"Será que o Timor Leste deve mesmo ser independente?" Estava voltando de Dili, quando um amigo me colocou essa pergunta. Respondi, sem refletir, que não havia mais escolha. É o argumento óbvio, que vale nos lugares onde a brutalidade da repressão deixou um passivo inesquecível.
Onde isso não aconteceu, tomar partido é complicado. Será que a Catalunha deve se separar da Espanha? E a Córsega da França?
Em geral, aplaudimos a idéia de que todos têm direito de decidir seu destino. Que as pessoas e os povos escolham livremente se querem associar-se ou dissociar-se! Viva a autodeterminação.
Por outro lado, acreditamos que a razão deveria sugerir caminhos de convivência e de harmonia universais. Compartilhando uma mesma faculdade de pensar, poderíamos apaziguar todos os nossos dissídios à condição de argumentar segundo a santa razão.
Isso em tese, pois, de fato, sempre nos acompanha o sentimento de diferenças irreconciliáveis, que só serão resolvidas a facadas. Tendemos a explicar essa contradição da forma seguinte: no caminho da razão e da paz universal, nos perdemos correndo atrás de ódios étnicos e religiosos, racismos, egoísmos e oportunismos - paixões alimentadas por nosso narcisismo doentio. Extraviados, em vez de raciocinar, gritamos: "A minha (etnia, religião, opinião) é melhor que a sua...". "
Sujeitos racionais poderiam calmamente decidir quem jogou melhor no domingo passado. Agora, se você tiver uma paixão (irracional) para o Corinthians, e eu para o Palmeiras, não haverá diálogo.
Pois bem, esse iluminismo espontâneo, pelo qual nossa razão seria uma sábia conselheira, leva chumbo no relatório de Richard Nisbett sobre "Cultura e Sistemas de Pensamento", que já comentei aqui na semana passada.
Nisbett e seus colegas conceberam uma experiência para verificar se ocidentais e orientais lidam de maneiras diferentes com os argumentos que contestam suas opiniões. Os pesquisadores reuniram dois grupos, ambos compostos por coreanos e norte-americanos.
Ao primeiro grupo, eles apresentaram uma série de argumentos a favor de subvencionar uma pesquisa científica. Todos os membros desse primeiro grupo (coreanos ou americanos) foram uniformemente convencidos. Ao segundo grupo, eles apresentaram os mesmos argumentos a favor, mas acrescentaram uma outra série de argumentos (mais fracos) contra o projeto de pesquisa.
Aqui apareceu a diferença: os coreanos levaram em conta os argumentos contrários e ficaram menos convencidos da necessidade de fundar a pesquisa. Os americanos, longe disso, uma vez examinados os argumentos contrários, ficaram mais favoráveis ainda ao projeto que estava sendo criticado. De fato, eles ficaram mais entusiastas que seus conterrâneos que não foram expostos a nenhuma contestação do projeto.
Nisbett e colegas concluem: quando lhes forem apresentados argumentos contra, os orientais questionam sua própria opinião, enquanto os ocidentais, paradoxalmente, exaltam sua posição inicial. A lógica da reação é esta: quanto mais você me critica, tanto mais me convenço de que estou certo.
Está assim refutada a idéia de que o diálogo e o debate possam resolver nossos conflitos. Aparece uma propriedade inesperada da conduta racional ocidental: a oposição não produz argumentação, mas um fortalecimento "paixonal" da posição inicial.
Estávamos acostumados a perceber a razão como árbitro imparcial que tenta conciliar nossas diferenças raivosas. Eis que, segundo a experiência de Nisbett, a própria razão alimenta a divisão e o conflito.
Podíamos imaginar ingenuamente que houvesse dois sujeitos dentro de cada um de nós: por um lado, o idiota de Narciso, apaixonado por sua própria imagem e cuidadoso apenas de seu interesse. Pelo outro, um sujeito nobre e desinteressado que gostaria de obedecer à razão. A superioridade desse último brilharia num conflito moral resumido pela pergunta: você gosta mais da sua cara ou da verdade? Ora, a experiência proposta por Nisbett mostra que Narciso e a razão caminham juntos, indissociáveis e sem contradição. Aliás, nosso racionalismo fomenta nosso narcisismo: longe de controlar nossas paixões, a razão tem paixões por conta própria.
Curioso paradoxo: somos dotados de um formidável instrumento de debate, mas esse instrumento é sem muita eficácia para nós, pois, no fundo, pouco nos interessa que a razão triunfe. Só nos interessa ter razão.
P.S.: Há uma explicação possível desse paradoxo. A razão ocidental é fundada na certeza subjetiva: em princípio, os sujeitos sabem intuitivamente o que é racional ou não. Por exemplo, "uma afirmação não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa": essa certeza não vem dos livros nem da autoridade da tradição. Ela está em cada um de nós. Exercer a razão significa confiar em nossa intuição subjetiva. Talvez não seja de estranhar que o exercício da razão acabe encorajando um gigantismo do sujeito, o qual, uma vez que é dono da verdade, confunde facilmente suas razões com "a" razão.
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