sexta-feira, 9 de abril de 2004

Benjamim Zambraia e Tom Ripley

Dois filmes excelentes, ambos em cartaz neste momento, instigam a reflexão sobre a possibilidade de uma moral moderna.
Eis o problema: por prezarmos nossa autonomia acima de tudo, não gostamos que um deus seja nosso pastor e não aceitamos que a tradição nos diga o que é certo ou errado. Nessas condições, como orientar nossas vidas? Claro, julgando e pensando com nossas cabeças. Mas onde está, em nossas cabeças, uma inspiração que seja verdadeiramente a nossa e não apenas um resto de convenções estabelecidas, às quais não queremos mais obedecer?

"O Retorno do Talentoso Ripley", de Liliana Cavani, nos apresenta um Ripley maduro, que vive no Vêneto, numa esplêndida vila renascentista, e divide seu tempo entre sofisticações gastronômicas, música mais que clássica e transas eruditas, tocando o cravo a quatro mãos. Ele é um esteta, ou seja, um sujeito para quem os valores estéticos são a referência fundamental.
O esteta não se entrega desordenadamente às exigências da carne. Ao contrário, ele educa seus sentidos de maneira a inventar uma refinada disciplina de prazeres, que constitui sua regra. Confrontado com a tarefa de encontrar nele mesmo as normas de sua vida, o esteta responde adequadamente e escolhe o critério talvez mais subjetivo: o gosto.

Comparados com o Ripley de Liliana Cavani, os libertinos do marquês de Sade são os adolescentes da moralidade moderna, constantemente preocupados em desafiar a autoridade (divina ou política) para demonstrar sua autonomia moral. Ripley não se perde em blasfêmias, não se confronta com algum ente supremo. Ele apenas cuida da estética de seu prazer.

No intento de acalmar um amigo que parece atormentado pela dura tarefa de assassinar, Ripley comenta que não há por que se preocupar, já que "nobody is watching", ninguém está olhando. A frase não se refere só à ausência de testemunhas ou de policiais na hora do crime. É uma observação metafísica: ninguém contempla nossas ações e nos julga do andar de cima ou do céu. A origem das regras que regem nossas condutas está em nós, não nas sobrancelhas franzidas de um deus ou de um senhor.

Se ninguém está olhando, podemos cair numa gandaia desregrada, feito trapalhões da liberdade. Ou então, com Ripley, adotar a seguinte restrição: tudo é permitido, à condição de obrar com elegância. Matar alguém, como ele mesmo explica, significa que amanhã haverá um carro a menos no horário do pico, o que certamente melhorará a estética de nossas ruas.
Ora, Ripley é um extraterrestre: nós não somos assim.

Nós nos parecemos muito mais com o herói de "Benjamim", o filme de Monique Gardenberg, inspirado no romance de Chico Buarque. Benjamim Zambraia (atuação memorável de Paulo José) pode nos servir de anti-Ripley: não lhe falta o desejo de tocar a vida com bom gosto, mas sua existência é atormentada (e, portanto, organizada) por uma culpa.

Pouco importa qual foi o ato nefasto que está na origem da culpa de Benjamim; isso o espectador descobrirá. Mas, sem revelá-lo, podemos perguntar por que o ato em questão produz, para Benjamim, a culpa que organiza sua vida.

Benjamim é tão moderno quanto Ripley: ele não se angustia por ter transgredido ditados divinos ou tradicionais. O gesto que mancha seu passado produz culpa porque suscita o desprezo de seus amigos.

Ou seja, Benjamim vive no mesmo mundo sem deus e sem tradições no qual se movimenta Ripley. Mas, mais próximo da gente, ele não consegue erigir seu senso estético em regra moral absoluta; ele não tem a têmpera do esteta que, soberanamente, dispensa o aplauso de seus semelhantes. Benjamim precisa dos outros: portanto substitui o olhar divino pelo olhar do próximo. Ele mede a indignidade de seu gesto quando esse lhe vale um cuspe na cara.

O fim da história de Benjamim Zambraia contém uma outra lição. A culpa é certamente uma fonte possível da moral, mas é uma fonte perniciosa pela razão seguinte: os atos inspirados pela culpa visam sobretudo à punição de quem se acha culpado. Ou seja, se agirmos por culpa, nossa escolha "moralmente certa" não consistirá em fazer algum bem, mas em dar um jeito para que soframos, enfim, as conseqüências de nossos erros passados (essa constatação tem algumas implicações políticas e sociais, mas isso fica para outra vez).

Até aqui, apareceram três figuras da duvidosa e difícil moralidade moderna: o desbunde sem regras (no filme de Liliana Cavani, há um cúmplice passado de Ripley que é um bom exemplo disso; logicamente, ele acaba mal), o dandismo gélido do esteta (Ripley) e a expiação de uma culpa que foi decretada pela desaprovação dos outros (Benjamim).

Para completar a reflexão com uma nota de esperança, estréia na semana que vem "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, inspirado no diário que o jovem Ernesto Guevara escreveu durante sua viagem pela América Latina, em 1952.

Desde já, vale a pena antecipar que o filme nos encoraja a sonhar com uma quarta via. Para quem não aceita que as regras morais desçam do céu ou sejam ditadas pela tradição, talvez não reste apenas a escolha entre desbunde, estetismo e culpa. Talvez exista também a possibilidade de que uma regra moral surja a partir de uma experiência de vida. Justamente, o filme de Walter Salles nos conta como isso aconteceu com o futuro Che.

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