Na madrugada de quinta-feira passada, no centro de São Paulo, dez moradores de rua foram atacados a cacetadas na cabeça durante o sono. Até hoje (terça-feira, quando fecho esta coluna), quatro morreram.
No domingo, novo ataque, do mesmo jeito e no mesmo lugar: morreram mais dois.
Fala-se dos mortos e dos que estão por um fio, mas não se fala das seqüelas para os feridos. Se eles têm pinos que não batem direito, paulada a mais, paulada a menos, qual a diferença? Quando reconheceremos que os loucos e os perdidos são sujeitos como nós?
Levantam-se hipóteses: foi a obra de sicários a mando de comerciantes querendo "limpar" a área? Ou um acerto de contas do tráfico de drogas?
Mas a imagem que me persegue é outra: um pequeno bando de assassinos, na madrugada, percorrendo o centro da cidade, enfurecidos e jocosos como personagens de "Laranja Mecânica", de barra na mão. No meu pesadelo, por escárnio, a primeira matança começou onde nasceu a cidade; vejo eles descerem pela rua São Bento e pela 15 de Novembro, levarem a morte para a praça da Sé e para a praça João Mendes, assassinarem com gosto o travesti Pantera, na esquina com a Tabatingüera. E vão embora pela rua da Glória.
No domingo, os mesmos ou outros voltaram para completar a obra. De onde veio o ódio necessário para erguer o bordão?
Não penso tanto no massacre da Candelária, que foi a tiros, quase profissional. Penso no índio Galdino, queimado vivo em Brasília em 1997, e na morte de Edson Neri da Silva, em 2000, logo na praça da República.
O assassinato de Galdino foi uma diversão para filhos de donos do poder. Colocaram fogo num índio como amarrariam uma serpentina ao rabo de um vira-lata: vamos ver se o animal grita e pula quando a coisa esquenta. O "passatempo" desses adolescentes mimados é diferente do ofício metódico dos assassinos de hoje.
Mas a história de Edson Neri da Silva pode ajudar a entender o que aconteceu na semana que acaba. Você lembra? Foi a obra de "skinheads" decididos a acabar com "uma bicha". Os massacres de homossexuais sempre falam da homossexualidade reprimida de quem mata. Sem exceção, os assassinos tentam abolir uma fantasia sua. Batendo no "veado" na rua, querem acabar com o "veado" que não os deixa dormir, o "veado" que está dentro deles.
É o mesmo ódio que anima os idiotas que passam de carro ao lado do Jockey Clube, à noite, para zombar dos travestis. Gritam injúrias para silenciar sua própria incerteza de gênero e sexo.
Ora, aposto que os assassinos desta semana são tão próximos dos moradores de rua quanto eram próximos de suas vítimas os "skinheads" da praça da República em 2000. Aposto que são sujeitos de uma pequena classe média que a falta de perspectivas ameaça com o espectro da miséria. Aposto que sua fúria homicida é a vontade de apagar a imagem de seu próprio futuro possível. Mataram moradores de rua para "festejar" sua diferença, da mesma forma que os "skinheads" de 2000 quiseram silenciar um desejo que os assombrava.
Na Folha de domingo, Gilberto Dimenstein citou dados recentes da Fundação Seade: em São Paulo, desde 1995, o desemprego entre jovens de 18 a 24 anos subiu de 18% a 30%. Gilberto comentava que tamanho desemprego é um dos "combustíveis da delinqüência". Esse combustível não leva só a assaltar quem tem mais; ele também leva a massacrar quem não tem nada, para esmagar a imagem de um destino que espreita.
O que fazer? Além de prender e punir, podemos inventar uma sociedade em que ninguém esteja a fim de matar a cacetadas o futuro que ele receia. E podemos lembrar que, nessa sociedade, alguém pode perder casa, renda, endereço, identidade e até o nome, mas nem por isso será esquecido, nem por isso parará de ser dos nossos.
Na São Paulo de meus sonhos, depois dos acontecimentos da semana passada, teria acontecido o seguinte. Espontaneamente, na noite de segunda-feira, os edifícios e as casas dos Jardins, de Perdizes, da Mooca, do Tatuapé, da Lapa, da Vila Mariana, do Sumaré, do Itaim etc. iriam se esvaziando. Um a um ou em família, os paulistanos sairiam às ruas, com um saco de dormir embaixo do braço, uma lanterna e uma garrafa térmica. E tomariam o caminho do centro. Nas praças e nas ruas por onde passaram os assassinos, eles se espalhariam, para passar a noite. A maioria não dormiria. Conversaríamos com o vizinho do momento ou ficaríamos acordados por medo dos ratos e das baratas que circulam nas sarjetas. Tanto faz. Seria um jeito de afirmar que a cidade é nossa, não da morte, e que, como qualquer cidade, temos nossos loucos e nossos perdidos: eles abandonaram a corrida, mas continuam parte de nossa comunidade.
Segunda à noite, centenas de representantes de entidades religiosas e de direitos humanos organizaram uma vigília pelas ruas do centro. O evento não ganhou as primeiras páginas, mas foi, até agora, a melhor resposta aos assassinatos.
Sejamos realistas, peçamos o impossível. Que tal decretar um dia em memória dos mortos desta semana e instituir uma tradição pela qual, a cada ano, passaríamos uma noite ao relento, ao lado de nossos moradores de rua?
quinta-feira, 26 de agosto de 2004
quinta-feira, 19 de agosto de 2004
Proposta para a criação da Anlivimp
Li o projeto de lei que instituiria a Ancinav, Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual.
Fui conquistado pelos argumentos. Sugiro que o governo institua uma agência análoga para fiscalizar a produção e a difusão de ficção, ensaios e poesia: a Anlivimp, Agência Nacional do Livro e dos Impressos.
À diferença dos jornais e das revistas (que também é urgente monitorar), os livros atingem um número reduzido de cidadãos. Mesmo assim, eles influenciam, direta ou indiretamente, "os valores éticos, históricos, políticos e sociais cultivados pelo povo".
Portanto não podemos deixar que sua produção e difusão fiquem nas mãos dos autores (que são pessoas suspeitas, freqüentemente vistas em botecos) e das editoras (que podem ser ligadas a capitais estrangeiros e que sempre preferem os livros que se vendem bem). Ainda menos podemos confiar no critério dos leitores, que são profundamente alienados, visto que compram livros diferentes dos que nós gostaríamos que eles lessem.
Agora, para o bem da nação, a produção e a distribuição serão fiscalizadas de maneira a oferecer, não obras que fazem sonhar e que divertem, mas obras que apresentem "finalidades educativas, artísticas e informativas" e obras que protejam "os valores éticos e sociais da pessoa e da família". Com isso, o setor editorial evoluirá de maneira "harmônica com as metas do desenvolvimento social do país". É bom que essas indicações sejam vagas, de forma a justificar qualquer intervenção que a Anlivimp venha a julgar necessária.
Não se trata de instituir uma censura. Na regulação das atividades literárias e editoriais, "a liberdade será a regra, constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Público". Como as leis repressivas são sempre decretadas como "leis excepcionais", seria melhor evitar o termo "exceção", pois a imprensa é maldosa e se pega a esses detalhes.
A Anlivimp promoverá a "produção independente" de obras "atentas à valorização da cultura brasileira e de suas peculiaridades regionais", assegurando "o direito dos brasileiros de ver e produzir sua imagem" nos textos escritos como no audiovisual. Graças aos fundos arrecadados com impostos e multas, a Anlivimp financiará obras recusadas pelas editoras dinheiristas e cosmopolitas. Um poema de 48 mil versos em rima, escrito por um conhecido meu e engavetado pela ganância das editoras, será enfim apreciado. O poema é como a gente gosta: regionalista e educativo, pois trata de uma épica luta sertaneja para parar de fumar. Seu título e primeiro verso (conhecido pelos sortudos que tiveram acesso à obra) é "O Cangaceiro de Aço Acabou Seu Maço".
A Anlivimp aumentará "a competitividade da produção" literária e editorial brasileira -tanto no país como no exterior.
No exterior, combinaremos nossas promoções editoriais com as promoções turísticas. Por exemplo, distribuiremos folders representando o Cangaceiro de Aço e uma sambista mulata, ambos sorrindo enquanto balançam a rede em que um turista estrangeiro toma uma caipirinha. Não é uma boa?
No país, a coisa vai ser fácil, pois, por sorte, o leitor brasileiro é pobre. Bastará aumentar o imposto sobre as obras estrangeiras para que ele escolha as nacionais. Ora, os livros e impressos de autores estrangeiros serão sujeitos ao Fome-Cultura (o imposto de Fomento Editorial), de 150%.
Serão fiscalizadas as vitrinas. As livrarias, sob pena de multa, reservarão 50% de seu espaço de exposição a autores nacionais, 30% a autores regionais locais, e só nos 20% restantes será permitido expor obras de autores estrangeiros.
A cada encomenda de livro de autor estrangeiro, as livrarias deverão comprar três exemplares de livros de autores nacionais. As pilhas acumuladas transmitirão ao público a impressão de um sucesso e o encorajarão a comprar.
Outro caso (que exigirá um Fome de 250%) é o dos impressos importados, particularmente perniciosos por ameaçarem a soberania da língua nacional. Sabemos de fonte autorizada que 30% dos impressos vendidos pela livraria Cultura são em língua estrangeira. No lançamento do último volume da série de Harry Potter, a livraria vendeu mais de mil exemplares da edição em inglês só em São Paulo. Para onde vai a nação, se os jovens, que mal aprenderam a língua portuguesa, já lêem numa outra língua? Isso sem considerar que as histórias de Harry Potter, como mostrou um francês (melhor não citá-lo no texto definitivo; afinal, é um estrangeiro), talvez não estejam em harmonia com nossas metas e não promovam os valores que nos importam.
O Ministério da Cultura poderia também instituir a Andim (Agência Nacional do Disco e das Músicas), para fiscalizar a produção e a difusão de gravações de músicas e intérpretes estrangeiros ou de intérpretes nacionais em língua estrangeira (caso mais grave ainda). Seria ingênuo subestimar a influência da música sobre os costumes etc.
1) Esta coluna é irônica. Voltarei ao assunto para tentar entender a paixão de fiscalizar que, às vezes, se apodera de quem governa.
2) As citações são extraídas do preâmbulo e dos artigos 1 a 8 do projeto de lei que instituiria a Ancinav.
Fui conquistado pelos argumentos. Sugiro que o governo institua uma agência análoga para fiscalizar a produção e a difusão de ficção, ensaios e poesia: a Anlivimp, Agência Nacional do Livro e dos Impressos.
À diferença dos jornais e das revistas (que também é urgente monitorar), os livros atingem um número reduzido de cidadãos. Mesmo assim, eles influenciam, direta ou indiretamente, "os valores éticos, históricos, políticos e sociais cultivados pelo povo".
Portanto não podemos deixar que sua produção e difusão fiquem nas mãos dos autores (que são pessoas suspeitas, freqüentemente vistas em botecos) e das editoras (que podem ser ligadas a capitais estrangeiros e que sempre preferem os livros que se vendem bem). Ainda menos podemos confiar no critério dos leitores, que são profundamente alienados, visto que compram livros diferentes dos que nós gostaríamos que eles lessem.
Agora, para o bem da nação, a produção e a distribuição serão fiscalizadas de maneira a oferecer, não obras que fazem sonhar e que divertem, mas obras que apresentem "finalidades educativas, artísticas e informativas" e obras que protejam "os valores éticos e sociais da pessoa e da família". Com isso, o setor editorial evoluirá de maneira "harmônica com as metas do desenvolvimento social do país". É bom que essas indicações sejam vagas, de forma a justificar qualquer intervenção que a Anlivimp venha a julgar necessária.
Não se trata de instituir uma censura. Na regulação das atividades literárias e editoriais, "a liberdade será a regra, constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Público". Como as leis repressivas são sempre decretadas como "leis excepcionais", seria melhor evitar o termo "exceção", pois a imprensa é maldosa e se pega a esses detalhes.
A Anlivimp promoverá a "produção independente" de obras "atentas à valorização da cultura brasileira e de suas peculiaridades regionais", assegurando "o direito dos brasileiros de ver e produzir sua imagem" nos textos escritos como no audiovisual. Graças aos fundos arrecadados com impostos e multas, a Anlivimp financiará obras recusadas pelas editoras dinheiristas e cosmopolitas. Um poema de 48 mil versos em rima, escrito por um conhecido meu e engavetado pela ganância das editoras, será enfim apreciado. O poema é como a gente gosta: regionalista e educativo, pois trata de uma épica luta sertaneja para parar de fumar. Seu título e primeiro verso (conhecido pelos sortudos que tiveram acesso à obra) é "O Cangaceiro de Aço Acabou Seu Maço".
A Anlivimp aumentará "a competitividade da produção" literária e editorial brasileira -tanto no país como no exterior.
No exterior, combinaremos nossas promoções editoriais com as promoções turísticas. Por exemplo, distribuiremos folders representando o Cangaceiro de Aço e uma sambista mulata, ambos sorrindo enquanto balançam a rede em que um turista estrangeiro toma uma caipirinha. Não é uma boa?
No país, a coisa vai ser fácil, pois, por sorte, o leitor brasileiro é pobre. Bastará aumentar o imposto sobre as obras estrangeiras para que ele escolha as nacionais. Ora, os livros e impressos de autores estrangeiros serão sujeitos ao Fome-Cultura (o imposto de Fomento Editorial), de 150%.
Serão fiscalizadas as vitrinas. As livrarias, sob pena de multa, reservarão 50% de seu espaço de exposição a autores nacionais, 30% a autores regionais locais, e só nos 20% restantes será permitido expor obras de autores estrangeiros.
A cada encomenda de livro de autor estrangeiro, as livrarias deverão comprar três exemplares de livros de autores nacionais. As pilhas acumuladas transmitirão ao público a impressão de um sucesso e o encorajarão a comprar.
Outro caso (que exigirá um Fome de 250%) é o dos impressos importados, particularmente perniciosos por ameaçarem a soberania da língua nacional. Sabemos de fonte autorizada que 30% dos impressos vendidos pela livraria Cultura são em língua estrangeira. No lançamento do último volume da série de Harry Potter, a livraria vendeu mais de mil exemplares da edição em inglês só em São Paulo. Para onde vai a nação, se os jovens, que mal aprenderam a língua portuguesa, já lêem numa outra língua? Isso sem considerar que as histórias de Harry Potter, como mostrou um francês (melhor não citá-lo no texto definitivo; afinal, é um estrangeiro), talvez não estejam em harmonia com nossas metas e não promovam os valores que nos importam.
O Ministério da Cultura poderia também instituir a Andim (Agência Nacional do Disco e das Músicas), para fiscalizar a produção e a difusão de gravações de músicas e intérpretes estrangeiros ou de intérpretes nacionais em língua estrangeira (caso mais grave ainda). Seria ingênuo subestimar a influência da música sobre os costumes etc.
1) Esta coluna é irônica. Voltarei ao assunto para tentar entender a paixão de fiscalizar que, às vezes, se apodera de quem governa.
2) As citações são extraídas do preâmbulo e dos artigos 1 a 8 do projeto de lei que instituiria a Ancinav.
quinta-feira, 12 de agosto de 2004
Preâmbulo sobre o projeto de fiscalizar cinema e audiovisual
Na rua, esbarro nos restos de um assalto. Na roda de curiosos que espera a chegada de uma viatura da polícia, ferve um debate. Há o partido da cesta básica: só voltaremos a ser donos de nossas ruas quando, enfim, todos tiverem o que comer. E há o partido da bala básica: não adianta oferecer desculpas, criminoso é criminoso, mate logo.
Conclusão majoritária: o problema é duplo, faltam as cestas e faltam as balas nos revólveres da polícia.
No dia seguinte, um amigo, que se prepara para ser professor e está terminando seu estágio, comenta que uma coisa é óbvia em matéria de disciplina: não adianta que um professor mande alunos para a diretoria a cada aula. O que adianta é a qualidade do ensino. A mesma turma é infernal com um professor duríssimo, mas pouco preparado, e ordeira com outro professor, que nunca levanta a voz, mas transmite uma matéria interessante.
Relaciono a observação do amigo com a conversa na roda do assalto. Se tomarmos a disciplina escolar como exemplo, podemos perguntar: como é mantida a ordem que permite uma boa convivência social? A ameaça de expulsão e a merenda escolar são indispensáveis, mas não bastam. É necessário um outro tipo de alimento, mais "espiritual".
Olho pela minha janela: torres, edifícios, casas, as antenas dos prédios da Paulista. Somos muitos, diferentes e amontoados num espaço exíguo. O que faz com que a gente consiga conviver? Certo, a polícia acaba reprimindo os que são excluídos a tal ponto que lhes falta o mínimo para viver (conviver é o último de seus problemas). A polícia também cuida dos que não são excluídos, mas não querem saber de convivência.
No entanto, não é por medo da polícia que não enveneno o cachorro da vizinha, que late a noite inteira (o cachorro, não a vizinha). Não é por medo da cadeia que trabalho em vez de inventar um esquema fraudulento.
O que torna possível a convivência é outra coisa. É um patrimônio comum de coisas humildes e sublimes, chatas e bonitas, banais e extraordinárias: vozes do rádio, imagens da televisão, filmes, livros nas bibliotecas e nas livrarias, quadros nas salas e nas galerias, jornais nas bancas, poesias e romances lidos ou que ninguém leu e ficam no fundo das gavetas, orçamentos do mês, bate-papos noturnos de internautas, conversas nos botecos, jogos de cartas, torcidas de futebol e receitas de bolo.
Esse saco de gatos, que se chama cultura, é também um saco de normas, hábitos e costumes que praticamos sem perceber. A sociedade é complexa, e ninguém saberia compilar o código dessas regras, mas, sem elas, viveríamos num pesadelo, em que só a repressão nos defenderia da barbárie.
O professor que cativa seus alunos pela qualidade de sua aula está cultivando-os, fornecendo-lhes o necessário para uma convivência social possível.
Em suma, conviver exige inclusão (pão para todos), repressão normativa e riqueza de uma cultura compartilhada.
Os bons governos administram a repressão necessária (que não pode ficar nas mãos dos cidadãos), promovem a inclusão (tarefa assistencial) e, quanto à riqueza cultural, limitam-se a fomentá-la, pois sabem que é graças a ela que a sociedade se auto-regula (com acento sobre "auto"), é graças a ela que a ordem social pode dispensar a repressão.
Essas funções do bom governo devem ser mantidas separadas. Por exemplo, não se recusa assistência médica a um preso nem cesta básica à família indigente de um assassino.
Ora, o Ministério da Cultura acaba de formular um "rascunho" de lei para criar uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. O preâmbulo, que expõe os motivos do projeto, manifesta uma ótima compreensão da função da cultura. É dito que o cinema e o audiovisual definem "padrões de comportamento social" e são "a forma mais rápida e eficiente" de circulação dos "valores éticos, históricos, políticos e sociais cultivados" pelo povo.
No entanto, uma vez reconhecida a relevância da cultura na vida da nação, o projeto quer demonstrar que é fundamental criar "meios de controle e fiscalização das atividades cinematográficas e audiovisuais".
É como se um inspetor pedagógico, ao se dar conta de que, numa aula, os alunos se interessam e se cultivam, confundisse fomentar com reprimir e anunciasse: "Vocês gostaram muito das aulas sobre a era Vargas; a partir de amanhã, quem, numa redação, disser que Vargas não era bonito ficará sem caderno. Na recidiva, tirarei a caneta também". Na aula seguinte, ninguém prestará atenção. Na bagunça, só sobrará o recurso da disciplina.
O redator do preâmbulo imagina que, controlando e fiscalizando a produção cultural, seja possível instalar nos cidadãos os hábitos e costumes desejados (por ele). Parece pensar: "Se há normas, devo ser eu quem as dita".
Ora, como a história cansou de mostrar, não se controla a produção cultural; quem quer controlá-la e fiscalizá-la só consegue torná-la clandestina ou matá-la.
Esse é o meu preâmbulo. O governo deixou 60 dias para que a sociedade civil discuta o "rascunho". Como sou civil e faço parte da sociedade, quero contribuir.
Conclusão majoritária: o problema é duplo, faltam as cestas e faltam as balas nos revólveres da polícia.
No dia seguinte, um amigo, que se prepara para ser professor e está terminando seu estágio, comenta que uma coisa é óbvia em matéria de disciplina: não adianta que um professor mande alunos para a diretoria a cada aula. O que adianta é a qualidade do ensino. A mesma turma é infernal com um professor duríssimo, mas pouco preparado, e ordeira com outro professor, que nunca levanta a voz, mas transmite uma matéria interessante.
Relaciono a observação do amigo com a conversa na roda do assalto. Se tomarmos a disciplina escolar como exemplo, podemos perguntar: como é mantida a ordem que permite uma boa convivência social? A ameaça de expulsão e a merenda escolar são indispensáveis, mas não bastam. É necessário um outro tipo de alimento, mais "espiritual".
Olho pela minha janela: torres, edifícios, casas, as antenas dos prédios da Paulista. Somos muitos, diferentes e amontoados num espaço exíguo. O que faz com que a gente consiga conviver? Certo, a polícia acaba reprimindo os que são excluídos a tal ponto que lhes falta o mínimo para viver (conviver é o último de seus problemas). A polícia também cuida dos que não são excluídos, mas não querem saber de convivência.
No entanto, não é por medo da polícia que não enveneno o cachorro da vizinha, que late a noite inteira (o cachorro, não a vizinha). Não é por medo da cadeia que trabalho em vez de inventar um esquema fraudulento.
O que torna possível a convivência é outra coisa. É um patrimônio comum de coisas humildes e sublimes, chatas e bonitas, banais e extraordinárias: vozes do rádio, imagens da televisão, filmes, livros nas bibliotecas e nas livrarias, quadros nas salas e nas galerias, jornais nas bancas, poesias e romances lidos ou que ninguém leu e ficam no fundo das gavetas, orçamentos do mês, bate-papos noturnos de internautas, conversas nos botecos, jogos de cartas, torcidas de futebol e receitas de bolo.
Esse saco de gatos, que se chama cultura, é também um saco de normas, hábitos e costumes que praticamos sem perceber. A sociedade é complexa, e ninguém saberia compilar o código dessas regras, mas, sem elas, viveríamos num pesadelo, em que só a repressão nos defenderia da barbárie.
O professor que cativa seus alunos pela qualidade de sua aula está cultivando-os, fornecendo-lhes o necessário para uma convivência social possível.
Em suma, conviver exige inclusão (pão para todos), repressão normativa e riqueza de uma cultura compartilhada.
Os bons governos administram a repressão necessária (que não pode ficar nas mãos dos cidadãos), promovem a inclusão (tarefa assistencial) e, quanto à riqueza cultural, limitam-se a fomentá-la, pois sabem que é graças a ela que a sociedade se auto-regula (com acento sobre "auto"), é graças a ela que a ordem social pode dispensar a repressão.
Essas funções do bom governo devem ser mantidas separadas. Por exemplo, não se recusa assistência médica a um preso nem cesta básica à família indigente de um assassino.
Ora, o Ministério da Cultura acaba de formular um "rascunho" de lei para criar uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. O preâmbulo, que expõe os motivos do projeto, manifesta uma ótima compreensão da função da cultura. É dito que o cinema e o audiovisual definem "padrões de comportamento social" e são "a forma mais rápida e eficiente" de circulação dos "valores éticos, históricos, políticos e sociais cultivados" pelo povo.
No entanto, uma vez reconhecida a relevância da cultura na vida da nação, o projeto quer demonstrar que é fundamental criar "meios de controle e fiscalização das atividades cinematográficas e audiovisuais".
É como se um inspetor pedagógico, ao se dar conta de que, numa aula, os alunos se interessam e se cultivam, confundisse fomentar com reprimir e anunciasse: "Vocês gostaram muito das aulas sobre a era Vargas; a partir de amanhã, quem, numa redação, disser que Vargas não era bonito ficará sem caderno. Na recidiva, tirarei a caneta também". Na aula seguinte, ninguém prestará atenção. Na bagunça, só sobrará o recurso da disciplina.
O redator do preâmbulo imagina que, controlando e fiscalizando a produção cultural, seja possível instalar nos cidadãos os hábitos e costumes desejados (por ele). Parece pensar: "Se há normas, devo ser eu quem as dita".
Ora, como a história cansou de mostrar, não se controla a produção cultural; quem quer controlá-la e fiscalizá-la só consegue torná-la clandestina ou matá-la.
Esse é o meu preâmbulo. O governo deixou 60 dias para que a sociedade civil discuta o "rascunho". Como sou civil e faço parte da sociedade, quero contribuir.
quinta-feira, 5 de agosto de 2004
Campanhas para eleitores reprimidos e narcisistas
As campanhas eleitorais são sempre um pouco humilhantes.
O mais freqüente é que elas apostem na idéia de que nós, eleitores, seríamos burros e mal-informados. Mas podem também apostar na idéia de que seríamos reprimidos ou fundamentalmente narcisistas. Antes de ilustrar esses casos com exemplos, uma observação.
No dia em que um candidato passar a nos tratar como gente grande, acredito que ganhará votos, seja qual for seu plano.
Sonho que alguém apareça na tela e diga: "Salvo exceções que explicarei, meus concorrentes são pessoas tão qualificadas e bem-intencionadas quanto eu. Temos em comum a vontade de fazer o que nos parece melhor; é claro, dentro do possível, que sempre é menor que o necessário. Somos todos, é óbvio, animados por uma ambição descomunal; sem isso, não estaríamos aqui. Mas nosso gosto pelo poder é corrigido pela vontade de servir o interesse público.
Agora, temos diferenças, sobre as quais, você, eleitor, deve se pronunciar.
É raro que as diferenças sejam de fundo (ninguém, hoje, promove projetos revolucionários). Quase sempre, são questões de prioridade (maneiras divergentes de decidir o que é mais urgente) ou de meios (concepções conflitantes de como chegar a resultados parecidos).
Pode ser que a propaganda eleitoral de meus sonhos nos mate de tédio, à força de argumentações sensatas. Mas ela teria suas vantagens.
Primeiro caso. Recentemente, a campanha de José Serra (candidato que tenho em grande estima) achou bom publicar em seu site na internet uma charge contra Marta Suplicy, intitulada: "Dona Marta e seus dois maridos". A idéia era levantar nossa indignação porque Marta visitou umas obras em companhia de seu ex-marido, o senador Eduardo Suplicy, o qual apóia a campanha de sua ex-mulher.
O texto queria que exclamássemos: "Hã! Marta quer a presença de Eduardo porque ele é muito amado em São Paulo!" (pois é, deveria fazer o quê? Convidar Fernandinho Beira-Mar? Não é normal que um candidato peça o apoio de quem tem a confiança dos eleitores?). Subentendido: "Se ela queria o apoio de Eduardo Suplicy, por que não continuou casada com ele, eh?" (quer dizer o quê? Será que cada candidato deve casar ou, quem sabe, passar noites de paixão com todas as figuras públicas que compartilham suas idéias e apóiam sua campanha? É esta a idéia: nada de palanque sem casamento ou coisa parecida?).
O fundo da mensagem proposta é, obviamente, que a Marta se saiu excessivamente bem; como diz o ditado, ela conseguiu ficar com o leite e com o queijo (com seu novo casamento e, mesmo assim, com o apoio de Eduardo). Imagine: não só ela se separa e volta a casar, mas mantém com seu ex-marido uma relação suficientemente amistosa para que o ressentimento não impeça um engajamento comum.
Essa "constatação" deveria inspirar nosso desgosto e levar-nos a votar alhures. Por quê? Fácil: porque é muita coisa, ou melhor, são coisas que muitos querem e não conseguem fazer. Mas pouco importam os detalhes; o que vale nesse apelo um pouco escroto é que somos chamados a votar contra quem "goza" demais.
Em geral, a birra inspirada pelos supostos "prazeres" dos outros tem esta motivação: detestamos os que alcançam o que nós não nos permitimos porque temos raiva de nossas próprias limitações. Em suma, a charge contra Marta pedia que nosso voto fosse inspirado pela repressão que impomos (ou que é imposta) a nossos desejos. Era um apelo aos eleitores reprimidos.
Outro caso, agora americano. No dia posterior à convenção democrata, um provedor de internet dos EUA pediu a seus assinantes que se pronunciassem sobre algumas citações dos discursos da convenção do Partido Democrata. As frases partidárias receberam, sistematicamente, 50% de votos a favor e 50% contra. É claro, a sociedade americana é politicamente dividida ao meio; se os democratas gostavam, os republicanos não gostavam. Mas havia uma citação (do discurso de Barack Obama) que dizia: "Não existem uma América progressista e uma América conservadora, existem os Estados Unidos da América". Essa frase levou 87% de aprovação.
Patriotismo genérico dos eleitores? Parece-me mais provável que os eleitores estejam cansados de serem contrapostos coletivamente. Talvez se lembrem do seguinte: o que eles compartilham de mais relevante não são as camisetas e os chapéus dos partidos, mas o barco no qual estão todos e para o qual se trata de inventar a melhor rota possível.
Ser democrata, republicano, serrista, malufista ou "martista" é uma maneira de abdicar de boa parte de nossa subjetividade em favor de uma identidade de grupo. É uma maneira de votar com a paixão narcisista de ser sempre igual a si mesmo e a alguns outros que são iguais à gente.
Pois é, eu (e não devo ser o único) preferiria que as campanhas me encorajassem a votar com meus sonhos e meus desejos, não com a raiva de minhas repressões nem com o conforto duvidoso de minhas identificações de grupo.
O mais freqüente é que elas apostem na idéia de que nós, eleitores, seríamos burros e mal-informados. Mas podem também apostar na idéia de que seríamos reprimidos ou fundamentalmente narcisistas. Antes de ilustrar esses casos com exemplos, uma observação.
No dia em que um candidato passar a nos tratar como gente grande, acredito que ganhará votos, seja qual for seu plano.
Sonho que alguém apareça na tela e diga: "Salvo exceções que explicarei, meus concorrentes são pessoas tão qualificadas e bem-intencionadas quanto eu. Temos em comum a vontade de fazer o que nos parece melhor; é claro, dentro do possível, que sempre é menor que o necessário. Somos todos, é óbvio, animados por uma ambição descomunal; sem isso, não estaríamos aqui. Mas nosso gosto pelo poder é corrigido pela vontade de servir o interesse público.
Agora, temos diferenças, sobre as quais, você, eleitor, deve se pronunciar.
É raro que as diferenças sejam de fundo (ninguém, hoje, promove projetos revolucionários). Quase sempre, são questões de prioridade (maneiras divergentes de decidir o que é mais urgente) ou de meios (concepções conflitantes de como chegar a resultados parecidos).
Pode ser que a propaganda eleitoral de meus sonhos nos mate de tédio, à força de argumentações sensatas. Mas ela teria suas vantagens.
Primeiro caso. Recentemente, a campanha de José Serra (candidato que tenho em grande estima) achou bom publicar em seu site na internet uma charge contra Marta Suplicy, intitulada: "Dona Marta e seus dois maridos". A idéia era levantar nossa indignação porque Marta visitou umas obras em companhia de seu ex-marido, o senador Eduardo Suplicy, o qual apóia a campanha de sua ex-mulher.
O texto queria que exclamássemos: "Hã! Marta quer a presença de Eduardo porque ele é muito amado em São Paulo!" (pois é, deveria fazer o quê? Convidar Fernandinho Beira-Mar? Não é normal que um candidato peça o apoio de quem tem a confiança dos eleitores?). Subentendido: "Se ela queria o apoio de Eduardo Suplicy, por que não continuou casada com ele, eh?" (quer dizer o quê? Será que cada candidato deve casar ou, quem sabe, passar noites de paixão com todas as figuras públicas que compartilham suas idéias e apóiam sua campanha? É esta a idéia: nada de palanque sem casamento ou coisa parecida?).
O fundo da mensagem proposta é, obviamente, que a Marta se saiu excessivamente bem; como diz o ditado, ela conseguiu ficar com o leite e com o queijo (com seu novo casamento e, mesmo assim, com o apoio de Eduardo). Imagine: não só ela se separa e volta a casar, mas mantém com seu ex-marido uma relação suficientemente amistosa para que o ressentimento não impeça um engajamento comum.
Essa "constatação" deveria inspirar nosso desgosto e levar-nos a votar alhures. Por quê? Fácil: porque é muita coisa, ou melhor, são coisas que muitos querem e não conseguem fazer. Mas pouco importam os detalhes; o que vale nesse apelo um pouco escroto é que somos chamados a votar contra quem "goza" demais.
Em geral, a birra inspirada pelos supostos "prazeres" dos outros tem esta motivação: detestamos os que alcançam o que nós não nos permitimos porque temos raiva de nossas próprias limitações. Em suma, a charge contra Marta pedia que nosso voto fosse inspirado pela repressão que impomos (ou que é imposta) a nossos desejos. Era um apelo aos eleitores reprimidos.
Outro caso, agora americano. No dia posterior à convenção democrata, um provedor de internet dos EUA pediu a seus assinantes que se pronunciassem sobre algumas citações dos discursos da convenção do Partido Democrata. As frases partidárias receberam, sistematicamente, 50% de votos a favor e 50% contra. É claro, a sociedade americana é politicamente dividida ao meio; se os democratas gostavam, os republicanos não gostavam. Mas havia uma citação (do discurso de Barack Obama) que dizia: "Não existem uma América progressista e uma América conservadora, existem os Estados Unidos da América". Essa frase levou 87% de aprovação.
Patriotismo genérico dos eleitores? Parece-me mais provável que os eleitores estejam cansados de serem contrapostos coletivamente. Talvez se lembrem do seguinte: o que eles compartilham de mais relevante não são as camisetas e os chapéus dos partidos, mas o barco no qual estão todos e para o qual se trata de inventar a melhor rota possível.
Ser democrata, republicano, serrista, malufista ou "martista" é uma maneira de abdicar de boa parte de nossa subjetividade em favor de uma identidade de grupo. É uma maneira de votar com a paixão narcisista de ser sempre igual a si mesmo e a alguns outros que são iguais à gente.
Pois é, eu (e não devo ser o único) preferiria que as campanhas me encorajassem a votar com meus sonhos e meus desejos, não com a raiva de minhas repressões nem com o conforto duvidoso de minhas identificações de grupo.
quinta-feira, 24 de junho de 2004
"Cazuza"
Estreou, na semana passada, "Cazuza - O Tempo Não Pára", de Sandra Werneck e Walter Carvalho.
O desfecho trágico da história é conhecido por todo mundo. Apesar disso, ela me proporcionou momentos de grande alegria. Mas não é só isso, não é só uma questão de momentos.
O filme me deixou numa espécie de felicidade pensativa. Tento explicar por quê.
Cazuza mordeu a vida com todos os dentes. A doença e a morte parecem ter-se vingado de sua paixão exagerada de viver. É impossível sair da sala de cinema sem se perguntar mais uma vez: o que vale mais, a preservação de nossas forças, que nos garantiria uma vida mais longa, ou a livre procura da máxima intensidade e variedade da experiência? Melhor viver a mil (e menos tempo) ou viver com moderação (e mais tempo)?
Digo que a pergunta se apresenta "mais uma vez" porque a questão é hoje trivial e, ao mesmo tempo, persecutória. É melhor ficarmos acordados até tarde pelo prazer da companhia ou voltar logo para casa e para a cama, já que, de manhã cedo, será a hora da esteira e da bicicleta? Vamos transar no domingo à noite ou será que a segunda é um dia muito pesado?
Obedecemos a uma proliferação de regras que são ditadas pelos progressos da prevenção. Ninguém imagina que comer banha, fumar, tomar pinga, transar sem camisinha e combinar, sei lá, nitratos com Viagra seja uma boa idéia. De fato, não é.
À primeira vista, em suma, parece lógico que concordemos sem hesitação sobre o seguinte: não há ou não deveria haver prazeres que valham um risco de vida ou, simplesmente, que valham o risco de encurtar a vida. De que adiantaria um prazer que, por assim dizer, cortasse o galho sobre o qual está sentado?
Mas, por trás dessa obviedade, esconde-se um estranho momento na história da moralidade. Durante muitos séculos, constatamos que a carne era fraca e que o espírito tinha sérias dificuldades em conter seus ímpetos. Ultimamente, encontramos uma solução elegante: delegamos à carne a tarefa de controlar a carne. A experiência dos prazeres deveria ser contida porque é anti-higiênica, biologicamente nociva, ruim para o corpo.
Por mais que a coisa faça sentido, ela não deixa de ser curiosa. No fundo, se admitirmos por um instante que nossa escolha moral nos define, chegaremos à conclusão de que homem bom é aquele que se resguarda; o mérito humano não dependeria das coisas e causas pelas quais arriscamos a vida, o mérito seria preservar a vida de qualquer forma.
Navegamos entre os mal-encarados que nos intimam "A bolsa ou a vida!" e os bem-encarados (bem demais) que nos intimam "O prazer ou a vida!". Ambos prefeririam que escolhêssemos ficar com vida. Eles têm razão, pois quem perde a vida perde também a bolsa ou o prazer. Mas acontece que, ao responder a essa intimações, dizemos sobretudo o que caracteriza nossa vida, o que faz que ela, aos nossos olhos, valha a pena: por exemplo, a bolsa, o prazer ou um tempo suplementar.
Os jovens têm uma razão básica para desconfiar de uma moral prudente e um pouco avara que sugere que escolhamos sempre os tempos suplementares. É que a morte lhes parece distante, uma coisa com a qual a gente se preocupará mais tarde, muito mais tarde. Mas sua vontade de caminhar na corda bamba e sem rede não é apenas a inconsciência de quem pode esquecer que "o tempo não pára". É também (e talvez sobretudo) um questionamento que nos desafia: para disciplinar a experiência, será que temos outras razões que não sejam só a decisão de durar um pouco mais?
Cuidado: o filme não é uma diatribe contra a "vida louca" ou a favor dela. Tampouco ele faz desse dilema uma tragédia. Ao contrário, ele contempla nosso desamparo moral com uma ternura parecida com a dos pais do próprio Cazuza (admiráveis Marieta Severo e Reginaldo Faria). É esse carinho que mantém nosso sorriso.
O amor dos pais de Cazuza pelo filho, aliás, constitui uma das tramas mais tocantes da história. Haverá alguém para achar que Cazuza ainda estaria entre nós, se eles tivessem controlado seu filho com rigor. Outros observarão que, se isso tivesse acontecido, Cazuza nunca teria existido. Provavelmente ambos têm razão. O que significa querer que nossos filhos vinguem? É justo deixar que, pela intensidade de seus desejos, queimem a vida como um cigarro? É certo forçá-los a respeitar nosso desejo de morrermos antes deles acima das paixões que podem consumi-los? Não conheço um pai que, alguma vez, não tenha se colocado essas perguntas.
O filme é imperdível para quem é ou já foi adolescente um dia, para quem é (ou será) pai de adolescente e, em geral, para quem se pergunta ou se perguntou um dia qual é o critério do bem ou do mal quando a paixão de viver é tamanha que ela ameaça nossa própria vida.
Resta agradecer a Daniel de Oliveira por sua performance no papel de Cazuza, assim como a Fernando Bonassi e Victor Navas pelos diálogos.
O desfecho trágico da história é conhecido por todo mundo. Apesar disso, ela me proporcionou momentos de grande alegria. Mas não é só isso, não é só uma questão de momentos.
O filme me deixou numa espécie de felicidade pensativa. Tento explicar por quê.
Cazuza mordeu a vida com todos os dentes. A doença e a morte parecem ter-se vingado de sua paixão exagerada de viver. É impossível sair da sala de cinema sem se perguntar mais uma vez: o que vale mais, a preservação de nossas forças, que nos garantiria uma vida mais longa, ou a livre procura da máxima intensidade e variedade da experiência? Melhor viver a mil (e menos tempo) ou viver com moderação (e mais tempo)?
Digo que a pergunta se apresenta "mais uma vez" porque a questão é hoje trivial e, ao mesmo tempo, persecutória. É melhor ficarmos acordados até tarde pelo prazer da companhia ou voltar logo para casa e para a cama, já que, de manhã cedo, será a hora da esteira e da bicicleta? Vamos transar no domingo à noite ou será que a segunda é um dia muito pesado?
Obedecemos a uma proliferação de regras que são ditadas pelos progressos da prevenção. Ninguém imagina que comer banha, fumar, tomar pinga, transar sem camisinha e combinar, sei lá, nitratos com Viagra seja uma boa idéia. De fato, não é.
À primeira vista, em suma, parece lógico que concordemos sem hesitação sobre o seguinte: não há ou não deveria haver prazeres que valham um risco de vida ou, simplesmente, que valham o risco de encurtar a vida. De que adiantaria um prazer que, por assim dizer, cortasse o galho sobre o qual está sentado?
Mas, por trás dessa obviedade, esconde-se um estranho momento na história da moralidade. Durante muitos séculos, constatamos que a carne era fraca e que o espírito tinha sérias dificuldades em conter seus ímpetos. Ultimamente, encontramos uma solução elegante: delegamos à carne a tarefa de controlar a carne. A experiência dos prazeres deveria ser contida porque é anti-higiênica, biologicamente nociva, ruim para o corpo.
Por mais que a coisa faça sentido, ela não deixa de ser curiosa. No fundo, se admitirmos por um instante que nossa escolha moral nos define, chegaremos à conclusão de que homem bom é aquele que se resguarda; o mérito humano não dependeria das coisas e causas pelas quais arriscamos a vida, o mérito seria preservar a vida de qualquer forma.
Navegamos entre os mal-encarados que nos intimam "A bolsa ou a vida!" e os bem-encarados (bem demais) que nos intimam "O prazer ou a vida!". Ambos prefeririam que escolhêssemos ficar com vida. Eles têm razão, pois quem perde a vida perde também a bolsa ou o prazer. Mas acontece que, ao responder a essa intimações, dizemos sobretudo o que caracteriza nossa vida, o que faz que ela, aos nossos olhos, valha a pena: por exemplo, a bolsa, o prazer ou um tempo suplementar.
Os jovens têm uma razão básica para desconfiar de uma moral prudente e um pouco avara que sugere que escolhamos sempre os tempos suplementares. É que a morte lhes parece distante, uma coisa com a qual a gente se preocupará mais tarde, muito mais tarde. Mas sua vontade de caminhar na corda bamba e sem rede não é apenas a inconsciência de quem pode esquecer que "o tempo não pára". É também (e talvez sobretudo) um questionamento que nos desafia: para disciplinar a experiência, será que temos outras razões que não sejam só a decisão de durar um pouco mais?
Cuidado: o filme não é uma diatribe contra a "vida louca" ou a favor dela. Tampouco ele faz desse dilema uma tragédia. Ao contrário, ele contempla nosso desamparo moral com uma ternura parecida com a dos pais do próprio Cazuza (admiráveis Marieta Severo e Reginaldo Faria). É esse carinho que mantém nosso sorriso.
O amor dos pais de Cazuza pelo filho, aliás, constitui uma das tramas mais tocantes da história. Haverá alguém para achar que Cazuza ainda estaria entre nós, se eles tivessem controlado seu filho com rigor. Outros observarão que, se isso tivesse acontecido, Cazuza nunca teria existido. Provavelmente ambos têm razão. O que significa querer que nossos filhos vinguem? É justo deixar que, pela intensidade de seus desejos, queimem a vida como um cigarro? É certo forçá-los a respeitar nosso desejo de morrermos antes deles acima das paixões que podem consumi-los? Não conheço um pai que, alguma vez, não tenha se colocado essas perguntas.
O filme é imperdível para quem é ou já foi adolescente um dia, para quem é (ou será) pai de adolescente e, em geral, para quem se pergunta ou se perguntou um dia qual é o critério do bem ou do mal quando a paixão de viver é tamanha que ela ameaça nossa própria vida.
Resta agradecer a Daniel de Oliveira por sua performance no papel de Cazuza, assim como a Fernando Bonassi e Victor Navas pelos diálogos.
quinta-feira, 17 de junho de 2004
Guerras íntimas
Trégua de política nacional e internacional. E volta às guerras íntimas.
A ocasião surgiu na semana passada, quando eu estava atendendo um casal briguento e, como de costume, tentava propor uma mediação.
Em regra, nas brigas, a gente age como aquele jogador que está perdendo e dobra raivosamente as apostas até, num último gesto, colocar em cima da mesa sua camisa, seu cachorro e sua aliança: a perspectiva de uma catástrofe conclusiva nos fascina com uma falsa promessa de paz no fim do túnel.
É banal, portanto, que, ao ser consultado por um casal em crise, o terapeuta tente acalmar o jogo.
Era o que eu estava fazendo, quando, de repente, o marido me interrompeu com uma certa irritação: "Mas quando você considera que um casamento não vale mais a pena?".
A pergunta me pegou. E gostaria de tentar responder.
Todos vivemos, de uma maneira ou de outra, um conflito entre o que desejamos e o que nos permitimos desejar. E é bom que seja assim. Se nos autorizássemos tudo o que queremos, a vida e a convivência social seriam complicadas.
Em outras palavras, é normal que a gente navegue num equilíbrio mais ou menos precário entre os desejos que brotam (devaneios, projetos, tesões) e as mil vozes (conscientes ou inconscientes) que nos inibem, que nos pedem procrastinação e desistência ou, simplesmente, que propõem escolhas diferentes.
A indústria farmacêutica conhece bem esse conflito básico; seus maiores sucessos comerciais são remédios que tentam balancear as duas vertentes. A Ritalina para quem não consegue focalizar os esforços, de tanto que seus desejos proliferam; os antidepressivos para quem não deseja o suficiente, de tanto escutar as vozes que aconselham a abstenção, a espera, a prudência e a preguiça.
É irônico, aliás, que, depois de alguns séculos de modernidade (de dois a cinco, segundo a data que a gente escolha para começar a contar), sejamos reduzidos a delegar à química a tarefa de disciplinar o desejo. Mas esse é outro assunto.
Recursos químicos à parte, o conflito em questão produz quase sempre projeções. Ou seja, é freqüente que, para evitar os tormentos da contradição interna, atribuamos aos outros (em particular, aos que nos são mais próximos, mas também ao mundo em geral) a função de nos impedir de desejar além da conta.
São aquelas lamúrias: queria mesmo ser trompetista, mas não deu porque é uma carreira incerta e é preciso pagar a mensalidade da escola das crianças; queria passar as noites nas casas de suingue, mas não ficaria bem para minha mulher se encontrássemos alguém que a conhece; queria passar o dia como uma amélia, cozinhando geléias naturais e bolos de chocolate, mas meu marido quer uma boneca de luxo.
É claro que nós mesmos preferimos a família ao trompete, a respeitabilidade ao suingue e a vida urbana à geléia. Mas é mais fácil encarar nossas desistências transformando os outros em imaginários carrascos de nosso desejo: "Foi por causa deles".
É banal, portanto, que, num casal, cada um considere que o parceiro e o casamento são responsáveis pelas renúncias. "Se não tivesse casado tão cedo, hoje seria atriz", e fica pudicamente esquecido que a futura atriz preferiu casar a encarar filas, testes, provas e fracassos.
Essas acusações, triviais numa crise, não constituem uma boa razão para descartar a relação. Ao contrário, é graças a essas acusações recíprocas que cada um poderia encontrar (e, eventualmente, confirmar ou amenizar) as defesas que ele mesmo inventou para evitar um de seus desejos. Brigando com o outro, que quis um filho logo e, "portanto, acabou com minha carreira de cantora lírica", ganho uma chance de descobrir que, de fato, eu mesma quis ter um filho e que ainda me debato com o preço que esse desejo me custou (a carreira de cantora lírica, que, aliás, talvez eu não tivesse a coragem de peitar). Em suma, acusando o outro, consigo brigar com minhas próprias contradições, preguiças, inibições ou covardias.
Em geral, quando as separações acontecem porque acusamos nosso parceiro de ser um obstáculo em nossa vida, o prognóstico é péssimo. Se o outro era a tela na qual eu projetava impedimentos que eu mesmo invento, é quase garantido que projetarei os mesmos impedimentos no parceiro de minha próxima relação. Em vez de separar-se, seria melhor se dar o tempo e a coragem de aproveitar o dissídio e lidar com aquela parte de mim que me incomoda e que meu parceiro me faz o favor de encarnar.
Então, como responder à pergunta do marido? Será que nenhuma separação se justifica?
Não é bem assim, pois acontece, às vezes, que um dos parceiros vista com gosto a camisa que lhe é oferecida, ou seja, acontece que ele ou ela achem graça em colocar limites ao desejo do outro.
A diferença é pequena, mas decisiva e fácil de ser constatada: tudo depende de quem fala. Se eu me queixo de que o outro me impede de ser rei da China, muito bem, é minha projeção; melhor perseverar e, quem sabe, descobrir, na briga, por que eu mesmo não me mudei para Pequim. Mas, se meu parceiro se queixa de que tenho o extravagante desejo de ser rei da China, o casal está próximo de sua falência.
Pois, afinal, um casal existe para ampliar, não para limitar o campo do que cada um é capaz de sonhar.
A união, como prega o ditado, deveria fazer a força.
A ocasião surgiu na semana passada, quando eu estava atendendo um casal briguento e, como de costume, tentava propor uma mediação.
Em regra, nas brigas, a gente age como aquele jogador que está perdendo e dobra raivosamente as apostas até, num último gesto, colocar em cima da mesa sua camisa, seu cachorro e sua aliança: a perspectiva de uma catástrofe conclusiva nos fascina com uma falsa promessa de paz no fim do túnel.
É banal, portanto, que, ao ser consultado por um casal em crise, o terapeuta tente acalmar o jogo.
Era o que eu estava fazendo, quando, de repente, o marido me interrompeu com uma certa irritação: "Mas quando você considera que um casamento não vale mais a pena?".
A pergunta me pegou. E gostaria de tentar responder.
Todos vivemos, de uma maneira ou de outra, um conflito entre o que desejamos e o que nos permitimos desejar. E é bom que seja assim. Se nos autorizássemos tudo o que queremos, a vida e a convivência social seriam complicadas.
Em outras palavras, é normal que a gente navegue num equilíbrio mais ou menos precário entre os desejos que brotam (devaneios, projetos, tesões) e as mil vozes (conscientes ou inconscientes) que nos inibem, que nos pedem procrastinação e desistência ou, simplesmente, que propõem escolhas diferentes.
A indústria farmacêutica conhece bem esse conflito básico; seus maiores sucessos comerciais são remédios que tentam balancear as duas vertentes. A Ritalina para quem não consegue focalizar os esforços, de tanto que seus desejos proliferam; os antidepressivos para quem não deseja o suficiente, de tanto escutar as vozes que aconselham a abstenção, a espera, a prudência e a preguiça.
É irônico, aliás, que, depois de alguns séculos de modernidade (de dois a cinco, segundo a data que a gente escolha para começar a contar), sejamos reduzidos a delegar à química a tarefa de disciplinar o desejo. Mas esse é outro assunto.
Recursos químicos à parte, o conflito em questão produz quase sempre projeções. Ou seja, é freqüente que, para evitar os tormentos da contradição interna, atribuamos aos outros (em particular, aos que nos são mais próximos, mas também ao mundo em geral) a função de nos impedir de desejar além da conta.
São aquelas lamúrias: queria mesmo ser trompetista, mas não deu porque é uma carreira incerta e é preciso pagar a mensalidade da escola das crianças; queria passar as noites nas casas de suingue, mas não ficaria bem para minha mulher se encontrássemos alguém que a conhece; queria passar o dia como uma amélia, cozinhando geléias naturais e bolos de chocolate, mas meu marido quer uma boneca de luxo.
É claro que nós mesmos preferimos a família ao trompete, a respeitabilidade ao suingue e a vida urbana à geléia. Mas é mais fácil encarar nossas desistências transformando os outros em imaginários carrascos de nosso desejo: "Foi por causa deles".
É banal, portanto, que, num casal, cada um considere que o parceiro e o casamento são responsáveis pelas renúncias. "Se não tivesse casado tão cedo, hoje seria atriz", e fica pudicamente esquecido que a futura atriz preferiu casar a encarar filas, testes, provas e fracassos.
Essas acusações, triviais numa crise, não constituem uma boa razão para descartar a relação. Ao contrário, é graças a essas acusações recíprocas que cada um poderia encontrar (e, eventualmente, confirmar ou amenizar) as defesas que ele mesmo inventou para evitar um de seus desejos. Brigando com o outro, que quis um filho logo e, "portanto, acabou com minha carreira de cantora lírica", ganho uma chance de descobrir que, de fato, eu mesma quis ter um filho e que ainda me debato com o preço que esse desejo me custou (a carreira de cantora lírica, que, aliás, talvez eu não tivesse a coragem de peitar). Em suma, acusando o outro, consigo brigar com minhas próprias contradições, preguiças, inibições ou covardias.
Em geral, quando as separações acontecem porque acusamos nosso parceiro de ser um obstáculo em nossa vida, o prognóstico é péssimo. Se o outro era a tela na qual eu projetava impedimentos que eu mesmo invento, é quase garantido que projetarei os mesmos impedimentos no parceiro de minha próxima relação. Em vez de separar-se, seria melhor se dar o tempo e a coragem de aproveitar o dissídio e lidar com aquela parte de mim que me incomoda e que meu parceiro me faz o favor de encarnar.
Então, como responder à pergunta do marido? Será que nenhuma separação se justifica?
Não é bem assim, pois acontece, às vezes, que um dos parceiros vista com gosto a camisa que lhe é oferecida, ou seja, acontece que ele ou ela achem graça em colocar limites ao desejo do outro.
A diferença é pequena, mas decisiva e fácil de ser constatada: tudo depende de quem fala. Se eu me queixo de que o outro me impede de ser rei da China, muito bem, é minha projeção; melhor perseverar e, quem sabe, descobrir, na briga, por que eu mesmo não me mudei para Pequim. Mas, se meu parceiro se queixa de que tenho o extravagante desejo de ser rei da China, o casal está próximo de sua falência.
Pois, afinal, um casal existe para ampliar, não para limitar o campo do que cada um é capaz de sonhar.
A união, como prega o ditado, deveria fazer a força.
quinta-feira, 10 de junho de 2004
Benfica e a Funai da marginalidade
Entre os mortos do motim da Casa de Custódia de Benfica, no Rio de Janeiro, havia dois presos condenados "só" por dano e furto. É óbvio que eles deveriam estar cumprindo sua pena num outro lugar ou, se esse outro lugar não existe, em regime aberto. É triste que a Justiça funcione de maneira abstrata, fingindo ignorar as condições e os riscos objetivos do cárcere onde ela encerra os condenados.
Mas será que é sempre desejável que a administração da Justiça se dobre a exigências práticas?
A matança de Benfica começou quando um grupo de rebelados do Comando Vermelho invadiu o andar onde cumpriam sua pena os membros do Terceiro Comando. Provavelmente, o horror teria sido evitado se os condenados fossem divididos em cárceres diferentes, segundo a organização criminosa à qual eles declaram pertencer (Amigo dos Amigos, Terceiro Comando, Comando Vermelho etc.). É uma consideração prática: o Estado é responsável pela vida de quem está sob sua custódia, portanto (já que nossos recursos são limitados) adotemos disposições que tornem menos custoso garantir a segurança dos presos. Faz sentido.
No entanto, sou sensível ao argumento de Astério Pereira dos Santos, secretário da Administração Penitenciária do Rio: quem manda na prisão deve ser o governo, não as organizações criminosas.
Aceitar o princípio da divisão dos presos segundo suas facções é uma maneira de considerá-los estrangeiros à nossa comunidade. Como é isso?
Um exemplo: na hora de instituir reservas indígenas, ninguém propõe um mesmo espaço para tribos que tradicionalmente se odeiam e se matam com gosto. Essa escolha se impõe porque pensamos que é nosso dever respeitar o que sobrou das culturas indígenas, ou seja, porque o projeto de nossa comunidade, no que concerne aos índios, não é sua integração como cidadãos quaisquer. Por paixão etnográfica ou pela culpa da conquista e do extermínio passados, os índios são, para nós, um mundo separado, com regras próprias, que queremos preservar.
Ora, será que os criminosos, em nosso país, são afastados do projeto de uma cidadania nacional a ponto de que a Administração Penitenciária deveria se tornar uma espécie de Funai da marginalidade?
A comparação é aproximativa. Uma verdadeira Funai da marginalidade operaria antes do encarceramento; erigiria muros entre as favelas, delimitando espaços autônomos, cada um dominado e administrado por uma facção. A divisão nos cárceres é mais parecida com a organização de um zoológico, em que animais inimigos são guardados em jaulas distintas e afastadas (para seu próprio bem, naturalmente).
O pressuposto, em ambos os casos, é o mesmo: marginais e criminosos não fazem parte de nosso mundo. É preciso, de uma maneira ou de outra, mantê-los em seu hábitat natural, que pode ser diferente segundo as "espécies" (os ursos brancos não convivem com os ursos negros).
Quais são os argumentos que se opõem à idéia de um mesmo cárcere para todos?
Há o pragmatismo já mencionado: a gestão da prisão será mais fácil se os presos forem divididos em cárceres diferentes, segundo suas facções.
E há a consideração seguinte. A exclusão social é um processo antigo, pelo qual nossa coletividade é responsável. É irrisório que, logo na hora da prisão, a comunidade nacional se lembre de que seu projeto deveria valer para todos e imponha pelo cárcere comum uma igualdade de direito que é desmentida fora da prisão. Vocês são bichos, tratamos vocês como tais e pouco fazemos para que se tornem gente, mas pretendemos forçá-los a ser cidadãos como nós na hora de enfiá-los numa jaula. Irônico, não é?
Sobre o debate, paira uma reflexão cínica que é freqüente nestes dias: será que o governo carioca não inventou a fórmula certa? Coloque-os todos juntos, feche os olhos e deixe que se matem. Ninguém poderá dizer que houve uma chacina de Estado, tipo Carandiru, e o resultado será o mesmo: a solução para a sobrecarga da população carcerária e uma economia de dinheiro público. Cá entre nós, não dá para dizer que foi uma grande perda para nossa sociedade, não é?
Pois é, o que aconteceu em Benfica constitui ou não uma perda para nossa sociedade?
Não se trata de discutir sobre a promessa e o valor das vidas que foram perdidas. Sei que eram perdidas há tempo; ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o cárcere teria reabilitado os presos que morreram e os teria devolvido à comunidade como cidadãos.
A perda que nos espreita é outra. Se tratarmos os marginais como índios, "respeitando" suas tribos, teremos que admitir que o Brasil não é nem o projeto de uma Belíndia, mas o teatro de uma guerra entre duas nações distintas, Bélgica e Índia.
Se desrespeitarmos as tribos na esperança de que as prisões se tornem assim matadouros da escória social, nossa Justiça será apenas uma arma de extermínio no conflito entre as ditas duas nações.
Para não perder o rumo de um projeto nacional, resta um caminho árduo. Consiste em encarcerar os presos não como membros de uma ou outra facção criminosa, mas como cidadãos. E em fazer (em gastar) o que é preciso para que, mesmo assim, seja garantida a segurança de todos.
Mas será que é sempre desejável que a administração da Justiça se dobre a exigências práticas?
A matança de Benfica começou quando um grupo de rebelados do Comando Vermelho invadiu o andar onde cumpriam sua pena os membros do Terceiro Comando. Provavelmente, o horror teria sido evitado se os condenados fossem divididos em cárceres diferentes, segundo a organização criminosa à qual eles declaram pertencer (Amigo dos Amigos, Terceiro Comando, Comando Vermelho etc.). É uma consideração prática: o Estado é responsável pela vida de quem está sob sua custódia, portanto (já que nossos recursos são limitados) adotemos disposições que tornem menos custoso garantir a segurança dos presos. Faz sentido.
No entanto, sou sensível ao argumento de Astério Pereira dos Santos, secretário da Administração Penitenciária do Rio: quem manda na prisão deve ser o governo, não as organizações criminosas.
Aceitar o princípio da divisão dos presos segundo suas facções é uma maneira de considerá-los estrangeiros à nossa comunidade. Como é isso?
Um exemplo: na hora de instituir reservas indígenas, ninguém propõe um mesmo espaço para tribos que tradicionalmente se odeiam e se matam com gosto. Essa escolha se impõe porque pensamos que é nosso dever respeitar o que sobrou das culturas indígenas, ou seja, porque o projeto de nossa comunidade, no que concerne aos índios, não é sua integração como cidadãos quaisquer. Por paixão etnográfica ou pela culpa da conquista e do extermínio passados, os índios são, para nós, um mundo separado, com regras próprias, que queremos preservar.
Ora, será que os criminosos, em nosso país, são afastados do projeto de uma cidadania nacional a ponto de que a Administração Penitenciária deveria se tornar uma espécie de Funai da marginalidade?
A comparação é aproximativa. Uma verdadeira Funai da marginalidade operaria antes do encarceramento; erigiria muros entre as favelas, delimitando espaços autônomos, cada um dominado e administrado por uma facção. A divisão nos cárceres é mais parecida com a organização de um zoológico, em que animais inimigos são guardados em jaulas distintas e afastadas (para seu próprio bem, naturalmente).
O pressuposto, em ambos os casos, é o mesmo: marginais e criminosos não fazem parte de nosso mundo. É preciso, de uma maneira ou de outra, mantê-los em seu hábitat natural, que pode ser diferente segundo as "espécies" (os ursos brancos não convivem com os ursos negros).
Quais são os argumentos que se opõem à idéia de um mesmo cárcere para todos?
Há o pragmatismo já mencionado: a gestão da prisão será mais fácil se os presos forem divididos em cárceres diferentes, segundo suas facções.
E há a consideração seguinte. A exclusão social é um processo antigo, pelo qual nossa coletividade é responsável. É irrisório que, logo na hora da prisão, a comunidade nacional se lembre de que seu projeto deveria valer para todos e imponha pelo cárcere comum uma igualdade de direito que é desmentida fora da prisão. Vocês são bichos, tratamos vocês como tais e pouco fazemos para que se tornem gente, mas pretendemos forçá-los a ser cidadãos como nós na hora de enfiá-los numa jaula. Irônico, não é?
Sobre o debate, paira uma reflexão cínica que é freqüente nestes dias: será que o governo carioca não inventou a fórmula certa? Coloque-os todos juntos, feche os olhos e deixe que se matem. Ninguém poderá dizer que houve uma chacina de Estado, tipo Carandiru, e o resultado será o mesmo: a solução para a sobrecarga da população carcerária e uma economia de dinheiro público. Cá entre nós, não dá para dizer que foi uma grande perda para nossa sociedade, não é?
Pois é, o que aconteceu em Benfica constitui ou não uma perda para nossa sociedade?
Não se trata de discutir sobre a promessa e o valor das vidas que foram perdidas. Sei que eram perdidas há tempo; ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o cárcere teria reabilitado os presos que morreram e os teria devolvido à comunidade como cidadãos.
A perda que nos espreita é outra. Se tratarmos os marginais como índios, "respeitando" suas tribos, teremos que admitir que o Brasil não é nem o projeto de uma Belíndia, mas o teatro de uma guerra entre duas nações distintas, Bélgica e Índia.
Se desrespeitarmos as tribos na esperança de que as prisões se tornem assim matadouros da escória social, nossa Justiça será apenas uma arma de extermínio no conflito entre as ditas duas nações.
Para não perder o rumo de um projeto nacional, resta um caminho árduo. Consiste em encarcerar os presos não como membros de uma ou outra facção criminosa, mas como cidadãos. E em fazer (em gastar) o que é preciso para que, mesmo assim, seja garantida a segurança de todos.
quinta-feira, 3 de junho de 2004
Paranóias e conspirações
Ainda bem que, de vez em quando, alguém me "informa" direito (as aspas significam que estou sendo irônico; melhor dizer, nunca se sabe).
Por exemplo, você sabia que, entre o 11 de setembro de 2001 e o dia dos atentados de Madri, passaram-se exatamente 911 dias? Ora, 9-11 (setembro-11) é, nos EUA, a abreviação da data do ataque ao World Trade Center. Mas não pense que se trate apenas de uma "óbvia" assinatura da Al Qaeda. Não, isso é só o começo: 911 é o número telefônico que, em Nova York, serve para chamar a polícia em caso de urgência. Ironia dos terroristas? Fácil demais. Será que não é um criptograma que revela os verdadeiros autores do atentado? Não é a prova de que foi o governo americano que orquestrou o ataque que justifica a guerra em curso?
Você duvida? É porque você não sabe que, de manhã cedo, em 11 de setembro, milhares de judeus que trabalhavam nas torres gêmeas (sempre eles, ah?) receberam telefonemas anônimos exortando-os a não ir para o trabalho naquele dia. Está entendendo?
Outro exemplo. Você não estranhou o momento em que o "New York Times" publicou o artigo de Larry Rohter sobre a "preocupação nacional" brasileira com os hábitos alcoólicos do presidente Lula? Foi logo quando o Brasil acabava de ganhar a guerra dos subsídios agrícolas na Organização Mundial do Comércio. Quem tinha interesse em desacreditar o Brasil pelo mundo afora, ah? E se Larry Rohter fosse um agente da CIA há tempo escondido no Brasil para ser ativado de repente na hora de tamanha necessidade estratégica? Aliás, nem é preciso que ele seja um agente, pois é notório (não é?) que a imprensa americana é escrava do complexo político-militar-midiático do império. Rohter pode ter obedecido ao "New York Times", que, por sua vez, deve ter respondido a um daqueles telefonemas do governo que eles recebem a cada dia na hora de decidir a pauta.
Ao escutar pacientes paranóicos capazes de delírios organizados, é fácil constatar que um delírio não é necessariamente menos verossímil que outras crenças que não nos parecem delirantes. Por exemplo, a convicção de que Deus exige que os homens se transformem em mulheres para servi-lo melhor é tão verossímil quanto a idéia de que, a cada missa, a hóstia se transforma realmente no corpo de Cristo. A diferença é apenas esta: o projeto de mudar de sexo para servir a Deus não é coletivo, enquanto a transformação da hóstia (a transubstanciação) é uma fé compartilhada.
Os delírios são crenças que não conseguem se socializar.
Hoje essa diferença se tornou incerta. Graças à internet, qualquer delírio pode se tornar público, circular e conquistar adeptos. Logicamente, este é o argumento decisivo de quem delira: está num site na internet. E, olhe lá, é um site que recebe 12 mil visitantes por dia.
Mas a facilidade com a qual os delírios se socializam não explica sua extraordinária proliferação.
Em 11 de maio (de novo, o 11, viu?), chegou às livrarias americanas "The Rule of Four" (A Regra de Quatro), de Ian Caldwell e Dustin Thomason. Em duas semanas, o romance já é número três da lista dos mais vendidos. Conta a história de dois amigos que devem descobrir os arcanos de um texto renascentista (que existe e que é mesmo repleto de enigmas não resolvidos) para entender o que acontece ao redor deles e, enfim, salvar a pele. Em princípio, quem gostou de "O Código da Vinci", de Dan Brown (número um da lista há 60 semanas nos EUA e agora número um no Brasil), vai gostar de "The Rule of Four".
Os comentadores propõem uma genealogia que começa com "O Nome da Rosa", de Umberto Eco, e continua com esses dois romances recentes. De fato, os três livros têm em comum um gosto pela cultura da Idade Média (no caso de "O Nome da Rosa") ou do Renascimento (para os outros dois), épocas em que o mundo ainda era encantado, ou seja, percebido como um teatro de símbolos e signos que, uma vez decifrados, revelariam que os desenhos da providência divina se estendem, feito vasos capilares, até a periferia da criação. Naquela época, só vivia uma vida sem sentido quem não se desse ao trabalho de resolver as charadas inscritas em cada página do mundo.
Mas "O Nome da Rosa" conta uma história policial acontecida na Idade Média (por mais que ela tenha conseqüências em nossa cultura), enquanto "O Código da Vinci" e "The Rule of Four" nos propõem enigmas cuja solução explica os malogros do presente (para manter a filiação com Umberto Eco, os dois romances são mais comparáveis com "O Pêndulo de Foucault" do que com "O Nome da Rosa"). Em suma, o leitor de hoje gosta de enigmas porque eles confirmam que a bagunça de nosso mundo esconde um sentido.
Depois de dois séculos de individualismo realizado, estamos aparentemente cansados de cruzar os dedos esperando com Adam Smith que, por um acerto do acaso, as peripécias de nossas vidas singulares resultem num mundo minimamente ordenado e compreensível.
Somos animados pela mesma angústia que anima os delírios da internet, pois descobrimos, com razão, que a tragédia não é que poderosos e feiosos tramem e manipulem nas sombras. A tragédia, o intolerável é que os feiosos, exatamente como nós, são um atrapalhado exército de Brancaleone. E nossa história, como dizia o poeta, é um conto cheio de barulho e fúria, que não significa nada.
Por exemplo, você sabia que, entre o 11 de setembro de 2001 e o dia dos atentados de Madri, passaram-se exatamente 911 dias? Ora, 9-11 (setembro-11) é, nos EUA, a abreviação da data do ataque ao World Trade Center. Mas não pense que se trate apenas de uma "óbvia" assinatura da Al Qaeda. Não, isso é só o começo: 911 é o número telefônico que, em Nova York, serve para chamar a polícia em caso de urgência. Ironia dos terroristas? Fácil demais. Será que não é um criptograma que revela os verdadeiros autores do atentado? Não é a prova de que foi o governo americano que orquestrou o ataque que justifica a guerra em curso?
Você duvida? É porque você não sabe que, de manhã cedo, em 11 de setembro, milhares de judeus que trabalhavam nas torres gêmeas (sempre eles, ah?) receberam telefonemas anônimos exortando-os a não ir para o trabalho naquele dia. Está entendendo?
Outro exemplo. Você não estranhou o momento em que o "New York Times" publicou o artigo de Larry Rohter sobre a "preocupação nacional" brasileira com os hábitos alcoólicos do presidente Lula? Foi logo quando o Brasil acabava de ganhar a guerra dos subsídios agrícolas na Organização Mundial do Comércio. Quem tinha interesse em desacreditar o Brasil pelo mundo afora, ah? E se Larry Rohter fosse um agente da CIA há tempo escondido no Brasil para ser ativado de repente na hora de tamanha necessidade estratégica? Aliás, nem é preciso que ele seja um agente, pois é notório (não é?) que a imprensa americana é escrava do complexo político-militar-midiático do império. Rohter pode ter obedecido ao "New York Times", que, por sua vez, deve ter respondido a um daqueles telefonemas do governo que eles recebem a cada dia na hora de decidir a pauta.
Ao escutar pacientes paranóicos capazes de delírios organizados, é fácil constatar que um delírio não é necessariamente menos verossímil que outras crenças que não nos parecem delirantes. Por exemplo, a convicção de que Deus exige que os homens se transformem em mulheres para servi-lo melhor é tão verossímil quanto a idéia de que, a cada missa, a hóstia se transforma realmente no corpo de Cristo. A diferença é apenas esta: o projeto de mudar de sexo para servir a Deus não é coletivo, enquanto a transformação da hóstia (a transubstanciação) é uma fé compartilhada.
Os delírios são crenças que não conseguem se socializar.
Hoje essa diferença se tornou incerta. Graças à internet, qualquer delírio pode se tornar público, circular e conquistar adeptos. Logicamente, este é o argumento decisivo de quem delira: está num site na internet. E, olhe lá, é um site que recebe 12 mil visitantes por dia.
Mas a facilidade com a qual os delírios se socializam não explica sua extraordinária proliferação.
Em 11 de maio (de novo, o 11, viu?), chegou às livrarias americanas "The Rule of Four" (A Regra de Quatro), de Ian Caldwell e Dustin Thomason. Em duas semanas, o romance já é número três da lista dos mais vendidos. Conta a história de dois amigos que devem descobrir os arcanos de um texto renascentista (que existe e que é mesmo repleto de enigmas não resolvidos) para entender o que acontece ao redor deles e, enfim, salvar a pele. Em princípio, quem gostou de "O Código da Vinci", de Dan Brown (número um da lista há 60 semanas nos EUA e agora número um no Brasil), vai gostar de "The Rule of Four".
Os comentadores propõem uma genealogia que começa com "O Nome da Rosa", de Umberto Eco, e continua com esses dois romances recentes. De fato, os três livros têm em comum um gosto pela cultura da Idade Média (no caso de "O Nome da Rosa") ou do Renascimento (para os outros dois), épocas em que o mundo ainda era encantado, ou seja, percebido como um teatro de símbolos e signos que, uma vez decifrados, revelariam que os desenhos da providência divina se estendem, feito vasos capilares, até a periferia da criação. Naquela época, só vivia uma vida sem sentido quem não se desse ao trabalho de resolver as charadas inscritas em cada página do mundo.
Mas "O Nome da Rosa" conta uma história policial acontecida na Idade Média (por mais que ela tenha conseqüências em nossa cultura), enquanto "O Código da Vinci" e "The Rule of Four" nos propõem enigmas cuja solução explica os malogros do presente (para manter a filiação com Umberto Eco, os dois romances são mais comparáveis com "O Pêndulo de Foucault" do que com "O Nome da Rosa"). Em suma, o leitor de hoje gosta de enigmas porque eles confirmam que a bagunça de nosso mundo esconde um sentido.
Depois de dois séculos de individualismo realizado, estamos aparentemente cansados de cruzar os dedos esperando com Adam Smith que, por um acerto do acaso, as peripécias de nossas vidas singulares resultem num mundo minimamente ordenado e compreensível.
Somos animados pela mesma angústia que anima os delírios da internet, pois descobrimos, com razão, que a tragédia não é que poderosos e feiosos tramem e manipulem nas sombras. A tragédia, o intolerável é que os feiosos, exatamente como nós, são um atrapalhado exército de Brancaleone. E nossa história, como dizia o poeta, é um conto cheio de barulho e fúria, que não significa nada.
quinta-feira, 27 de maio de 2004
Os "tarados" de Abu Ghraib
Até agora, são sete (três mulheres e quatro homens) os reservistas americanos apontados como responsáveis pelos abusos praticados na prisão de Abu Ghraib.
O comando afirma que eles agiram por inspiração própria: uma vez essas maçãs podres retiradas da cesta, o problema estará resolvido. Muitos comentadores acham difícil acreditar que os soldados tenham agido sem a ordem ou, no mínimo, o encorajamento implícito de seus superiores.
Mas num ponto todos parecem concordar: os sete seriam um bando de tarados.
Já surgiu a pergunta de sempre: como foram fabricados os sete horrorosos de Abu Ghraib? A gente é tarado de nascença ou se torna tarado à força de infâncias e experiências traumáticas, infelizes ou, simplesmente, tortas? No caso, essa pergunta é sem pertinência; eis por quê.
Quinze anos atrás, na França, defendi minha tese de doutorado em psicopatologia (o calhamaço, traduzido em inglês pela editora The Other Press, dorme na minha gaveta, à espera de revisão e cortes que nunca tenho tempo de fazer). O ponto de partida de minhas indagações era um batalhão de 500 reservistas da polícia alemã que, durante a Segunda Guerra Mundial, assassinaram metodicamente, com tiros individuais na nuca, milhares de judeus poloneses, famílias com crianças e mulheres.
Os ditos soldados alemães não eram tropa de elite. Tinham-se alistado na polícia porque essa escolha parecia garantir que ficariam longe da ativa, não arriscariam a pele e não teriam que matar inimigos. De forma parecida, os sete de Abu Ghraib entraram na National Guard (a reserva) para conseguir bolsas para a universidade; nada a ver com os anseios militaristas dos voluntários que compõem o Exército ou os fuzileiros navais.
Os reservistas alemães não tinham sido selecionados por alguma predisposição ao mal (quer fosse de nascença, quer fosse por história de vida). É impossível imaginar que, por um milagre do acaso, eles constituíssem uma turma de 500 assassinos potenciais. Mas, se eram pessoas quaisquer, como se tornaram capazes do horror?
Note-se que a obediência às ordens não explica nada. Contrariamente ao que se imagina, durante toda a Segunda Guerra, ninguém foi perseguido pela Justiça militar alemã por ter-se recusado a atormentar ou exterminar populações civis. Os poucos soldados que não quiseram obedecer a ordens genocidas foram apenas dispensados da tarefa.
Conclusão: há sujeitos que nada, em sua história ou em seus genes, predispõe a ser torturadores ou assassinos, mas que, numa situação social específica, sem precisar de ordens, tornam-se monstros. Ou seja, as condutas humanas não dependem só dos genes e da história singulares de cada um, mas também (e bastante) da situação coletiva na qual cada um está enredado na hora de agir.
Uma experiência famosa (e relevante na argumentação de minha tese) foi conduzida em 1971 por Philip Zimbardo, um grande psicólogo social que ainda ensina na Universidade Stanford, na Califórnia. Numa prisão simulada, Zimbardo encerrou 21 estudantes escolhidos a esmo e divididos (também a esmo) em dois grupos: presos e guardas. Os guardas eram livres para impor as punições que julgariam necessárias ao bom funcionamento do estabelecimento. A experiência, que devia durar duas semanas, foi interrompida no sexto dia, pois o comportamento dos guardas colocava em perigo a saúde mental e a incolumidade física dos presos. Alguns dos abusos praticados se pareciam estranhamente com o que aconteceu na prisão de Abu Ghraib: presos desnudados, encapuzados e por aí vai.
Quais situações sociais transformam moços e moças de boa índole em algozes? A condição básica para que isso aconteça é que a sensação de pertencer solidamente a um grupo seja servida como remédio contra as dores e as dúvidas que habitam a solidão do indivíduo. Em Abu Ghraib, as fotos-suvenir conferem aos sete a coesão "alegre" e brutal de um bando de amigos decididos a passar férias memoráveis.
Mas é fácil encontrar outros exemplos. A cada ano, uma excitação festiva e uma sensação coletiva de superioridade levam universitários bem-comportados a torturar calouros estarrecidos. Uma torcida pode converter um bom pai de família em vândalo. Uma multidão enfurecida faz de cada um de seus membros um linchador assassino. Uma burocracia bem organizada pode transformar seus tranqüilos funcionários em agentes de extermínio.
A plasticidade social do sujeito humano não constitui uma desculpa. Ao contrário, o indivíduo é sempre responsável por não saber resistir à sedução dos grupos nos quais ele se perde.
No entanto, há também a responsabilidade de quem cria as condições para que outros se percam na estupidez do grupo. Como? Por exemplo, organizando uma prisão em que os guardas teriam poderes incontrolados sobre seres ditos inferiores por raça, cultura ou religião.
Aliás, ao redigir uma ata de acusação contra o comando americano, eu me indignaria, claro, com o que aconteceu com os presos iraquianos de Abu Ghraib. Mas também me indignaria com o seguinte: foi permitido que sete jovens soldados se transformassem em torturadores.
O comando afirma que eles agiram por inspiração própria: uma vez essas maçãs podres retiradas da cesta, o problema estará resolvido. Muitos comentadores acham difícil acreditar que os soldados tenham agido sem a ordem ou, no mínimo, o encorajamento implícito de seus superiores.
Mas num ponto todos parecem concordar: os sete seriam um bando de tarados.
Já surgiu a pergunta de sempre: como foram fabricados os sete horrorosos de Abu Ghraib? A gente é tarado de nascença ou se torna tarado à força de infâncias e experiências traumáticas, infelizes ou, simplesmente, tortas? No caso, essa pergunta é sem pertinência; eis por quê.
Quinze anos atrás, na França, defendi minha tese de doutorado em psicopatologia (o calhamaço, traduzido em inglês pela editora The Other Press, dorme na minha gaveta, à espera de revisão e cortes que nunca tenho tempo de fazer). O ponto de partida de minhas indagações era um batalhão de 500 reservistas da polícia alemã que, durante a Segunda Guerra Mundial, assassinaram metodicamente, com tiros individuais na nuca, milhares de judeus poloneses, famílias com crianças e mulheres.
Os ditos soldados alemães não eram tropa de elite. Tinham-se alistado na polícia porque essa escolha parecia garantir que ficariam longe da ativa, não arriscariam a pele e não teriam que matar inimigos. De forma parecida, os sete de Abu Ghraib entraram na National Guard (a reserva) para conseguir bolsas para a universidade; nada a ver com os anseios militaristas dos voluntários que compõem o Exército ou os fuzileiros navais.
Os reservistas alemães não tinham sido selecionados por alguma predisposição ao mal (quer fosse de nascença, quer fosse por história de vida). É impossível imaginar que, por um milagre do acaso, eles constituíssem uma turma de 500 assassinos potenciais. Mas, se eram pessoas quaisquer, como se tornaram capazes do horror?
Note-se que a obediência às ordens não explica nada. Contrariamente ao que se imagina, durante toda a Segunda Guerra, ninguém foi perseguido pela Justiça militar alemã por ter-se recusado a atormentar ou exterminar populações civis. Os poucos soldados que não quiseram obedecer a ordens genocidas foram apenas dispensados da tarefa.
Conclusão: há sujeitos que nada, em sua história ou em seus genes, predispõe a ser torturadores ou assassinos, mas que, numa situação social específica, sem precisar de ordens, tornam-se monstros. Ou seja, as condutas humanas não dependem só dos genes e da história singulares de cada um, mas também (e bastante) da situação coletiva na qual cada um está enredado na hora de agir.
Uma experiência famosa (e relevante na argumentação de minha tese) foi conduzida em 1971 por Philip Zimbardo, um grande psicólogo social que ainda ensina na Universidade Stanford, na Califórnia. Numa prisão simulada, Zimbardo encerrou 21 estudantes escolhidos a esmo e divididos (também a esmo) em dois grupos: presos e guardas. Os guardas eram livres para impor as punições que julgariam necessárias ao bom funcionamento do estabelecimento. A experiência, que devia durar duas semanas, foi interrompida no sexto dia, pois o comportamento dos guardas colocava em perigo a saúde mental e a incolumidade física dos presos. Alguns dos abusos praticados se pareciam estranhamente com o que aconteceu na prisão de Abu Ghraib: presos desnudados, encapuzados e por aí vai.
Quais situações sociais transformam moços e moças de boa índole em algozes? A condição básica para que isso aconteça é que a sensação de pertencer solidamente a um grupo seja servida como remédio contra as dores e as dúvidas que habitam a solidão do indivíduo. Em Abu Ghraib, as fotos-suvenir conferem aos sete a coesão "alegre" e brutal de um bando de amigos decididos a passar férias memoráveis.
Mas é fácil encontrar outros exemplos. A cada ano, uma excitação festiva e uma sensação coletiva de superioridade levam universitários bem-comportados a torturar calouros estarrecidos. Uma torcida pode converter um bom pai de família em vândalo. Uma multidão enfurecida faz de cada um de seus membros um linchador assassino. Uma burocracia bem organizada pode transformar seus tranqüilos funcionários em agentes de extermínio.
A plasticidade social do sujeito humano não constitui uma desculpa. Ao contrário, o indivíduo é sempre responsável por não saber resistir à sedução dos grupos nos quais ele se perde.
No entanto, há também a responsabilidade de quem cria as condições para que outros se percam na estupidez do grupo. Como? Por exemplo, organizando uma prisão em que os guardas teriam poderes incontrolados sobre seres ditos inferiores por raça, cultura ou religião.
Aliás, ao redigir uma ata de acusação contra o comando americano, eu me indignaria, claro, com o que aconteceu com os presos iraquianos de Abu Ghraib. Mas também me indignaria com o seguinte: foi permitido que sete jovens soldados se transformassem em torturadores.
quinta-feira, 20 de maio de 2004
De onde vem o autoritarismo?
A história é conhecida: o "New York Times" de 9 de maio publicou um artigo de seu correspondente, Larry Rohter, afirmando que havia no Brasil uma "preocupação nacional" com o uso de álcool pelo presidente Lula. O presidente reagiu cassando o visto do jornalista e ameaçando sua expulsão. O Legislativo intercedeu, a imprensa entrou em campanha, e uma liminar do Superior Tribunal de Justiça protegeu Rohter. O governo recuou. Ótimo.
Mas por que um Poder Executivo democrático se extraviou numa birra autoritária supérflua? Eis uma das respostas possíveis.
Em antropologia e em psicologia, vale esta implicação: quando um sujeito ou um grupo consideram que sua dignidade não é reconhecida pela comunidade da qual supostamente eles fazem parte, esse sujeito ou esse grupo se afirmam no braço.
Exemplo. A violência de nossas ruas não é fruto da miséria, mas da exclusão. Por mais que alguém seja desfavorecido, se ele constatar que a comunidade o reconhece como cidadão, seu protesto poderá respeitar a lei comum. Mas imagine que, pela desigualdade excessiva ou por tradição escravagista, pobres e miseráveis sejam propriamente deserdados. Aos filhos deserdados é recusada, com a herança, a qualidade de filhos; da mesma forma, aos deserdados sociais é negada a qualidade de cidadãos. O fracasso que lhes toca não é só econômico, ele é simbólico. E a quem é excluído simbolicamente (a quem se sente socialmente insignificante) sobra impor-se no real, na marra.
Esse mecanismo explica (parcialmente, é óbvio) por que, quando os deserdados ou seus representantes chegam ao poder, eles sucumbem facilmente a tentações autoritárias. Uma história de exclusão os predispõe a acreditar que, mesmo no governo, eles continuarão excluídos. Convencidos de que a dignidade de seu poder não está sendo reconhecida, fazem-se valer pela brutalidade.
Uma dinâmica parecida pode funcionar entre nações. O economista Alfredo Behrens me fazia observar, numa conversa, que "a suscetibilidade é uma doença afetiva do subdesenvolvimento".
Notas
1) Qualquer dificuldade simbólica (não só uma história de exclusão social) pode levar um governo a mostrar músculos desnecessários. É possível, por exemplo, que o autoritarismo do atual governo americano seja também um efeito do pleito duvidoso que elegeu o presidente Bush. Uma incerteza quanto à legitimidade do governo seria compensada pela brutalidade no exercício do poder.
2) Alguém deveria ter assinalado ao presidente Lula que o artigo de Rohter, estranho para os padrões de nossa imprensa, é banal na cultura americana, onde a) quem se dedica à vida pública renuncia à privacidade; b) é tarefa básica da imprensa vasculhar a vida do homem público. Nos EUA, qualquer candidato enfrenta interrogatórios, investigações, boatos sobre seus hábitos, costumes, comportamentos sexuais e por aí vai.
Alguém também deveria ter explicado ao presidente que, na cultura americana, a menção de sua difícil história familiar e do alcoolismo de seu pai não constituem uma ofensa. Para qualquer americano, esses traços valem como elogios, pois salientam a dificuldade do caminho que o filho percorreu.
3) O chanceler Celso Amorim declarou que o artigo de Rohter ofendia a honra da nação. É uma retórica análoga à dos fascismos europeus: às armas, cidadãos, alguém (um estrangeiro, claro) desrespeita a mãe pátria. Talvez fosse mais sábio entender que a nação tem mais a ver com um conjunto de valores do que com um território à espera de ser violado pelo invasor. Nessa ótica, quem ofende a nação é quem desrespeita um valor fundamental, como a liberdade de expressão. Por exemplo, aos americanos é permitido protestar queimando a bandeira, pois a nação seria ofendida muito mais pela interdição de queimar a bandeira do que pelo próprio ato de queimá-la.
4) O porta-voz da Presidência, André Singer, afirmou que o artigo de Rohter, ofendendo o presidente, ofendia a instituição da Presidência. Incompreensível: a Presidência continua intata mesmo se o presidente escarra, faz cocô, bebe, fuma, transa ou, pior, se ele é corrupto, cocainômano ou idiota. André Singer certamente leu "Os Dois Corpos do Rei", de Ernest Kantorowicz. Talvez o exemplar da biblioteca do Alvorada tenha sido perdido.
5) O antiamericanismo, por mais que tenha razões históricas, é uma escapatória tradicional para elites decadentes e vorazes. É o caso em muitos países islâmicos do Oriente Médio: fogo na bandeira americana e pedras no McDonald's são distrações que impedem de pensar que a situação é sobretudo culpa dos poderosos de casa. Não há por que suspeitar que o governo atual queira proteger as elites nacionais, mas, segundo o "Painel" da Folha de 13 de maio, o presidente contava com a boa repercussão interna de sua decisão: achava que o público gostaria (cito a Folha) "de ver o Brasil "enfrentando" os EUA". Como não dá mais para oferecer jogos de gladiadores ou bingos, demos ao povo um pouco de antiamericanismo, para que se divirta.
6) Depois de ter cassado o visto de Rohter, o presidente declarou que o gesto "serviria de exemplo". Em matéria de autoritarismo, essa foi a pior, a que me obrigou a escrever (postergando a continuação da coluna da semana passada). Pois me ensinaram assim: quando alguém quer nos intimidar, é a hora de se expor, pagar o blefe ou levar uma paulada, tanto faz; o importante é forçar quem intimida a mostrar seu jogo. Aliás, se alguém do governo não gostou do que escrevi, é só mandar um e-mail pedindo meu número de RNE.
Mas por que um Poder Executivo democrático se extraviou numa birra autoritária supérflua? Eis uma das respostas possíveis.
Em antropologia e em psicologia, vale esta implicação: quando um sujeito ou um grupo consideram que sua dignidade não é reconhecida pela comunidade da qual supostamente eles fazem parte, esse sujeito ou esse grupo se afirmam no braço.
Exemplo. A violência de nossas ruas não é fruto da miséria, mas da exclusão. Por mais que alguém seja desfavorecido, se ele constatar que a comunidade o reconhece como cidadão, seu protesto poderá respeitar a lei comum. Mas imagine que, pela desigualdade excessiva ou por tradição escravagista, pobres e miseráveis sejam propriamente deserdados. Aos filhos deserdados é recusada, com a herança, a qualidade de filhos; da mesma forma, aos deserdados sociais é negada a qualidade de cidadãos. O fracasso que lhes toca não é só econômico, ele é simbólico. E a quem é excluído simbolicamente (a quem se sente socialmente insignificante) sobra impor-se no real, na marra.
Esse mecanismo explica (parcialmente, é óbvio) por que, quando os deserdados ou seus representantes chegam ao poder, eles sucumbem facilmente a tentações autoritárias. Uma história de exclusão os predispõe a acreditar que, mesmo no governo, eles continuarão excluídos. Convencidos de que a dignidade de seu poder não está sendo reconhecida, fazem-se valer pela brutalidade.
Uma dinâmica parecida pode funcionar entre nações. O economista Alfredo Behrens me fazia observar, numa conversa, que "a suscetibilidade é uma doença afetiva do subdesenvolvimento".
Notas
1) Qualquer dificuldade simbólica (não só uma história de exclusão social) pode levar um governo a mostrar músculos desnecessários. É possível, por exemplo, que o autoritarismo do atual governo americano seja também um efeito do pleito duvidoso que elegeu o presidente Bush. Uma incerteza quanto à legitimidade do governo seria compensada pela brutalidade no exercício do poder.
2) Alguém deveria ter assinalado ao presidente Lula que o artigo de Rohter, estranho para os padrões de nossa imprensa, é banal na cultura americana, onde a) quem se dedica à vida pública renuncia à privacidade; b) é tarefa básica da imprensa vasculhar a vida do homem público. Nos EUA, qualquer candidato enfrenta interrogatórios, investigações, boatos sobre seus hábitos, costumes, comportamentos sexuais e por aí vai.
Alguém também deveria ter explicado ao presidente que, na cultura americana, a menção de sua difícil história familiar e do alcoolismo de seu pai não constituem uma ofensa. Para qualquer americano, esses traços valem como elogios, pois salientam a dificuldade do caminho que o filho percorreu.
3) O chanceler Celso Amorim declarou que o artigo de Rohter ofendia a honra da nação. É uma retórica análoga à dos fascismos europeus: às armas, cidadãos, alguém (um estrangeiro, claro) desrespeita a mãe pátria. Talvez fosse mais sábio entender que a nação tem mais a ver com um conjunto de valores do que com um território à espera de ser violado pelo invasor. Nessa ótica, quem ofende a nação é quem desrespeita um valor fundamental, como a liberdade de expressão. Por exemplo, aos americanos é permitido protestar queimando a bandeira, pois a nação seria ofendida muito mais pela interdição de queimar a bandeira do que pelo próprio ato de queimá-la.
4) O porta-voz da Presidência, André Singer, afirmou que o artigo de Rohter, ofendendo o presidente, ofendia a instituição da Presidência. Incompreensível: a Presidência continua intata mesmo se o presidente escarra, faz cocô, bebe, fuma, transa ou, pior, se ele é corrupto, cocainômano ou idiota. André Singer certamente leu "Os Dois Corpos do Rei", de Ernest Kantorowicz. Talvez o exemplar da biblioteca do Alvorada tenha sido perdido.
5) O antiamericanismo, por mais que tenha razões históricas, é uma escapatória tradicional para elites decadentes e vorazes. É o caso em muitos países islâmicos do Oriente Médio: fogo na bandeira americana e pedras no McDonald's são distrações que impedem de pensar que a situação é sobretudo culpa dos poderosos de casa. Não há por que suspeitar que o governo atual queira proteger as elites nacionais, mas, segundo o "Painel" da Folha de 13 de maio, o presidente contava com a boa repercussão interna de sua decisão: achava que o público gostaria (cito a Folha) "de ver o Brasil "enfrentando" os EUA". Como não dá mais para oferecer jogos de gladiadores ou bingos, demos ao povo um pouco de antiamericanismo, para que se divirta.
6) Depois de ter cassado o visto de Rohter, o presidente declarou que o gesto "serviria de exemplo". Em matéria de autoritarismo, essa foi a pior, a que me obrigou a escrever (postergando a continuação da coluna da semana passada). Pois me ensinaram assim: quando alguém quer nos intimidar, é a hora de se expor, pagar o blefe ou levar uma paulada, tanto faz; o importante é forçar quem intimida a mostrar seu jogo. Aliás, se alguém do governo não gostou do que escrevi, é só mandar um e-mail pedindo meu número de RNE.
quinta-feira, 13 de maio de 2004
As fotografias dos presos iraquianos
Na capa da Folha de sexta passada e nos jornais do mundo inteiro: a soldado americana Lynndie England segurando a tira que mantém um iraquiano, nu e rastejante, na coleira.
O governo americano anunciou que, infelizmente, o conjunto dos documentos sobre a tortura na prisão de Abu Ghraib contém coisas "piores", em foto e em vídeo.
A "New Yorker" publicou a fotografia de um iraquiano nu ameaçado por dois cachorros (capa da Folha de segunda-feira) e descreveu outra, em que aparece um preso ensangüentado. Mas, ao que parece, essas imagens são exceções.
Pelo que se sabe hoje (terça-feira, quando encerro esta coluna), as fotografias que veremos não são imagens de tortura física, mutilação ou assassinato. A galeria dos horrores é no mesmo tom das fotos da semana passada. Só para lembrar: além de Lynndie England com o preso na coleira, Lynndie e Charles Graner (seu companheiro de cama) triunfantes sobre um amontoado de iraquianos nus numa suruba forçada, Lynndie rindo enquanto aponta para o pênis de um preso, outro preso nu encapuzado com uma calcinha e por aí vai.
Segunda à noite, aliás, a CNN informou que, entre as novidades, se destacam presos forçados a simular sodomia e um ato sexual entre soldados americanos.
Apesar de tudo isso, a mídia, quase unânime, fala genericamente de violência e abuso; esquece pudicamente que as imagens são intragáveis por serem FOTOGRAFIAS ERÓTICAS.
Essas maiúsculas respondem ao esforço em curso para que desviemos o olhar do óbvio erotismo das fotografias da semana passada. Dois exemplos.
À esquerda, Robert Fisk (Folha de 9 de maio) dá prova de uma ingenuidade que beira a idiotice, perguntando, sério: quem treinou Lynndie e Charles, quem lhes ensinou essas práticas? Ele vê nos atos fotografados a prova evidente de que torturadores profissionais da CIA presidiram os interrogatórios. Mas de quais interrogatórios ele está falando? Será que Robert Fisk não vê que, nas fotos da semana passada, as humilhações impostas aos presos não têm outra finalidade senão o gozo de Lynndie, Charles e seus cúmplices (da CIA ou não)? Será que Robert Fisk nunca entrou numa "sex shop"? Será, em suma, que ele não percebe que as fotografias reproduzem a banalidade do repertório sadomasoquista? Será que não se dá conta de que a foto de Lynndie de uniforme e botas, com o preso na coleira, poderia ser, assim como está, o anúncio de uma "dominatrix"?
À direita (também na Folha de 9 de maio), Gerald Baker declara que a "depravação" de Lynndie e Charles "é tão difícil de compreender quanto é abominável". Abominável não há dúvida (por ser imposta aos presos); mas "difícil de compreender"? Como é possível, quando o sadomasoquismo integra o jogo sexual da metade (conto por baixo) dos casais do mundo? Qual é a surpresa?
Por que Fisk faz de conta que não percebe o erotismo das imagens? Por que Baker se apressa a declarar que elas manifestam um desvio patológico extremo?
Parece que, para ambos, a trivialidade que se trata de negar é a mesma que foi revelada pelo marquês de Sade: na modernidade, O EXERCÍCIO DO PODER É ERÓTICO. Incômodo, não é?
O presidente Bush disse que achou as imagens de Lynndie e Charles "sickening", nauseabundas. Acredito. Mas, se ele ficou com vontade de vomitar, é porque as imagens devem ter-lhe lembrado, justamente, que o poder é uma fonte de gozo, sempre: goza-se com um preso na coleira, assim como se goza ordenando que comece um bombardeio ou que as tropas avancem.
Não existem motivos nobres que possam eliminar a parte de gozo que acompanha o exercício do poder. Para nós, o poder é sempre erótico, e o erotismo é sempre atravessado pelo jogo do poder.
Quem não quer saber disso se condena a um uso louco do poder, inocentado por suas pretensas melhores intenções.
Se não reprimirem o erotismo que explode na cara de quem contempla as imagens da semana passada, talvez, desta vez, os americanos consigam inventar um uso mais complexo (e, por que não, mais envergonhado) de seu poder. Se isso acontecer, agradeçam a Lynndie e Charles.
Para complementar:
1) A imprensa americana não pára de contrapor duas mulheres soldados: Lynndie England, a abominável, e Jessica Lynch, que foi ferida, presa pelos iraquianos e liberada por um comando americano. Aposto que as duas receberão (para Jessica já é o caso) cartas com juras de amor e propostas de casamento. Muitos, como o presidente Bush, acharão "sickening" (nauseabundos) os homens que implorarão a Lynndie para que ela os amarre na coleira. O problema é que esses muitos não querem saber o seguinte: aqueles que escreveram para Jessica, por traz das promessas de carinho e flores (as famosas melhores intenções), são provavelmente levados pela fantasia de possuir o corpo da jovem como eles imaginam que foi possuído e estuprado pelos iraquianos que a prenderam (os quais, aliás, na ocasião, parece que se comportaram decentemente).
2) Domingo à noite, fiz uma pesquisa na internet. Em menos de duas horas encontrei o que procurava. Nas salas de bate-papo abertas pelos assinantes de um grande provedor americano, seção "Special Interests", numa sala cujo título convidativo era "Squeeze my balls" (aperte meus testículos), lá estava: alguém se apresentava como uma dominadora e usava, como "nick" (pseudônimo), numa palavra só, "LynndieEngland".
Não acabei, a coluna continua na semana que vem, salvo imprevistos.
O governo americano anunciou que, infelizmente, o conjunto dos documentos sobre a tortura na prisão de Abu Ghraib contém coisas "piores", em foto e em vídeo.
A "New Yorker" publicou a fotografia de um iraquiano nu ameaçado por dois cachorros (capa da Folha de segunda-feira) e descreveu outra, em que aparece um preso ensangüentado. Mas, ao que parece, essas imagens são exceções.
Pelo que se sabe hoje (terça-feira, quando encerro esta coluna), as fotografias que veremos não são imagens de tortura física, mutilação ou assassinato. A galeria dos horrores é no mesmo tom das fotos da semana passada. Só para lembrar: além de Lynndie England com o preso na coleira, Lynndie e Charles Graner (seu companheiro de cama) triunfantes sobre um amontoado de iraquianos nus numa suruba forçada, Lynndie rindo enquanto aponta para o pênis de um preso, outro preso nu encapuzado com uma calcinha e por aí vai.
Segunda à noite, aliás, a CNN informou que, entre as novidades, se destacam presos forçados a simular sodomia e um ato sexual entre soldados americanos.
Apesar de tudo isso, a mídia, quase unânime, fala genericamente de violência e abuso; esquece pudicamente que as imagens são intragáveis por serem FOTOGRAFIAS ERÓTICAS.
Essas maiúsculas respondem ao esforço em curso para que desviemos o olhar do óbvio erotismo das fotografias da semana passada. Dois exemplos.
À esquerda, Robert Fisk (Folha de 9 de maio) dá prova de uma ingenuidade que beira a idiotice, perguntando, sério: quem treinou Lynndie e Charles, quem lhes ensinou essas práticas? Ele vê nos atos fotografados a prova evidente de que torturadores profissionais da CIA presidiram os interrogatórios. Mas de quais interrogatórios ele está falando? Será que Robert Fisk não vê que, nas fotos da semana passada, as humilhações impostas aos presos não têm outra finalidade senão o gozo de Lynndie, Charles e seus cúmplices (da CIA ou não)? Será que Robert Fisk nunca entrou numa "sex shop"? Será, em suma, que ele não percebe que as fotografias reproduzem a banalidade do repertório sadomasoquista? Será que não se dá conta de que a foto de Lynndie de uniforme e botas, com o preso na coleira, poderia ser, assim como está, o anúncio de uma "dominatrix"?
À direita (também na Folha de 9 de maio), Gerald Baker declara que a "depravação" de Lynndie e Charles "é tão difícil de compreender quanto é abominável". Abominável não há dúvida (por ser imposta aos presos); mas "difícil de compreender"? Como é possível, quando o sadomasoquismo integra o jogo sexual da metade (conto por baixo) dos casais do mundo? Qual é a surpresa?
Por que Fisk faz de conta que não percebe o erotismo das imagens? Por que Baker se apressa a declarar que elas manifestam um desvio patológico extremo?
Parece que, para ambos, a trivialidade que se trata de negar é a mesma que foi revelada pelo marquês de Sade: na modernidade, O EXERCÍCIO DO PODER É ERÓTICO. Incômodo, não é?
O presidente Bush disse que achou as imagens de Lynndie e Charles "sickening", nauseabundas. Acredito. Mas, se ele ficou com vontade de vomitar, é porque as imagens devem ter-lhe lembrado, justamente, que o poder é uma fonte de gozo, sempre: goza-se com um preso na coleira, assim como se goza ordenando que comece um bombardeio ou que as tropas avancem.
Não existem motivos nobres que possam eliminar a parte de gozo que acompanha o exercício do poder. Para nós, o poder é sempre erótico, e o erotismo é sempre atravessado pelo jogo do poder.
Quem não quer saber disso se condena a um uso louco do poder, inocentado por suas pretensas melhores intenções.
Se não reprimirem o erotismo que explode na cara de quem contempla as imagens da semana passada, talvez, desta vez, os americanos consigam inventar um uso mais complexo (e, por que não, mais envergonhado) de seu poder. Se isso acontecer, agradeçam a Lynndie e Charles.
Para complementar:
1) A imprensa americana não pára de contrapor duas mulheres soldados: Lynndie England, a abominável, e Jessica Lynch, que foi ferida, presa pelos iraquianos e liberada por um comando americano. Aposto que as duas receberão (para Jessica já é o caso) cartas com juras de amor e propostas de casamento. Muitos, como o presidente Bush, acharão "sickening" (nauseabundos) os homens que implorarão a Lynndie para que ela os amarre na coleira. O problema é que esses muitos não querem saber o seguinte: aqueles que escreveram para Jessica, por traz das promessas de carinho e flores (as famosas melhores intenções), são provavelmente levados pela fantasia de possuir o corpo da jovem como eles imaginam que foi possuído e estuprado pelos iraquianos que a prenderam (os quais, aliás, na ocasião, parece que se comportaram decentemente).
2) Domingo à noite, fiz uma pesquisa na internet. Em menos de duas horas encontrei o que procurava. Nas salas de bate-papo abertas pelos assinantes de um grande provedor americano, seção "Special Interests", numa sala cujo título convidativo era "Squeeze my balls" (aperte meus testículos), lá estava: alguém se apresentava como uma dominadora e usava, como "nick" (pseudônimo), numa palavra só, "LynndieEngland".
Não acabei, a coluna continua na semana que vem, salvo imprevistos.
quinta-feira, 6 de maio de 2004
"Diários de Motocicleta"
Estréia amanhã "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, inspirado nos diários que Ernesto Guevara escreveu em 1952, quando, com o amigo Alberto Granado, percorreu a América Latina da Argentina à Venezuela, de moto, a pé, de barco ou de carona.
No filme (como provavelmente aconteceu na realidade), a experiência de Ernesto e Alberto é um momento mágico, em que convivem as duas grandes aspirações das gerações que cresceram na segunda metade do século 20: o anseio de liberdade individual, que nos tornou todos um pouco mochileiros (de verdade ou em sonho), e o anseio de viver numa sociedade justa.
Essas vertentes de nossas esperanças se divorciaram precocemente, e o mundo se dividiu em dois blocos: os mochileiros sem justiça e os justiceiros sem mochila. Somos os filhos problemáticos desse casal divorciado e, como tais, logicamente, gostaríamos de juntar os cacos.
Talvez a vontade de reconciliar nossos dois anseios explique por que a figura do Che se tornou uma marca registrada do espírito de revolta.
Na vida de Ernesto Guevara, a travessia narrada no filme não é só um episódio juvenil, mas uma espécie de matriz. Guevara, por mais que se tornasse uma eminência da Revolução Cubana, nunca tirou o pé da estrada. Pouco importa decidir se, do ponto de vista político e estratégico, as expedições congolesa e boliviana fizeram sentido ou não. Para entender o mito do Che, vale uma outra consideração: as expedições foram, para ele, uma maneira (desvairada, se você quiser) de continuar a viagem, de não se transformar num burocrata do poder (num justiceiro sem mochila). Se o Che foi um ídolo pop de ambos os lados da Cortina de Ferro, é porque, durante toda a sua vida, como naquela viagem inicial, ele não parou de encarnar tanto nossos devaneios de livres aventuras quanto nossas exigências de engajamento radical.
Falando em radical, há, no filme, um diálogo memorável entre Alberto e Ernesto, sentados nas pedras de Machu Picchu. Nessa altura, os dois amigos já sentem os efeitos da viagem: a injustiça os assombra. Alberto tem a idéia de casar-se com uma descendente de inca: "Fundaríamos um partido indígena (...). Incentivamos todo o povo a votar, reativamos a revolução de Tupac Amaru, a revolução indo-americana, o que você acha?". Ernesto responde: "Uma revolução sem tiros? Você está louco" (é, aliás, um dos vários momentos em que Gael García Bernal, no papel de Ernesto, passa repentina e perfeitamente da ternura à dureza).
Brincando, poderíamos dizer que a proposta de Alberto foi tentada por João Ramalho com a ajuda de Bartira: chama-se Brasil. Quanto à proposta de Ernesto, ela não parou de fracassar durante o século 20: do Camboja à própria Cuba, passando pela China, o que foi ganho na ponta do fuzil custou caríssimo em liberdade e em vidas.
Mesmo assim, o caráter radical dos sentimentos de Alberto e Ernesto deixa um gosto amargo. É por decepção ou por covardia que nos tornamos incapazes de inventar e projetar utopias radicais?
É estranho assistir à viagem dos dois amigos numa época em que mal se consegue imaginar um mundo diferente e nos resta sonhar apenas com uma melhoria progressiva das condições econômicas de todos. É estranho escutar a conversa de Machu Picchu numa época em que nossa imagem do radicalismo extremo é o MST, um movimento inspirado por uma ideologia católica do fim do século 19, cuja visão do futuro é um mundo arcaico de pequenos proprietários rurais em economia de subsistência, todos rezando o ângelus do fim do dia. Legal e bem melhor que a fome, mas é isso que chamamos de radical?
Claro, a frustração de não saber mais sonhar é acompanhada pela consciência do malogro que sempre parece espreitar nossos sonhos. É difícil olhar para Ernesto jogando pedras no caminhão de uma mineradora sem pensar em suas lutas futuras. Mas, para mim (e deve ser assim para muitos), o caminho entre a raiva do jovem Ernesto e a morte do Che na Bolívia não é uma gloriosa ascensão em direção à santidade. A regra (trágica) é esta: a magnanimidade que pode nos levar a menosprezar nossa própria vida e a encarar o martírio é a mesma que pode nos induzir a menosprezar a vida dos que obstaculizam nossos projetos. Medindo as palavras: quase sempre as melhores intenções alegam sua generosidade para justificar a pior intransigência.
Constato que falei do filme menos do que queria. Mas falei da viagem na qual Alberto e Ernesto me levaram: montanhas-russas de contradições não resolvidas, no mundo e dentro de mim.
Na chegada, fico dividido dolorosamente entre a nostalgia de uma capacidade perdida de sonhar livremente e a consciência das restrições que os próprios sonhos, quando se realizaram, impuseram à liberdade. Acompanha a sensação de que essa divisão nos condena a uma intolerável preguiça.
P.S.:
1) O filme, isso consegui dizer (ao menos, espero), é uma viagem ao coração das esperanças (as quais carregam a ameaça das trevas, como qualquer sol de verão carrega a ameaça da chuva). Mas ele não é só isso: é também um maravilhosa história de amizade entre dois jovens.
2) Rodrigo de la Serna, no papel de Alberto, deveria ser um sério candidato ao Oscar de melhor ator coadjuvante.
No filme (como provavelmente aconteceu na realidade), a experiência de Ernesto e Alberto é um momento mágico, em que convivem as duas grandes aspirações das gerações que cresceram na segunda metade do século 20: o anseio de liberdade individual, que nos tornou todos um pouco mochileiros (de verdade ou em sonho), e o anseio de viver numa sociedade justa.
Essas vertentes de nossas esperanças se divorciaram precocemente, e o mundo se dividiu em dois blocos: os mochileiros sem justiça e os justiceiros sem mochila. Somos os filhos problemáticos desse casal divorciado e, como tais, logicamente, gostaríamos de juntar os cacos.
Talvez a vontade de reconciliar nossos dois anseios explique por que a figura do Che se tornou uma marca registrada do espírito de revolta.
Na vida de Ernesto Guevara, a travessia narrada no filme não é só um episódio juvenil, mas uma espécie de matriz. Guevara, por mais que se tornasse uma eminência da Revolução Cubana, nunca tirou o pé da estrada. Pouco importa decidir se, do ponto de vista político e estratégico, as expedições congolesa e boliviana fizeram sentido ou não. Para entender o mito do Che, vale uma outra consideração: as expedições foram, para ele, uma maneira (desvairada, se você quiser) de continuar a viagem, de não se transformar num burocrata do poder (num justiceiro sem mochila). Se o Che foi um ídolo pop de ambos os lados da Cortina de Ferro, é porque, durante toda a sua vida, como naquela viagem inicial, ele não parou de encarnar tanto nossos devaneios de livres aventuras quanto nossas exigências de engajamento radical.
Falando em radical, há, no filme, um diálogo memorável entre Alberto e Ernesto, sentados nas pedras de Machu Picchu. Nessa altura, os dois amigos já sentem os efeitos da viagem: a injustiça os assombra. Alberto tem a idéia de casar-se com uma descendente de inca: "Fundaríamos um partido indígena (...). Incentivamos todo o povo a votar, reativamos a revolução de Tupac Amaru, a revolução indo-americana, o que você acha?". Ernesto responde: "Uma revolução sem tiros? Você está louco" (é, aliás, um dos vários momentos em que Gael García Bernal, no papel de Ernesto, passa repentina e perfeitamente da ternura à dureza).
Brincando, poderíamos dizer que a proposta de Alberto foi tentada por João Ramalho com a ajuda de Bartira: chama-se Brasil. Quanto à proposta de Ernesto, ela não parou de fracassar durante o século 20: do Camboja à própria Cuba, passando pela China, o que foi ganho na ponta do fuzil custou caríssimo em liberdade e em vidas.
Mesmo assim, o caráter radical dos sentimentos de Alberto e Ernesto deixa um gosto amargo. É por decepção ou por covardia que nos tornamos incapazes de inventar e projetar utopias radicais?
É estranho assistir à viagem dos dois amigos numa época em que mal se consegue imaginar um mundo diferente e nos resta sonhar apenas com uma melhoria progressiva das condições econômicas de todos. É estranho escutar a conversa de Machu Picchu numa época em que nossa imagem do radicalismo extremo é o MST, um movimento inspirado por uma ideologia católica do fim do século 19, cuja visão do futuro é um mundo arcaico de pequenos proprietários rurais em economia de subsistência, todos rezando o ângelus do fim do dia. Legal e bem melhor que a fome, mas é isso que chamamos de radical?
Claro, a frustração de não saber mais sonhar é acompanhada pela consciência do malogro que sempre parece espreitar nossos sonhos. É difícil olhar para Ernesto jogando pedras no caminhão de uma mineradora sem pensar em suas lutas futuras. Mas, para mim (e deve ser assim para muitos), o caminho entre a raiva do jovem Ernesto e a morte do Che na Bolívia não é uma gloriosa ascensão em direção à santidade. A regra (trágica) é esta: a magnanimidade que pode nos levar a menosprezar nossa própria vida e a encarar o martírio é a mesma que pode nos induzir a menosprezar a vida dos que obstaculizam nossos projetos. Medindo as palavras: quase sempre as melhores intenções alegam sua generosidade para justificar a pior intransigência.
Constato que falei do filme menos do que queria. Mas falei da viagem na qual Alberto e Ernesto me levaram: montanhas-russas de contradições não resolvidas, no mundo e dentro de mim.
Na chegada, fico dividido dolorosamente entre a nostalgia de uma capacidade perdida de sonhar livremente e a consciência das restrições que os próprios sonhos, quando se realizaram, impuseram à liberdade. Acompanha a sensação de que essa divisão nos condena a uma intolerável preguiça.
P.S.:
1) O filme, isso consegui dizer (ao menos, espero), é uma viagem ao coração das esperanças (as quais carregam a ameaça das trevas, como qualquer sol de verão carrega a ameaça da chuva). Mas ele não é só isso: é também um maravilhosa história de amizade entre dois jovens.
2) Rodrigo de la Serna, no papel de Alberto, deveria ser um sério candidato ao Oscar de melhor ator coadjuvante.
quinta-feira, 22 de abril de 2004
O diálogo contra o conflito
Muitos leitores me escreveram comentando a coluna de quinta passada, "Carta aberta a Silvio Santos", e o encontro de domingo entre Silvio Santos e Zé Celso. Agradeço a todos.
Em sua maioria, os que comentam o encontro festejam o acontecido, sem necessariamente tomar partido: o fato em si lhes parece uma boa notícia por ser uma vitória do diálogo contra o conflito. Compartilho esse sentimento.
Estou um pouco cansado de conflitos. E aparentemente não sou o único. Não me falta a vontade de lutar pelas coisas que importam. Mas parece que o conflito se tornou a maneira imediata de perceber o mundo.
Não é de estranhar que seja assim. Minha geração cresceu com as convicções seguintes: o drama social se entende pela luta entre classes ou interesses opostos, e o drama individual se entende pela luta entre desejos contrastantes ou entre os desejos e as forças que os reprimem.
A visão do mundo como campo de batalha não é falsa, longe disso. Mas, às vezes, ela funciona como uma forma de preguiça, pela qual preferimos o enfrentamento, por doloroso que seja, ao incômodo de entender, aceitar as diferenças e trocar figurinhas.
Essa constatação é comum a alguns dos melhores pensadores das últimas décadas do século passado. Vários defenderam a idéia de que a razão (que, em princípio, todos compartilhamos) resolveria muitos conflitos pelo diálogo. Isso se fizéssemos o esforço de dialogar.
Infelizmente, de Kosovo ao Iraque, a voz da razão ressoa como um réquiem abafado pelas explosões e pelos gritos de agonia. Parece que somos todos racionais, mas nem por isso somos razoáveis. Na hora do vamos ver, gostamos de mostrar os dentes.
Se a razão não basta para suspender o conflito aberto, fazer apelo a quê?
À força de andar pelo mundo e escutar meus semelhantes, uma coisa aprendi. Aquém das diferenças, de casta, de classe, de status, de ideais e de princípios, temos, sim, algo em comum: a alegria ou a tristeza das paixões, a desolação e o medo da vida que passa e acaba, os prazeres da amizade, a decepção das esperanças frustradas e a euforia das que, por mérito ou sorte, são recompensadas. Em suma, compartilhamos a experiência concreta da vida.
Cuidado: não aposto só na compreensão ou na compaixão. Sabemos que o outro está escrevendo uma carta de amor parecida com a nossa, mas nem sempre isso basta para que não joguemos granadas na trincheira da frente. É difícil renunciar à careta do inimigo jurado, pois ela nos proporciona o conforto de uma identidade clara e definida. Eu sou assim, o outro é assado. Só falta assá-lo mesmo, não é?
Mas a vida concreta oferece mais um recurso: sua sabedoria prática. Nela, quase sempre, os pretensos inimigos inventam e negociam, a cada dia, jeitos de baixar as máscaras e de habitar as mesmas ruas.
Vamos ao caso que nos interessa. Alguns leitores se disseram preocupados com a perspectiva de que a modernização do Bexiga acabe com a alma do bairro. Outros, ao contrário, preocupados com a perspectiva de que os obstáculos à mesma modernização condenem o bairro ao atraso e à pobreza.
Não sei qual será o futuro do diálogo que começou domingo. Mas, se me meti, é bem porque acho que o conflito é, em grande parte, abstrato, ou seja, que a oposição transforma ambos os lados em caricaturas desnecessárias. Não acredito que Zé Celso seja nostálgico do cartão-postal de um Bexiga pitoresco e miserável, como não acredito que Silvio Santos deseje um Bexiga sem alma, pesadelo extraído de um filme de Godard. Acredito, ao contrário, que o Bexiga de amanhã possa ser uma mistura de ousadia urbana e história, cinemas de arte e não de arte, padarias e fast food, botecos e pizzarias pronta-entrega, shopping center e lojinhas, teatros de vaudeville e arenas populares antropofágicas. Em suma, um bairro com a cara e as contradições da gente.
Jacqueline (dez anos) é uma das atrizes mais jovens e mais talentosas do teatro Oficina. Algum tempo atrás, durante um ensaio, Zé Celso pediu a Jacqueline que ela encenasse uma grande alegria e, para ajudá-la, lhe sugeriu que pensasse em algo muito prazeroso. Jacqueline se esquivava, e Zé Celso insistiu: "Qual é a coisa que você mais gosta?". "Um McDonald's", respondeu Jacqueline, para a hilaridade geral. Zé Celso não hesitou: "Então pense no McDonald's e encene".
Pois é, se Jacqueline pode encenar alegria pensando num Big Mac, por que, no Bexiga de amanhã, não coabitariam o teatro Oficina e a modernidade do projeto de Silvio Santos? Afinal, elas já coabitam concretamente em Jacqueline e, de fato, em todos nós.
Alguns me perguntaram qual foi minha função nesta história. Respondo com a observação de uma leitora, Lavínia Pannunzio, que, ao mandar seu abraço, retomou assim minha carta de quinta passada: "Você foi o palhaço com o megafone, abrindo caminhos pela cidade". Não podia aspirar a maior elogio.
A Silvio Santos vão meus agradecimentos mais sinceros: sua visita ao Oficina satisfez meu pedido de criança.
P.S.: No domingo passado, às 16h, eu devia estar na Bienal do Livro para lançar "Terra de Ninguém", uma coletânea destas colunas. Peço desculpa por não ter honrado o compromisso: quase no mesmo horário, aconteceu o encontro entre Silvio Santos e Zé Celso, no Teatro Oficina.
quinta-feira, 15 de abril de 2004
Carta aberta a Silvio Santos
Caro Silvio Santos,
Confesso que não sou um espectador de "Todos contra Um". No passado, assisti ao "Show do Milhão" só duas ou três vezes. Nunca comprei um "carnê do Silvio".
Mas meus sogros, Heloísa e Valentim, gostam de você. E, como tenho um grande carinho por meus sogros, sou grato por todas as vezes que eles passaram bons momentos assistindo ao "show do Silvio".
No ano passado, quando surgiu o boato de que você estaria doente, uma senhora, minha conhecida, comentou: "Só o que faltava, não ter mais nem o Silvio". Em geral, minha turma é crítica e pensa que você distribui ilusões como a gente enfia balas nas mãos dos meninos nos faróis. Mas eu acho que há um grande mérito (seu mérito) em conseguir encarnar, para tantos brasileiros, um sentimento sem o qual é difícil viver: a esperança de que amanhã a gente tenha um pouco de sorte.
Por isso, permito-me a familiaridade desta carta.
Escrevo-lhe por uma história que você deve estar cansado de ouvir: o grupo que você lidera projeta um shopping center (ou um centro de convenções) na área do Bexiga em que surge o Teatro Oficina, dirigido por Zé Celso Martinez. Claro, ninguém contesta: o teatro é tombado, pois ele é um patrimônio insubstituível da cultura brasileira, tanto por sua arquitetura quanto pela companhia que ele abriga. Também imagino, embora eu não conheça o projeto em sua fase atual, que nenhum arquiteto se proporia a encapsular o Oficina num casulo de edifícios. Então, qual é o problema?
O problema, como você sabe, é o espaço ao redor do Oficina. É necessário um recuo suficiente para que a luz do dia e o sol atravessem livremente a parede de vidro que, com o teto retrátil, faz do Oficina esta raridade: uma sala de teatro aberta para o mundo. Além disso, no terreno ao lado e nos fundos do teatro, o projeto do Oficina prevê uma arena aberta e locais para atividades que vão além da produção de peças: um lugar de lazer e educação teatral para as crianças do Bexiga que freqüentam o Oficina, um centro de estudos etc.
Pouco importam os detalhes. Meu pedido é apenas este: que você se disponha a encontrar Zé Celso ou autorize seu arquiteto a encontrar Zé Celso. No diálogo, é óbvio que se manifestarão interesses contrastantes, mas poderia também surgir o desejo comum de construir algo que seja bom para o Bexiga, para São Paulo, para o Brasil e para o teatro.
Sobre o Oficina, você já deve saber tudo o que importa. Se não for o caso, outros poderão lhe dizer melhor do que eu. Mas nada vale a experiência. Aposto (sem consultar ninguém) que a companhia se disporia a recebê-lo para uma representação só para você, quem sabe um condensado das duas partes de "O Homem". Mas deixe que lhe conte uma história.
Eu fui uma criança bem-comportada, numa cidade ferida pela guerra, Milão, na Itália. Um pouco por medo de que encontrasse uma bomba não explodida nos escombros, um pouco por respeitabilidade burguesa, meus pais não queriam que brincasse na rua. Ia para a escola, estudava e brincava no meu quarto.
Era raro, mas acontecia duas ou três vezes por ano, que um circo visitasse a cidade. Quando era um circo grande, passava um Fiat 600 gritando pelo alto-falante: "De volta da mirabolante turnê que o levou aos quatro cantos do Universo, ainda fremente pelos aplausos das multidões de Londres, Paris e Istambul, está em Milão o grande circo Togni; crianças, tragam seus pais; elefantes, leões, tigres da Bessarábia [nunca soube se há mesmo tigres na Bessarábia], os trapezistas de Moscou que arriscam sua vida sem rede, o homem-bala de Praga, os cavalos da grande escola de Viena".
Eu, na verdade, preferia os circos pobres, que se instalavam perto de casa. Nesse caso, o alto-falante vinha na mão do palhaço que abria um pequeno desfile de saltimbancos, malabaristas, anões, mulher barbada, homem-serpente e um ou dois bichos, um macaco, um cavalo.
Insistia tanto que meus pais achavam graça e deixavam que eu fosse a mais de uma representação do mesmo circo. Nunca souberam que o espetáculo, para mim, era duplo. Certo, admirava os corpos magicamente bonitos em suas roupas furadas de paetê; comovia-me com o drama do pateta, vítima do clown branco; gritava quando a trapezista voava no céu. Mas, no intervalo e depois do espetáculo, gostava de passear, meio às escondidas, entre os reboques que serviam de casa ao povo do circo. Tinha cheiro de sopa caseira, de roupa lavada e de malhas suadas, risos, gritos de brigas, portas entreabertas que mostravam espelhos, maquiagens e panelas. As duas coisas juntas, o espetáculo e os bastidores, eram, para mim, uma única experiência: foi ali que aprendi para sempre, acho, que é possível sonhar sem deixar de gostar da vida concreta.
Ora, quando vou para o Oficina, sinto a mesma alegria de quando era dia de circo na cidade. Não freqüento os bastidores do teatro. Não é preciso, porque o Oficina é construído para que não haja muita diferença entre cena, platéia e bastidores e porque a magia de seus espetáculos é esta: transformar em teatro a fúria, a euforia, a miséria e a paixão da vida concreta.
Em suma, caro Silvio Santos, receba este escrito como se fosse a carta de uma criança que lhe pede ajuda para que nosso melhor circo continue e cresça.
Obrigado e um abraço,
Contardo
sexta-feira, 9 de abril de 2004
Benjamim Zambraia e Tom Ripley
Dois filmes excelentes, ambos em cartaz neste momento, instigam a reflexão sobre a possibilidade de uma moral moderna.
Eis o problema: por prezarmos nossa autonomia acima de tudo, não gostamos que um deus seja nosso pastor e não aceitamos que a tradição nos diga o que é certo ou errado. Nessas condições, como orientar nossas vidas? Claro, julgando e pensando com nossas cabeças. Mas onde está, em nossas cabeças, uma inspiração que seja verdadeiramente a nossa e não apenas um resto de convenções estabelecidas, às quais não queremos mais obedecer?
"O Retorno do Talentoso Ripley", de Liliana Cavani, nos apresenta um Ripley maduro, que vive no Vêneto, numa esplêndida vila renascentista, e divide seu tempo entre sofisticações gastronômicas, música mais que clássica e transas eruditas, tocando o cravo a quatro mãos. Ele é um esteta, ou seja, um sujeito para quem os valores estéticos são a referência fundamental.
O esteta não se entrega desordenadamente às exigências da carne. Ao contrário, ele educa seus sentidos de maneira a inventar uma refinada disciplina de prazeres, que constitui sua regra. Confrontado com a tarefa de encontrar nele mesmo as normas de sua vida, o esteta responde adequadamente e escolhe o critério talvez mais subjetivo: o gosto.
Comparados com o Ripley de Liliana Cavani, os libertinos do marquês de Sade são os adolescentes da moralidade moderna, constantemente preocupados em desafiar a autoridade (divina ou política) para demonstrar sua autonomia moral. Ripley não se perde em blasfêmias, não se confronta com algum ente supremo. Ele apenas cuida da estética de seu prazer.
No intento de acalmar um amigo que parece atormentado pela dura tarefa de assassinar, Ripley comenta que não há por que se preocupar, já que "nobody is watching", ninguém está olhando. A frase não se refere só à ausência de testemunhas ou de policiais na hora do crime. É uma observação metafísica: ninguém contempla nossas ações e nos julga do andar de cima ou do céu. A origem das regras que regem nossas condutas está em nós, não nas sobrancelhas franzidas de um deus ou de um senhor.
Se ninguém está olhando, podemos cair numa gandaia desregrada, feito trapalhões da liberdade. Ou então, com Ripley, adotar a seguinte restrição: tudo é permitido, à condição de obrar com elegância. Matar alguém, como ele mesmo explica, significa que amanhã haverá um carro a menos no horário do pico, o que certamente melhorará a estética de nossas ruas.
Ora, Ripley é um extraterrestre: nós não somos assim.
Nós nos parecemos muito mais com o herói de "Benjamim", o filme de Monique Gardenberg, inspirado no romance de Chico Buarque. Benjamim Zambraia (atuação memorável de Paulo José) pode nos servir de anti-Ripley: não lhe falta o desejo de tocar a vida com bom gosto, mas sua existência é atormentada (e, portanto, organizada) por uma culpa.
Pouco importa qual foi o ato nefasto que está na origem da culpa de Benjamim; isso o espectador descobrirá. Mas, sem revelá-lo, podemos perguntar por que o ato em questão produz, para Benjamim, a culpa que organiza sua vida.
Benjamim é tão moderno quanto Ripley: ele não se angustia por ter transgredido ditados divinos ou tradicionais. O gesto que mancha seu passado produz culpa porque suscita o desprezo de seus amigos.
Ou seja, Benjamim vive no mesmo mundo sem deus e sem tradições no qual se movimenta Ripley. Mas, mais próximo da gente, ele não consegue erigir seu senso estético em regra moral absoluta; ele não tem a têmpera do esteta que, soberanamente, dispensa o aplauso de seus semelhantes. Benjamim precisa dos outros: portanto substitui o olhar divino pelo olhar do próximo. Ele mede a indignidade de seu gesto quando esse lhe vale um cuspe na cara.
O fim da história de Benjamim Zambraia contém uma outra lição. A culpa é certamente uma fonte possível da moral, mas é uma fonte perniciosa pela razão seguinte: os atos inspirados pela culpa visam sobretudo à punição de quem se acha culpado. Ou seja, se agirmos por culpa, nossa escolha "moralmente certa" não consistirá em fazer algum bem, mas em dar um jeito para que soframos, enfim, as conseqüências de nossos erros passados (essa constatação tem algumas implicações políticas e sociais, mas isso fica para outra vez).
Até aqui, apareceram três figuras da duvidosa e difícil moralidade moderna: o desbunde sem regras (no filme de Liliana Cavani, há um cúmplice passado de Ripley que é um bom exemplo disso; logicamente, ele acaba mal), o dandismo gélido do esteta (Ripley) e a expiação de uma culpa que foi decretada pela desaprovação dos outros (Benjamim).
Para completar a reflexão com uma nota de esperança, estréia na semana que vem "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, inspirado no diário que o jovem Ernesto Guevara escreveu durante sua viagem pela América Latina, em 1952.
Desde já, vale a pena antecipar que o filme nos encoraja a sonhar com uma quarta via. Para quem não aceita que as regras morais desçam do céu ou sejam ditadas pela tradição, talvez não reste apenas a escolha entre desbunde, estetismo e culpa. Talvez exista também a possibilidade de que uma regra moral surja a partir de uma experiência de vida. Justamente, o filme de Walter Salles nos conta como isso aconteceu com o futuro Che.
Eis o problema: por prezarmos nossa autonomia acima de tudo, não gostamos que um deus seja nosso pastor e não aceitamos que a tradição nos diga o que é certo ou errado. Nessas condições, como orientar nossas vidas? Claro, julgando e pensando com nossas cabeças. Mas onde está, em nossas cabeças, uma inspiração que seja verdadeiramente a nossa e não apenas um resto de convenções estabelecidas, às quais não queremos mais obedecer?
"O Retorno do Talentoso Ripley", de Liliana Cavani, nos apresenta um Ripley maduro, que vive no Vêneto, numa esplêndida vila renascentista, e divide seu tempo entre sofisticações gastronômicas, música mais que clássica e transas eruditas, tocando o cravo a quatro mãos. Ele é um esteta, ou seja, um sujeito para quem os valores estéticos são a referência fundamental.
O esteta não se entrega desordenadamente às exigências da carne. Ao contrário, ele educa seus sentidos de maneira a inventar uma refinada disciplina de prazeres, que constitui sua regra. Confrontado com a tarefa de encontrar nele mesmo as normas de sua vida, o esteta responde adequadamente e escolhe o critério talvez mais subjetivo: o gosto.
Comparados com o Ripley de Liliana Cavani, os libertinos do marquês de Sade são os adolescentes da moralidade moderna, constantemente preocupados em desafiar a autoridade (divina ou política) para demonstrar sua autonomia moral. Ripley não se perde em blasfêmias, não se confronta com algum ente supremo. Ele apenas cuida da estética de seu prazer.
No intento de acalmar um amigo que parece atormentado pela dura tarefa de assassinar, Ripley comenta que não há por que se preocupar, já que "nobody is watching", ninguém está olhando. A frase não se refere só à ausência de testemunhas ou de policiais na hora do crime. É uma observação metafísica: ninguém contempla nossas ações e nos julga do andar de cima ou do céu. A origem das regras que regem nossas condutas está em nós, não nas sobrancelhas franzidas de um deus ou de um senhor.
Se ninguém está olhando, podemos cair numa gandaia desregrada, feito trapalhões da liberdade. Ou então, com Ripley, adotar a seguinte restrição: tudo é permitido, à condição de obrar com elegância. Matar alguém, como ele mesmo explica, significa que amanhã haverá um carro a menos no horário do pico, o que certamente melhorará a estética de nossas ruas.
Ora, Ripley é um extraterrestre: nós não somos assim.
Nós nos parecemos muito mais com o herói de "Benjamim", o filme de Monique Gardenberg, inspirado no romance de Chico Buarque. Benjamim Zambraia (atuação memorável de Paulo José) pode nos servir de anti-Ripley: não lhe falta o desejo de tocar a vida com bom gosto, mas sua existência é atormentada (e, portanto, organizada) por uma culpa.
Pouco importa qual foi o ato nefasto que está na origem da culpa de Benjamim; isso o espectador descobrirá. Mas, sem revelá-lo, podemos perguntar por que o ato em questão produz, para Benjamim, a culpa que organiza sua vida.
Benjamim é tão moderno quanto Ripley: ele não se angustia por ter transgredido ditados divinos ou tradicionais. O gesto que mancha seu passado produz culpa porque suscita o desprezo de seus amigos.
Ou seja, Benjamim vive no mesmo mundo sem deus e sem tradições no qual se movimenta Ripley. Mas, mais próximo da gente, ele não consegue erigir seu senso estético em regra moral absoluta; ele não tem a têmpera do esteta que, soberanamente, dispensa o aplauso de seus semelhantes. Benjamim precisa dos outros: portanto substitui o olhar divino pelo olhar do próximo. Ele mede a indignidade de seu gesto quando esse lhe vale um cuspe na cara.
O fim da história de Benjamim Zambraia contém uma outra lição. A culpa é certamente uma fonte possível da moral, mas é uma fonte perniciosa pela razão seguinte: os atos inspirados pela culpa visam sobretudo à punição de quem se acha culpado. Ou seja, se agirmos por culpa, nossa escolha "moralmente certa" não consistirá em fazer algum bem, mas em dar um jeito para que soframos, enfim, as conseqüências de nossos erros passados (essa constatação tem algumas implicações políticas e sociais, mas isso fica para outra vez).
Até aqui, apareceram três figuras da duvidosa e difícil moralidade moderna: o desbunde sem regras (no filme de Liliana Cavani, há um cúmplice passado de Ripley que é um bom exemplo disso; logicamente, ele acaba mal), o dandismo gélido do esteta (Ripley) e a expiação de uma culpa que foi decretada pela desaprovação dos outros (Benjamim).
Para completar a reflexão com uma nota de esperança, estréia na semana que vem "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, inspirado no diário que o jovem Ernesto Guevara escreveu durante sua viagem pela América Latina, em 1952.
Desde já, vale a pena antecipar que o filme nos encoraja a sonhar com uma quarta via. Para quem não aceita que as regras morais desçam do céu ou sejam ditadas pela tradição, talvez não reste apenas a escolha entre desbunde, estetismo e culpa. Talvez exista também a possibilidade de que uma regra moral surja a partir de uma experiência de vida. Justamente, o filme de Walter Salles nos conta como isso aconteceu com o futuro Che.
quinta-feira, 8 de abril de 2004
Adolescentes, entre um elefante e as cobras de Samwaad
Estreou na semana passada "Elefante", de Gus van Sant. O filme conta uma história mais que parecida com os acontecimentos de 20 de abril de 1999, quando dois estudantes de último ano do colégio de Columbine, Colorado, saíram atirando, assassinaram um professor e 12 colegas, feriram dezenas de outros e se mataram.
Para a decepção dos comentaristas, os dois jovens, Dylan Klebold e Eric Harris, eram quase "normais". Suas famílias não pareciam sinistras. Eles tinham pais e irmãos. Eram alunos corretos. Certo, não se integravam nos grupos em que se divide cada colégio americano (esportistas, cus-de-ferro, pode-crer etc.); mas os que não se integram são, em cada colégio, numerosos.
Verdade, gostavam de jogar "Doom", um video game muito violento; mas "Doom" vendeu acima de 600 mil cópias. Já havia armas em casa e era fácil conseguir mais; mas isso é banal num subúrbio do Colorado. Também, em 1998, os dois tinham tentado roubar um carro; mas, desde então, eles haviam completado com sucesso um programa para adolescentes réus primários (terapia, trabalho social etc.). Depois do massacre, foram encontradas, nos diários dos dois jovens, expressões de ódio suicida e homicida. Mas nada além de muitas letras de rap ou das músicas de um Kurt Cobain.
Em suma, mil razões, mas nenhuma à altura da enormidade do que aconteceu. Fora a dor das famílias das vítimas (e dos assassinos), fora o luto da comunidade de Columbine, o maior sofrimento produzido pelo evento foi, sem ironia, a frustração de não conseguirmos explicar.
A extraordinária qualidade do filme de Gus van Sant é esta: parece óbvio que uma tragédia vai acontecer, óbvio como um elefante passeando pela rua, mas as explicações do desastre são apenas jeitos que a gente encontra para que a razão nos console. As causas verdadeiras se perdem na banalidade cotidiana.
Naquele dia, Dylan e Eric, com seu fardo de armas, granadas e munições, levaram provavelmente para a escola um conjunto de desgostos triviais: a insatisfação com o vazio e a solidão de suas vidas, a vontade imperiosa de que algo acontecesse, a tristeza de eles não serem os heróis de ninguém, a frustração de não saber o que é amar.
Parêntese. Desde a ano passado, vários leitores me escreveram perguntando por que nunca comentei "Tiros em Columbine", o documentário de Michael Moore. De fato, gostei bastante do filme de M. Moore: é uma meditação (engraçada e corretamente não conclusiva) sobre a posse de armas na sociedade americana. É central, no filme, a comparação com o Canadá, onde a quantidade de armas per habitante é bem maior que nos EUA, embora o número de crimes seja incomparavelmente menor. Também central é o fato de que o próprio Michael Moore, fiel a suas raízes proletárias fincadas na América profunda, é membro de carteirinha da National Rifle Association, a associação americana dos proprietários de armas.
Os intelectuais progressistas americanos adotaram "Tiros em Columbine", mas a um preço: esqueceram a complexidade do filme. Puderam, assim, usá-lo para confirmar o que já pensavam: as armas são coisas de camponês e operário, coisa de pobre (de espírito e de conta no banco). Na espera de que as massas sejam "educadas", retiremos as armas de circulação, e as crianças voltarão para a escola seguras. Responde Gus van Sant: o buraco é mais embaixo. Parêntese fechado.
O que fazer, então, com esse elefante estranhamente familiar, que passeia por nossos gramados?
Lembra-se daquele jogo de crianças em que você coloca na mesa a figurinha de um bicho, e o colega propõe outro bicho, afirmando que o dele é mais forte e, numa luta, ganharia do seu? Ao elefante de Columbine, eu contraporia as cobras de adolescentes dançando, no espetáculo montado por Ivaldo Bertazzo, "Samwaad, a Rua do Encontro", no Sesc Belenzinho. Se você mora em São Paulo ou se vier para cá até o fim de junho, não perca.
O espetáculo é o resultado do projeto Dança Comunidade: durante nove meses, 53 jovens de várias ONGs de São Paulo passaram 25 horas por semana estudando e treinando para redescobrir seus corpos.
Em "Samwaad" não há discursos nem palavras. Só música, canto rítmico, percussões e dança. Misteriosamente, as evoluções dos dançarinos contêm e transmitem uma mensagem arrepiante de alegria de viver e de solidariedade possível.
Se fosse necessária uma demonstração de que o trabalho corporal pode tocar algum âmago da subjetividade, ela está dada. Aventurar-se na graça e na harmonia, transformar postura e gestualidade para um passeio na "Rua do Encontro" é uma maneira de recompor a imagem de si que cada um oferece aos outros, é um jeito de inventar novas relações. Pois, por exemplo, ninguém entra na ciranda sem confiar no próximo.
Olhando para os jovens de "Samwaad", pensei na caminhada triste de Dylan e Eric, que enfiavam os coturnos na grama carregando suas bolsas de morte, talvez encurvando os ombros, na paródia da postura do cantor de rap, que se tornou moda entre os adolescentes americanos e que evoca a atitude do boxeador acuado nas cordas.
Seria bom se os Dylans e Erics da vida encontrassem um Ivaldo Bertazzo que lhes ensinasse a dançar.
Para a decepção dos comentaristas, os dois jovens, Dylan Klebold e Eric Harris, eram quase "normais". Suas famílias não pareciam sinistras. Eles tinham pais e irmãos. Eram alunos corretos. Certo, não se integravam nos grupos em que se divide cada colégio americano (esportistas, cus-de-ferro, pode-crer etc.); mas os que não se integram são, em cada colégio, numerosos.
Verdade, gostavam de jogar "Doom", um video game muito violento; mas "Doom" vendeu acima de 600 mil cópias. Já havia armas em casa e era fácil conseguir mais; mas isso é banal num subúrbio do Colorado. Também, em 1998, os dois tinham tentado roubar um carro; mas, desde então, eles haviam completado com sucesso um programa para adolescentes réus primários (terapia, trabalho social etc.). Depois do massacre, foram encontradas, nos diários dos dois jovens, expressões de ódio suicida e homicida. Mas nada além de muitas letras de rap ou das músicas de um Kurt Cobain.
Em suma, mil razões, mas nenhuma à altura da enormidade do que aconteceu. Fora a dor das famílias das vítimas (e dos assassinos), fora o luto da comunidade de Columbine, o maior sofrimento produzido pelo evento foi, sem ironia, a frustração de não conseguirmos explicar.
A extraordinária qualidade do filme de Gus van Sant é esta: parece óbvio que uma tragédia vai acontecer, óbvio como um elefante passeando pela rua, mas as explicações do desastre são apenas jeitos que a gente encontra para que a razão nos console. As causas verdadeiras se perdem na banalidade cotidiana.
Naquele dia, Dylan e Eric, com seu fardo de armas, granadas e munições, levaram provavelmente para a escola um conjunto de desgostos triviais: a insatisfação com o vazio e a solidão de suas vidas, a vontade imperiosa de que algo acontecesse, a tristeza de eles não serem os heróis de ninguém, a frustração de não saber o que é amar.
Parêntese. Desde a ano passado, vários leitores me escreveram perguntando por que nunca comentei "Tiros em Columbine", o documentário de Michael Moore. De fato, gostei bastante do filme de M. Moore: é uma meditação (engraçada e corretamente não conclusiva) sobre a posse de armas na sociedade americana. É central, no filme, a comparação com o Canadá, onde a quantidade de armas per habitante é bem maior que nos EUA, embora o número de crimes seja incomparavelmente menor. Também central é o fato de que o próprio Michael Moore, fiel a suas raízes proletárias fincadas na América profunda, é membro de carteirinha da National Rifle Association, a associação americana dos proprietários de armas.
Os intelectuais progressistas americanos adotaram "Tiros em Columbine", mas a um preço: esqueceram a complexidade do filme. Puderam, assim, usá-lo para confirmar o que já pensavam: as armas são coisas de camponês e operário, coisa de pobre (de espírito e de conta no banco). Na espera de que as massas sejam "educadas", retiremos as armas de circulação, e as crianças voltarão para a escola seguras. Responde Gus van Sant: o buraco é mais embaixo. Parêntese fechado.
O que fazer, então, com esse elefante estranhamente familiar, que passeia por nossos gramados?
Lembra-se daquele jogo de crianças em que você coloca na mesa a figurinha de um bicho, e o colega propõe outro bicho, afirmando que o dele é mais forte e, numa luta, ganharia do seu? Ao elefante de Columbine, eu contraporia as cobras de adolescentes dançando, no espetáculo montado por Ivaldo Bertazzo, "Samwaad, a Rua do Encontro", no Sesc Belenzinho. Se você mora em São Paulo ou se vier para cá até o fim de junho, não perca.
O espetáculo é o resultado do projeto Dança Comunidade: durante nove meses, 53 jovens de várias ONGs de São Paulo passaram 25 horas por semana estudando e treinando para redescobrir seus corpos.
Em "Samwaad" não há discursos nem palavras. Só música, canto rítmico, percussões e dança. Misteriosamente, as evoluções dos dançarinos contêm e transmitem uma mensagem arrepiante de alegria de viver e de solidariedade possível.
Se fosse necessária uma demonstração de que o trabalho corporal pode tocar algum âmago da subjetividade, ela está dada. Aventurar-se na graça e na harmonia, transformar postura e gestualidade para um passeio na "Rua do Encontro" é uma maneira de recompor a imagem de si que cada um oferece aos outros, é um jeito de inventar novas relações. Pois, por exemplo, ninguém entra na ciranda sem confiar no próximo.
Olhando para os jovens de "Samwaad", pensei na caminhada triste de Dylan e Eric, que enfiavam os coturnos na grama carregando suas bolsas de morte, talvez encurvando os ombros, na paródia da postura do cantor de rap, que se tornou moda entre os adolescentes americanos e que evoca a atitude do boxeador acuado nas cordas.
Seria bom se os Dylans e Erics da vida encontrassem um Ivaldo Bertazzo que lhes ensinasse a dançar.
quinta-feira, 1 de abril de 2004
Desemprego
Capa da Folha, na quinta passada: em fevereiro, na região metropolitana de São Paulo, o índice de desemprego subiu mais um pouco.
No domingo, o caderno Empregos assinalava que 56 semanas é o tempo médio para que um desempregado encontre trabalho. Haja ânimo.
As porcentagens variam segundo o índice escolhido, mas, de qualquer forma, é provável que todos os paulistanos conheçam um amigo ou um parente que, a cada manhã, olha no espelho e se pergunta por que fazer a barba ou por que escovar o cabelo.
Estou lendo um livro recente, que trata dos efeitos das adversidades externas sobre nossa saúde mental, "Adversity, Stress and Psychopathology" (Adversidade, Estresse e Psicopatologia), de Bruce Dohrenwend (editor). A perda do emprego está na lista dos piores fatores adversos, com as catástrofes naturais, a morte de uma pessoa amada, o estupro, a doença grave, a separação ou o divórcio.
Nenhuma novidade nisso: é fácil entender que a perda do emprego seja fonte de angústia, de depressão e mesmo, às vezes, de "comportamentos anti-sociais": alcoolismo, violência familiar e condutas criminosas. Compreendemos imediatamente, por exemplo, o desespero do provedor (ou da provedora) que não consegue preencher as expectativas de seus dependentes. "Se a família não pode mais contar comigo, perco minha razão de ser."
Mas há algo mais, que talvez faça do desemprego a adversidade mais danosa para nossa saúde mental.
Preste atenção: no balcão de um boteco, como na mesa de um jantar, se seus vizinhos forem desconhecidos, a primeira pergunta não será "quem é você?", mas "o que você faz na vida?". Se eles tiverem uma intenção alegre, talvez tentem primeiro descobrir seu estado civil. Fora isso, o interesse pela sua identidade se apresentará como interesse por seu papel produtivo.
Ora, tanto você como seu vizinho (ou vizinha) viverão essa conversa inicial como um momento, de alguma forma, falso. Pois todos sabemos que somos mais do que nosso ofício: temos histórias, amores, esperanças, interesses, paixões e crenças que, de fato, expressariam muito melhor quem somos. Ao trocarmos cartões de visita, mentimos por omissão. Identifico-me como executivo, bancária, escritor, médica, mecânico, mas quem sou eu? A poeta da meia-noite? O sedutor das salas de bate-papo na internet? O piadista do bar da esquina? O pai preocupado com a doença do filho? A mulher que, a caminho do escritório, se agacha e conversa com o sem-teto que vive na calçada? O homem que cantarola Dorival Caymmi tomando banho?
Não é o caso de sermos nostálgicos. Num passado não muito remoto, cada um era definido por sua proveniência, e as perguntas iniciais diziam: quem foram seus pais e antepassados? Onde você nasceu? Quais são as dívidas que você herdou?
Prefiro os dias de hoje, em que são nossas próprias façanhas que nos definem. É uma escolha que deveria nos deixar mais livres, mas acontece que a praticamos de um jeito estranho: junto com os laços que nos prendiam a nossas origens e ao passado, nossa vida concreta também é silenciada na descrição de nossa identidade. E nos transformamos em sujeitos abstratos, resumidos por nossa função na produção e na circulação de mercadorias e serviços.
Conseqüência: o desemprego nos ameaça com uma perda radical de identidade. E não adianta observar que, afinal, nos sobra o resto, ou seja, toda a complexidade de nosso ser. Tipo: "Perdi meu emprego, mas ainda sou pai amoroso, amante, esposo, amigo, leitor de Saramago e corintiano ou palmeirense". Não adianta porque, em regra, já renunciamos há tempos a sermos representados por nossa vida concreta.
Não é por acaso que as mulheres lidam com o desemprego melhor que os homens, como mostra uma pesquisa recente de Lucia Artazcoz e outros, "Unemployment and Mental Health: Understanding the Interactions between Gender, Family Roles and Social Class" (Desemprego e Saúde Mental: Para Compreender as Interações entre Gênero, Papéis Familiares e Classe Social), "American Journal of Public Health", 2004, 94. Duas constatações de Artazcoz: 1) o impacto do desemprego é maior nos homens casados do que nos celibatários ("Se não traz o feijão, você ainda é o pai?"), 2) as mulheres casadas com filhos, ao perderem o emprego, sofrem menos que os homens e menos que as celibatárias. Explicação: para as mulheres, o exercício da maternidade ainda constitui uma identidade possível. "O que você faz na vida?" "Tomo conta de meus filhos." Para os homens, essa resposta não basta.
Enfim, espera-se que a economia crie empregos. Mas os poetas e os saltimbancos também têm uma tarefa crucial: são eles que podem, aos poucos, convencer a gente de que é nossa vida concreta que nos define, não nossa função produtiva.
P.S.: Um sonho recorrente propõe que reaprendamos a colocar raízes, ou seja, a definir nossa identidade por uma parcela de terra que nos sustentaria, que seria nossa e à qual pertenceríamos. Em 1932, Henry Ford, consternado pela crise que assolava os EUA, aderiu ao movimento da volta à terra. Declamou: "A terra! É lá que estão nossas raízes. Nenhum seguro-desemprego pode se comparar à aliança entre um homem e seu pedaço de terra". Curioso precursor de João Pedro Stedile, ele imaginava (e nisso tinha razão) que, se cada um mantivesse uma relação íntima com seu lote de terra, o desemprego poderia ser um aperto econômico, mas não uma queda no vazio. Pena, já era tarde demais para isso.
No domingo, o caderno Empregos assinalava que 56 semanas é o tempo médio para que um desempregado encontre trabalho. Haja ânimo.
As porcentagens variam segundo o índice escolhido, mas, de qualquer forma, é provável que todos os paulistanos conheçam um amigo ou um parente que, a cada manhã, olha no espelho e se pergunta por que fazer a barba ou por que escovar o cabelo.
Estou lendo um livro recente, que trata dos efeitos das adversidades externas sobre nossa saúde mental, "Adversity, Stress and Psychopathology" (Adversidade, Estresse e Psicopatologia), de Bruce Dohrenwend (editor). A perda do emprego está na lista dos piores fatores adversos, com as catástrofes naturais, a morte de uma pessoa amada, o estupro, a doença grave, a separação ou o divórcio.
Nenhuma novidade nisso: é fácil entender que a perda do emprego seja fonte de angústia, de depressão e mesmo, às vezes, de "comportamentos anti-sociais": alcoolismo, violência familiar e condutas criminosas. Compreendemos imediatamente, por exemplo, o desespero do provedor (ou da provedora) que não consegue preencher as expectativas de seus dependentes. "Se a família não pode mais contar comigo, perco minha razão de ser."
Mas há algo mais, que talvez faça do desemprego a adversidade mais danosa para nossa saúde mental.
Preste atenção: no balcão de um boteco, como na mesa de um jantar, se seus vizinhos forem desconhecidos, a primeira pergunta não será "quem é você?", mas "o que você faz na vida?". Se eles tiverem uma intenção alegre, talvez tentem primeiro descobrir seu estado civil. Fora isso, o interesse pela sua identidade se apresentará como interesse por seu papel produtivo.
Ora, tanto você como seu vizinho (ou vizinha) viverão essa conversa inicial como um momento, de alguma forma, falso. Pois todos sabemos que somos mais do que nosso ofício: temos histórias, amores, esperanças, interesses, paixões e crenças que, de fato, expressariam muito melhor quem somos. Ao trocarmos cartões de visita, mentimos por omissão. Identifico-me como executivo, bancária, escritor, médica, mecânico, mas quem sou eu? A poeta da meia-noite? O sedutor das salas de bate-papo na internet? O piadista do bar da esquina? O pai preocupado com a doença do filho? A mulher que, a caminho do escritório, se agacha e conversa com o sem-teto que vive na calçada? O homem que cantarola Dorival Caymmi tomando banho?
Não é o caso de sermos nostálgicos. Num passado não muito remoto, cada um era definido por sua proveniência, e as perguntas iniciais diziam: quem foram seus pais e antepassados? Onde você nasceu? Quais são as dívidas que você herdou?
Prefiro os dias de hoje, em que são nossas próprias façanhas que nos definem. É uma escolha que deveria nos deixar mais livres, mas acontece que a praticamos de um jeito estranho: junto com os laços que nos prendiam a nossas origens e ao passado, nossa vida concreta também é silenciada na descrição de nossa identidade. E nos transformamos em sujeitos abstratos, resumidos por nossa função na produção e na circulação de mercadorias e serviços.
Conseqüência: o desemprego nos ameaça com uma perda radical de identidade. E não adianta observar que, afinal, nos sobra o resto, ou seja, toda a complexidade de nosso ser. Tipo: "Perdi meu emprego, mas ainda sou pai amoroso, amante, esposo, amigo, leitor de Saramago e corintiano ou palmeirense". Não adianta porque, em regra, já renunciamos há tempos a sermos representados por nossa vida concreta.
Não é por acaso que as mulheres lidam com o desemprego melhor que os homens, como mostra uma pesquisa recente de Lucia Artazcoz e outros, "Unemployment and Mental Health: Understanding the Interactions between Gender, Family Roles and Social Class" (Desemprego e Saúde Mental: Para Compreender as Interações entre Gênero, Papéis Familiares e Classe Social), "American Journal of Public Health", 2004, 94. Duas constatações de Artazcoz: 1) o impacto do desemprego é maior nos homens casados do que nos celibatários ("Se não traz o feijão, você ainda é o pai?"), 2) as mulheres casadas com filhos, ao perderem o emprego, sofrem menos que os homens e menos que as celibatárias. Explicação: para as mulheres, o exercício da maternidade ainda constitui uma identidade possível. "O que você faz na vida?" "Tomo conta de meus filhos." Para os homens, essa resposta não basta.
Enfim, espera-se que a economia crie empregos. Mas os poetas e os saltimbancos também têm uma tarefa crucial: são eles que podem, aos poucos, convencer a gente de que é nossa vida concreta que nos define, não nossa função produtiva.
P.S.: Um sonho recorrente propõe que reaprendamos a colocar raízes, ou seja, a definir nossa identidade por uma parcela de terra que nos sustentaria, que seria nossa e à qual pertenceríamos. Em 1932, Henry Ford, consternado pela crise que assolava os EUA, aderiu ao movimento da volta à terra. Declamou: "A terra! É lá que estão nossas raízes. Nenhum seguro-desemprego pode se comparar à aliança entre um homem e seu pedaço de terra". Curioso precursor de João Pedro Stedile, ele imaginava (e nisso tinha razão) que, se cada um mantivesse uma relação íntima com seu lote de terra, o desemprego poderia ser um aperto econômico, mas não uma queda no vazio. Pena, já era tarde demais para isso.
quinta-feira, 18 de março de 2004
A Paixão de Cristo
"A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, estréia amanhã no Brasil.
1) Muitos perguntarão: por que representar a paixão de Cristo com tamanha violência e tanto sangue? O cristianismo não seria mais bem apresentado pelo Cristo da ressurreição e pela mensagem generosa dos Evangelhos?
Ora, em 1521, Lucas Cranach publicou um pequeno livro, "Passional Christi und Antichristi" (Paixão do Cristo e do Anticristo). A gravura em que o anticristo era coroado com muita pompa, como um papa ou um imperador, era contraposta à que representava o Cristo escarnecido e humilhado, com sua coroa de espinhos.
Como milhões de homens e mulheres ocidentais, passei minha infância sob o olhar protetor de dois tipos de imagens: de um lado, os heróis nacionais com faixas, gala, espada e bandeira; do outro, o crucifixo. Cuidado: não era o Cristo sentado à direita de Deus nem o Cristo conversando amavelmente com os apóstolos ou sarando leprosos e ressuscitando mortos. Era o Cristo na cruz. Seu poder era obviamente diferente do poder dos heróis a cavalo: ele parecia se originar no próprio martírio.
Em matéria de religião, prefiro conviver com perguntas que não têm resposta. Mas uma coisa me parece certa: sem o mistério (absurdo, como dizia Tertuliano) de um deus que teria aceitado viver um suplício horrível para redimir os pecados dos homens, o cristianismo não passaria de uma ideologia social-democrata. Ótimo e simpático, mas não precisa do Cristo para isso.
No filme de Mel Gibson, a paixão acontece na presença constante do demônio, que é o único derrotado. Se o Cristo desistisse de seu martírio e recorresse a uma mágica divina para evitar o sofrimento, o demônio triunfaria. E prevaleceria, em nossa cultura, uma única idéia do poder, a idéia da qual gosta o maligno e segundo a qual o poder está com o mais forte.
2) Vários críticos acusam Mel Gibson de ser hollywoodiano. Dizem que, na "Paixão de Cristo", o sangue escorre como num filme de ação de segundo escalão.
É uma inversão. O Cristo crucificado é a imagem que mais foi reproduzida e divulgada no segundo milênio do Ocidente. Não é estranho, por conseqüência, que um tema básico de nossas narrativas populares seja o seguinte: um homem é massacrado, surrado, deixado numa poça de sangue, mas ele é um justo e voltará um dia para ajustar as contas.
A paixão de Cristo não precisa do sangue falso de Hollywood, mas há muito sangue de Hollywood que seria impensável sem nosso fascínio pela paixão de Cristo. O próprio Mel Gibson, como ator, já foi "crucificado" mais de uma vez.
3) Ao achar que a violência do filme é excessiva, somos fiéis à modernidade. A partir da segunda metade do século 15, somem das praças da Europa as brutais encenações teatrais do suplício de Cristo, e as imagens da paixão na arte sagrada se tornam menos cruentas. O historiador suíço Valentin Groebner, num livro recente e admirável ("Defaced, the Visual Culture of Violence in the Late Middle Ages"; Desfigurado, a Cultura Visual da Violência na Idade Média Tardia, Zone Books), nota que, a partir de 1525, as representações de Jesus crucificado, em vez de mostrar a agonia de um torturado, começam a apresentar "um redentor delicadamente suspenso na cruz".
Há exceções: o barroco brasileiro produziu, por exemplo, algumas estátuas do corpo doloroso de Cristo que não ficam para trás de nenhum Mel Gibson. Mas, no conjunto, o Renascimento do século 16 (e a gente com ele) prefere esquecer pragas e dores para exaltar as potencialidades do homem. O que era o crucifixo para um sujeito medieval? Uma consolação? Um exemplo de resignação? Pode ser. Mas, quando os pestilentos, os supliciados em praça pública, os famintos e os destroçados das mil guerras olhavam para o crucifixo, eles deviam encontrar um curioso espelho. O que havia de mais real em seus corpos, o sofrimento e a fragilidade mortal, fora também o lote de Deus. Talvez, com isso, eles reconhecessem que sua desgraça não os excluía da humanidade.
A modernidade continua pendurando crucifixos nas paredes, mas prefere esquecer pudicamente a paixão representada. Se precisássemos da imagem de um corpo comum, seria mais um ginasta que um crucificado.
Mel Gibson nos lembra de algo incômodo. E também útil: não há como entender o que é um homem moderno sem considerar que, para muitos, desde a infância, a imagem de um jovem torturado e agonizante foi o primeiro símbolo (paradoxal) de grandeza e o primeiro ideal de um corpo masculino amável e venerável.
Notas
1) Alguns acham que "A Paixão" é um filme anti-semita. A obra confirmaria o antigo argumento segundo o qual "os judeus" quiseram supliciar o Cristo (argumento que, de fato, a Igreja Católica usou durante séculos para supliciar judeus). Ora, no conto evangélico como no filme, Caifás e o "establishment" judaico de Jerusalém (não "os judeus") pediram a crucifixão de um profeta de sucesso, que minava o poder religioso instituído. Esse profeta era Cristo, um judeu.
2) De fato, Tertuliano (terceiro século de nossa era), no "De Carne Christi", não disse "credo quia absurdum" (creio porque é absurdo), mas "credibile est, quia ineptum est": é acreditável porque é inepto, ou seja, porque é uma história fraca.
Aliás, a paixão serve para isto: para que acreditemos nos fracos.
1) Muitos perguntarão: por que representar a paixão de Cristo com tamanha violência e tanto sangue? O cristianismo não seria mais bem apresentado pelo Cristo da ressurreição e pela mensagem generosa dos Evangelhos?
Ora, em 1521, Lucas Cranach publicou um pequeno livro, "Passional Christi und Antichristi" (Paixão do Cristo e do Anticristo). A gravura em que o anticristo era coroado com muita pompa, como um papa ou um imperador, era contraposta à que representava o Cristo escarnecido e humilhado, com sua coroa de espinhos.
Como milhões de homens e mulheres ocidentais, passei minha infância sob o olhar protetor de dois tipos de imagens: de um lado, os heróis nacionais com faixas, gala, espada e bandeira; do outro, o crucifixo. Cuidado: não era o Cristo sentado à direita de Deus nem o Cristo conversando amavelmente com os apóstolos ou sarando leprosos e ressuscitando mortos. Era o Cristo na cruz. Seu poder era obviamente diferente do poder dos heróis a cavalo: ele parecia se originar no próprio martírio.
Em matéria de religião, prefiro conviver com perguntas que não têm resposta. Mas uma coisa me parece certa: sem o mistério (absurdo, como dizia Tertuliano) de um deus que teria aceitado viver um suplício horrível para redimir os pecados dos homens, o cristianismo não passaria de uma ideologia social-democrata. Ótimo e simpático, mas não precisa do Cristo para isso.
No filme de Mel Gibson, a paixão acontece na presença constante do demônio, que é o único derrotado. Se o Cristo desistisse de seu martírio e recorresse a uma mágica divina para evitar o sofrimento, o demônio triunfaria. E prevaleceria, em nossa cultura, uma única idéia do poder, a idéia da qual gosta o maligno e segundo a qual o poder está com o mais forte.
2) Vários críticos acusam Mel Gibson de ser hollywoodiano. Dizem que, na "Paixão de Cristo", o sangue escorre como num filme de ação de segundo escalão.
É uma inversão. O Cristo crucificado é a imagem que mais foi reproduzida e divulgada no segundo milênio do Ocidente. Não é estranho, por conseqüência, que um tema básico de nossas narrativas populares seja o seguinte: um homem é massacrado, surrado, deixado numa poça de sangue, mas ele é um justo e voltará um dia para ajustar as contas.
A paixão de Cristo não precisa do sangue falso de Hollywood, mas há muito sangue de Hollywood que seria impensável sem nosso fascínio pela paixão de Cristo. O próprio Mel Gibson, como ator, já foi "crucificado" mais de uma vez.
3) Ao achar que a violência do filme é excessiva, somos fiéis à modernidade. A partir da segunda metade do século 15, somem das praças da Europa as brutais encenações teatrais do suplício de Cristo, e as imagens da paixão na arte sagrada se tornam menos cruentas. O historiador suíço Valentin Groebner, num livro recente e admirável ("Defaced, the Visual Culture of Violence in the Late Middle Ages"; Desfigurado, a Cultura Visual da Violência na Idade Média Tardia, Zone Books), nota que, a partir de 1525, as representações de Jesus crucificado, em vez de mostrar a agonia de um torturado, começam a apresentar "um redentor delicadamente suspenso na cruz".
Há exceções: o barroco brasileiro produziu, por exemplo, algumas estátuas do corpo doloroso de Cristo que não ficam para trás de nenhum Mel Gibson. Mas, no conjunto, o Renascimento do século 16 (e a gente com ele) prefere esquecer pragas e dores para exaltar as potencialidades do homem. O que era o crucifixo para um sujeito medieval? Uma consolação? Um exemplo de resignação? Pode ser. Mas, quando os pestilentos, os supliciados em praça pública, os famintos e os destroçados das mil guerras olhavam para o crucifixo, eles deviam encontrar um curioso espelho. O que havia de mais real em seus corpos, o sofrimento e a fragilidade mortal, fora também o lote de Deus. Talvez, com isso, eles reconhecessem que sua desgraça não os excluía da humanidade.
A modernidade continua pendurando crucifixos nas paredes, mas prefere esquecer pudicamente a paixão representada. Se precisássemos da imagem de um corpo comum, seria mais um ginasta que um crucificado.
Mel Gibson nos lembra de algo incômodo. E também útil: não há como entender o que é um homem moderno sem considerar que, para muitos, desde a infância, a imagem de um jovem torturado e agonizante foi o primeiro símbolo (paradoxal) de grandeza e o primeiro ideal de um corpo masculino amável e venerável.
Notas
1) Alguns acham que "A Paixão" é um filme anti-semita. A obra confirmaria o antigo argumento segundo o qual "os judeus" quiseram supliciar o Cristo (argumento que, de fato, a Igreja Católica usou durante séculos para supliciar judeus). Ora, no conto evangélico como no filme, Caifás e o "establishment" judaico de Jerusalém (não "os judeus") pediram a crucifixão de um profeta de sucesso, que minava o poder religioso instituído. Esse profeta era Cristo, um judeu.
2) De fato, Tertuliano (terceiro século de nossa era), no "De Carne Christi", não disse "credo quia absurdum" (creio porque é absurdo), mas "credibile est, quia ineptum est": é acreditável porque é inepto, ou seja, porque é uma história fraca.
Aliás, a paixão serve para isto: para que acreditemos nos fracos.
quinta-feira, 11 de março de 2004
Os Estados Desunidos da mente
Há mais de quatro décadas, o La MaMa, no East Village de Manhattan, é o templo nova-iorquino do teatro experimental. No sábado passado, no La MaMa, estreou uma peça escrita e dirigida por Gerald Thomas: "Anchor Pectoris, The United States of the Mind" (Anchor Pectoris, os Estados Unidos da Mente).
A expressão conhecida é "angina pectoris": designa uma dor violenta e opressiva atrás do esterno, que nos aflige quando o oxigênio que chega ao coração é insuficiente. "Anchor pectoris", uma âncora no peito, é uma boa metáfora: evoca o sofrimento (uma espécie de facada no coração e um peso que, esmagando-nos, impede a respiração), mas também, paradoxalmente, promete uma cura. Afinal, estamos (ou somos) todos um pouco perdidos, navegando à deriva: lamentamos o porto seguro do qual saímos um dia e sonhamos com uma âncora que possa nos prender a um lugar ou a uma idéia certa e clara.
A peça nasceu como um "tour de force". Gerald Thomas, de passagem por Nova York em janeiro, visitou Ellen Stewart, a diretora artística do La MaMa. E Ellen, de repente, lhe propôs de montar e encenar um espetáculo em 30 dias.
O resultado é intenso, engraçado e tocante: o diretor nos apresenta a atual encruzilhada de sua vida num instantâneo que é também um inventário tragicômico da subjetividade contemporânea.
Como personagens de Beckett, erramos por um terreno baldio, em que circulam lembranças, pensamentos, esperanças e fragmentos obcecantes de discursos políticos vazios (os de George W. Bush, no caso). A musa que poderia nos inspirar (surpreendente Fabiana Guglielmetti) ora parece morta, ora dança zombando da gente. Stephen Nisbet e Tom Walker são os (ótimos) atores que encarnam o próprio Gerald Thomas. Há um momento em que Nisbet pergunta: será que alguém encontrará o tempo para juntar a sucata em que se partiu nossa subjetividade? E será que valeria a pena? O ator, nessa hora, se parece com um boneco que tivesse desmontado a si mesmo para compreender melhor seu funcionamento e, então, perplexo no meio de um quebra-cabeça de braços e pernas, não encontrasse mais o jeito de se reconstruir.
Surge a tentação de juntar-se ao coro das viúvas do "Meu Deus, que horror, tudo o que é sólido se desmancha no ar". É fácil ser mais uma voz chorando o fim dos ideais, do claro sentido da história, do respeito absoluto pelos mestres etc.
Cuidado: certo, o boneco pós-moderno não consegue rejuntar a sucata em que foi transformado por sua própria curiosidade, no entanto ele oferece algumas compensações. Ele é capaz, por exemplo, de escrever a peça de Gerald Thomas, ou seja, de se enxergar com lucidez e ironia atormentadas. Você acha que essa qualidade não levanta pirâmides nem redige sistemas filosóficos? Pode ser. Mas é a qualidade crucial para aqueles que querem (e ousam) mudar.
Um dos livros mais interessantes que li nos últimos anos é "The Protean Self, Human Resilience in an Age of Fragmentation" (O Sujeito Protéico, a Resistência Humana numa Época de Fragmentação), de Robert Jay Lifton, o grande psicanalista e psiquiatra americano que escreveu sobre a Guerra do Vietnã, as conseqüências psíquicas da ameaça nuclear etc. Protéico, no título, não tem nada a ver com as proteínas; é uma referência a Proteus, um deus da mitologia grega que tinha a faculdade de adotar infinitas formas diferentes (de leão, de serpente, de árvore e mesmo de água), sobretudo para evitar que fosse encurralado e obrigado a responder a perguntas sobre o passado e o futuro (sendo que sobre ambos ele sabia mais do que queria dizer). Proteus é o padroeiro das mudanças.
Entre os mil ensaios sobre a pós-modernidade e a subjetividade contemporânea, "The Protean Self", publicado em 1993, é um dos poucos que não se resumem num lamento da consistência perdida. Para Lifton, a novidade pós-moderna é que, claro, vivemos num mundo inquietante, fluido e múltiplo, mas a contrapartida positiva dessa inconsistência é a extraordinária e constante possibilidade de nos outorgar segundas, terceiras e quartas chances.
O sujeito contemporâneo é um imigrante, um órfão e um sobrevivente: perdeu seu lugar de origem, a proteção da autoridade paterna e a fé tanto na imortalidade de sua alma quanto no progresso infinito da espécie. Essas perdas nos definem e nos mantêm num luto constante, mas elas são as condições de nossa plasticidade, ou seja, de uma capacidade, inédita e gloriosa, de mudança. Quem não tem país, não tem pai e não conta com a eternidade atreve-se facilmente a transformar radicalmente sua vida.
Para Lifton, a subjetividade contemporânea é uma agonia que acarreta seu próprio remédio: a experiência do desamparo é a mola de nossas reinvenções.
É a época sonhada por qualquer terapeuta: nunca houve tanto sofrimento para curar, mas também nunca houve tanta possibilidade de curar, pois nunca houve tanta disponibilidade para mudar.
É também uma boa época para pensar, pois é permitido (ou mesmo encorajado) descuidar autoridades e doutrinas para aceitar as incoerências que são impostas pela realidade.
Assinar:
Postagens (Atom)