quinta-feira, 26 de agosto de 2004

Quem tem medo dos moradores de rua?

Na madrugada de quinta-feira passada, no centro de São Paulo, dez moradores de rua foram atacados a cacetadas na cabeça durante o sono. Até hoje (terça-feira, quando fecho esta coluna), quatro morreram.
No domingo, novo ataque, do mesmo jeito e no mesmo lugar: morreram mais dois.

Fala-se dos mortos e dos que estão por um fio, mas não se fala das seqüelas para os feridos. Se eles têm pinos que não batem direito, paulada a mais, paulada a menos, qual a diferença? Quando reconheceremos que os loucos e os perdidos são sujeitos como nós?

Levantam-se hipóteses: foi a obra de sicários a mando de comerciantes querendo "limpar" a área? Ou um acerto de contas do tráfico de drogas?

Mas a imagem que me persegue é outra: um pequeno bando de assassinos, na madrugada, percorrendo o centro da cidade, enfurecidos e jocosos como personagens de "Laranja Mecânica", de barra na mão. No meu pesadelo, por escárnio, a primeira matança começou onde nasceu a cidade; vejo eles descerem pela rua São Bento e pela 15 de Novembro, levarem a morte para a praça da Sé e para a praça João Mendes, assassinarem com gosto o travesti Pantera, na esquina com a Tabatingüera. E vão embora pela rua da Glória.

No domingo, os mesmos ou outros voltaram para completar a obra. De onde veio o ódio necessário para erguer o bordão?

Não penso tanto no massacre da Candelária, que foi a tiros, quase profissional. Penso no índio Galdino, queimado vivo em Brasília em 1997, e na morte de Edson Neri da Silva, em 2000, logo na praça da República.

O assassinato de Galdino foi uma diversão para filhos de donos do poder. Colocaram fogo num índio como amarrariam uma serpentina ao rabo de um vira-lata: vamos ver se o animal grita e pula quando a coisa esquenta. O "passatempo" desses adolescentes mimados é diferente do ofício metódico dos assassinos de hoje.

Mas a história de Edson Neri da Silva pode ajudar a entender o que aconteceu na semana que acaba. Você lembra? Foi a obra de "skinheads" decididos a acabar com "uma bicha". Os massacres de homossexuais sempre falam da homossexualidade reprimida de quem mata. Sem exceção, os assassinos tentam abolir uma fantasia sua. Batendo no "veado" na rua, querem acabar com o "veado" que não os deixa dormir, o "veado" que está dentro deles.

É o mesmo ódio que anima os idiotas que passam de carro ao lado do Jockey Clube, à noite, para zombar dos travestis. Gritam injúrias para silenciar sua própria incerteza de gênero e sexo.

Ora, aposto que os assassinos desta semana são tão próximos dos moradores de rua quanto eram próximos de suas vítimas os "skinheads" da praça da República em 2000. Aposto que são sujeitos de uma pequena classe média que a falta de perspectivas ameaça com o espectro da miséria. Aposto que sua fúria homicida é a vontade de apagar a imagem de seu próprio futuro possível. Mataram moradores de rua para "festejar" sua diferença, da mesma forma que os "skinheads" de 2000 quiseram silenciar um desejo que os assombrava.

Na Folha de domingo, Gilberto Dimenstein citou dados recentes da Fundação Seade: em São Paulo, desde 1995, o desemprego entre jovens de 18 a 24 anos subiu de 18% a 30%. Gilberto comentava que tamanho desemprego é um dos "combustíveis da delinqüência". Esse combustível não leva só a assaltar quem tem mais; ele também leva a massacrar quem não tem nada, para esmagar a imagem de um destino que espreita.

O que fazer? Além de prender e punir, podemos inventar uma sociedade em que ninguém esteja a fim de matar a cacetadas o futuro que ele receia. E podemos lembrar que, nessa sociedade, alguém pode perder casa, renda, endereço, identidade e até o nome, mas nem por isso será esquecido, nem por isso parará de ser dos nossos.

Na São Paulo de meus sonhos, depois dos acontecimentos da semana passada, teria acontecido o seguinte. Espontaneamente, na noite de segunda-feira, os edifícios e as casas dos Jardins, de Perdizes, da Mooca, do Tatuapé, da Lapa, da Vila Mariana, do Sumaré, do Itaim etc. iriam se esvaziando. Um a um ou em família, os paulistanos sairiam às ruas, com um saco de dormir embaixo do braço, uma lanterna e uma garrafa térmica. E tomariam o caminho do centro. Nas praças e nas ruas por onde passaram os assassinos, eles se espalhariam, para passar a noite. A maioria não dormiria. Conversaríamos com o vizinho do momento ou ficaríamos acordados por medo dos ratos e das baratas que circulam nas sarjetas. Tanto faz. Seria um jeito de afirmar que a cidade é nossa, não da morte, e que, como qualquer cidade, temos nossos loucos e nossos perdidos: eles abandonaram a corrida, mas continuam parte de nossa comunidade.

Segunda à noite, centenas de representantes de entidades religiosas e de direitos humanos organizaram uma vigília pelas ruas do centro. O evento não ganhou as primeiras páginas, mas foi, até agora, a melhor resposta aos assassinatos.

Sejamos realistas, peçamos o impossível. Que tal decretar um dia em memória dos mortos desta semana e instituir uma tradição pela qual, a cada ano, passaríamos uma noite ao relento, ao lado de nossos moradores de rua?

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