quinta-feira, 22 de abril de 2004

O diálogo contra o conflito



Muitos leitores me escreveram comentando a coluna de quinta passada, "Carta aberta a Silvio Santos", e o encontro de domingo entre Silvio Santos e Zé Celso. Agradeço a todos.

Em sua maioria, os que comentam o encontro festejam o acontecido, sem necessariamente tomar partido: o fato em si lhes parece uma boa notícia por ser uma vitória do diálogo contra o conflito. Compartilho esse sentimento.

Estou um pouco cansado de conflitos. E aparentemente não sou o único. Não me falta a vontade de lutar pelas coisas que importam. Mas parece que o conflito se tornou a maneira imediata de perceber o mundo.

Não é de estranhar que seja assim. Minha geração cresceu com as convicções seguintes: o drama social se entende pela luta entre classes ou interesses opostos, e o drama individual se entende pela luta entre desejos contrastantes ou entre os desejos e as forças que os reprimem.

A visão do mundo como campo de batalha não é falsa, longe disso. Mas, às vezes, ela funciona como uma forma de preguiça, pela qual preferimos o enfrentamento, por doloroso que seja, ao incômodo de entender, aceitar as diferenças e trocar figurinhas.

Essa constatação é comum a alguns dos melhores pensadores das últimas décadas do século passado. Vários defenderam a idéia de que a razão (que, em princípio, todos compartilhamos) resolveria muitos conflitos pelo diálogo. Isso se fizéssemos o esforço de dialogar.

Infelizmente, de Kosovo ao Iraque, a voz da razão ressoa como um réquiem abafado pelas explosões e pelos gritos de agonia. Parece que somos todos racionais, mas nem por isso somos razoáveis. Na hora do vamos ver, gostamos de mostrar os dentes.

Se a razão não basta para suspender o conflito aberto, fazer apelo a quê?

À força de andar pelo mundo e escutar meus semelhantes, uma coisa aprendi. Aquém das diferenças, de casta, de classe, de status, de ideais e de princípios, temos, sim, algo em comum: a alegria ou a tristeza das paixões, a desolação e o medo da vida que passa e acaba, os prazeres da amizade, a decepção das esperanças frustradas e a euforia das que, por mérito ou sorte, são recompensadas. Em suma, compartilhamos a experiência concreta da vida.

Cuidado: não aposto só na compreensão ou na compaixão. Sabemos que o outro está escrevendo uma carta de amor parecida com a nossa, mas nem sempre isso basta para que não joguemos granadas na trincheira da frente. É difícil renunciar à careta do inimigo jurado, pois ela nos proporciona o conforto de uma identidade clara e definida. Eu sou assim, o outro é assado. Só falta assá-lo mesmo, não é?

Mas a vida concreta oferece mais um recurso: sua sabedoria prática. Nela, quase sempre, os pretensos inimigos inventam e negociam, a cada dia, jeitos de baixar as máscaras e de habitar as mesmas ruas.

Vamos ao caso que nos interessa. Alguns leitores se disseram preocupados com a perspectiva de que a modernização do Bexiga acabe com a alma do bairro. Outros, ao contrário, preocupados com a perspectiva de que os obstáculos à mesma modernização condenem o bairro ao atraso e à pobreza.

Não sei qual será o futuro do diálogo que começou domingo. Mas, se me meti, é bem porque acho que o conflito é, em grande parte, abstrato, ou seja, que a oposição transforma ambos os lados em caricaturas desnecessárias. Não acredito que Zé Celso seja nostálgico do cartão-postal de um Bexiga pitoresco e miserável, como não acredito que Silvio Santos deseje um Bexiga sem alma, pesadelo extraído de um filme de Godard. Acredito, ao contrário, que o Bexiga de amanhã possa ser uma mistura de ousadia urbana e história, cinemas de arte e não de arte, padarias e fast food, botecos e pizzarias pronta-entrega, shopping center e lojinhas, teatros de vaudeville e arenas populares antropofágicas. Em suma, um bairro com a cara e as contradições da gente.

Jacqueline (dez anos) é uma das atrizes mais jovens e mais talentosas do teatro Oficina. Algum tempo atrás, durante um ensaio, Zé Celso pediu a Jacqueline que ela encenasse uma grande alegria e, para ajudá-la, lhe sugeriu que pensasse em algo muito prazeroso. Jacqueline se esquivava, e Zé Celso insistiu: "Qual é a coisa que você mais gosta?". "Um McDonald's", respondeu Jacqueline, para a hilaridade geral. Zé Celso não hesitou: "Então pense no McDonald's e encene".

Pois é, se Jacqueline pode encenar alegria pensando num Big Mac, por que, no Bexiga de amanhã, não coabitariam o teatro Oficina e a modernidade do projeto de Silvio Santos? Afinal, elas já coabitam concretamente em Jacqueline e, de fato, em todos nós.

Alguns me perguntaram qual foi minha função nesta história. Respondo com a observação de uma leitora, Lavínia Pannunzio, que, ao mandar seu abraço, retomou assim minha carta de quinta passada: "Você foi o palhaço com o megafone, abrindo caminhos pela cidade". Não podia aspirar a maior elogio.

A Silvio Santos vão meus agradecimentos mais sinceros: sua visita ao Oficina satisfez meu pedido de criança.

P.S.: No domingo passado, às 16h, eu devia estar na Bienal do Livro para lançar "Terra de Ninguém", uma coletânea destas colunas. Peço desculpa por não ter honrado o compromisso: quase no mesmo horário, aconteceu o encontro entre Silvio Santos e Zé Celso, no Teatro Oficina.

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