cognitivos específicos. Ou seja, até onde o Brasil é diferente?

Não acabei: na próxima semana, salvo urgências, mais Nisbett.

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