quinta-feira, 12 de agosto de 2004

Preâmbulo sobre o projeto de fiscalizar cinema e audiovisual

Na rua, esbarro nos restos de um assalto. Na roda de curiosos que espera a chegada de uma viatura da polícia, ferve um debate. Há o partido da cesta básica: só voltaremos a ser donos de nossas ruas quando, enfim, todos tiverem o que comer. E há o partido da bala básica: não adianta oferecer desculpas, criminoso é criminoso, mate logo.

Conclusão majoritária: o problema é duplo, faltam as cestas e faltam as balas nos revólveres da polícia.
No dia seguinte, um amigo, que se prepara para ser professor e está terminando seu estágio, comenta que uma coisa é óbvia em matéria de disciplina: não adianta que um professor mande alunos para a diretoria a cada aula. O que adianta é a qualidade do ensino. A mesma turma é infernal com um professor duríssimo, mas pouco preparado, e ordeira com outro professor, que nunca levanta a voz, mas transmite uma matéria interessante.

Relaciono a observação do amigo com a conversa na roda do assalto. Se tomarmos a disciplina escolar como exemplo, podemos perguntar: como é mantida a ordem que permite uma boa convivência social? A ameaça de expulsão e a merenda escolar são indispensáveis, mas não bastam. É necessário um outro tipo de alimento, mais "espiritual".

Olho pela minha janela: torres, edifícios, casas, as antenas dos prédios da Paulista. Somos muitos, diferentes e amontoados num espaço exíguo. O que faz com que a gente consiga conviver? Certo, a polícia acaba reprimindo os que são excluídos a tal ponto que lhes falta o mínimo para viver (conviver é o último de seus problemas). A polícia também cuida dos que não são excluídos, mas não querem saber de convivência.

No entanto, não é por medo da polícia que não enveneno o cachorro da vizinha, que late a noite inteira (o cachorro, não a vizinha). Não é por medo da cadeia que trabalho em vez de inventar um esquema fraudulento.

O que torna possível a convivência é outra coisa. É um patrimônio comum de coisas humildes e sublimes, chatas e bonitas, banais e extraordinárias: vozes do rádio, imagens da televisão, filmes, livros nas bibliotecas e nas livrarias, quadros nas salas e nas galerias, jornais nas bancas, poesias e romances lidos ou que ninguém leu e ficam no fundo das gavetas, orçamentos do mês, bate-papos noturnos de internautas, conversas nos botecos, jogos de cartas, torcidas de futebol e receitas de bolo.

Esse saco de gatos, que se chama cultura, é também um saco de normas, hábitos e costumes que praticamos sem perceber. A sociedade é complexa, e ninguém saberia compilar o código dessas regras, mas, sem elas, viveríamos num pesadelo, em que só a repressão nos defenderia da barbárie.

O professor que cativa seus alunos pela qualidade de sua aula está cultivando-os, fornecendo-lhes o necessário para uma convivência social possível.

Em suma, conviver exige inclusão (pão para todos), repressão normativa e riqueza de uma cultura compartilhada.

Os bons governos administram a repressão necessária (que não pode ficar nas mãos dos cidadãos), promovem a inclusão (tarefa assistencial) e, quanto à riqueza cultural, limitam-se a fomentá-la, pois sabem que é graças a ela que a sociedade se auto-regula (com acento sobre "auto"), é graças a ela que a ordem social pode dispensar a repressão.

Essas funções do bom governo devem ser mantidas separadas. Por exemplo, não se recusa assistência médica a um preso nem cesta básica à família indigente de um assassino.

Ora, o Ministério da Cultura acaba de formular um "rascunho" de lei para criar uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. O preâmbulo, que expõe os motivos do projeto, manifesta uma ótima compreensão da função da cultura. É dito que o cinema e o audiovisual definem "padrões de comportamento social" e são "a forma mais rápida e eficiente" de circulação dos "valores éticos, históricos, políticos e sociais cultivados" pelo povo.

No entanto, uma vez reconhecida a relevância da cultura na vida da nação, o projeto quer demonstrar que é fundamental criar "meios de controle e fiscalização das atividades cinematográficas e audiovisuais".

É como se um inspetor pedagógico, ao se dar conta de que, numa aula, os alunos se interessam e se cultivam, confundisse fomentar com reprimir e anunciasse: "Vocês gostaram muito das aulas sobre a era Vargas; a partir de amanhã, quem, numa redação, disser que Vargas não era bonito ficará sem caderno. Na recidiva, tirarei a caneta também". Na aula seguinte, ninguém prestará atenção. Na bagunça, só sobrará o recurso da disciplina.

O redator do preâmbulo imagina que, controlando e fiscalizando a produção cultural, seja possível instalar nos cidadãos os hábitos e costumes desejados (por ele). Parece pensar: "Se há normas, devo ser eu quem as dita".

Ora, como a história cansou de mostrar, não se controla a produção cultural; quem quer controlá-la e fiscalizá-la só consegue torná-la clandestina ou matá-la.

Esse é o meu preâmbulo. O governo deixou 60 dias para que a sociedade civil discuta o "rascunho". Como sou civil e faço parte da sociedade, quero contribuir.

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