Entre os mortos do motim  da Casa de Custódia de Benfica, no Rio de Janeiro, havia dois  presos condenados "só" por dano  e furto. É óbvio que eles deveriam  estar cumprindo sua pena num  outro lugar ou, se esse outro lugar  não existe, em regime aberto. É  triste que a Justiça funcione de  maneira abstrata, fingindo ignorar as condições e os riscos objetivos do cárcere onde ela encerra os  condenados.
Mas será que é sempre desejável  que a administração da Justiça se  dobre a exigências práticas?
A matança de Benfica começou  quando um grupo de rebelados  do Comando Vermelho invadiu o  andar onde cumpriam sua pena  os membros do Terceiro Comando. Provavelmente, o horror teria  sido evitado se os condenados fossem divididos em cárceres diferentes, segundo a organização  criminosa à qual eles declaram  pertencer (Amigo dos Amigos,  Terceiro Comando, Comando  Vermelho etc.). É uma consideração prática: o Estado é responsável pela vida de quem está sob sua  custódia, portanto (já que nossos  recursos são limitados) adotemos  disposições que tornem menos  custoso garantir a segurança dos  presos. Faz sentido.
No entanto, sou sensível ao argumento de Astério Pereira dos  Santos, secretário da Administração Penitenciária do Rio: quem  manda na prisão deve ser o governo, não as organizações criminosas.
Aceitar o princípio da divisão  dos presos segundo suas facções é  uma maneira de considerá-los estrangeiros à nossa comunidade.  Como é isso?
Um exemplo: na hora de instituir reservas indígenas, ninguém  propõe um mesmo espaço para  tribos que tradicionalmente se  odeiam e se matam com gosto. Essa escolha se impõe porque pensamos que é nosso dever respeitar o  que sobrou das culturas indígenas, ou seja, porque o projeto de  nossa comunidade, no que concerne aos índios, não é sua integração como cidadãos quaisquer.  Por paixão etnográfica ou pela  culpa da conquista e do extermínio passados, os índios são, para  nós, um mundo separado, com  regras próprias, que queremos  preservar.
Ora, será que os criminosos, em  nosso país, são afastados do projeto de uma cidadania nacional a  ponto de que a Administração  Penitenciária deveria se tornar  uma espécie de Funai da marginalidade?
A comparação é aproximativa.  Uma verdadeira Funai da marginalidade operaria antes do encarceramento; erigiria muros entre  as favelas, delimitando espaços  autônomos, cada um dominado e  administrado por uma facção. A  divisão nos cárceres é mais parecida com a organização de um  zoológico, em que animais inimigos são guardados em jaulas distintas e afastadas (para seu próprio bem, naturalmente).
O pressuposto, em ambos os casos, é o mesmo: marginais e criminosos não fazem parte de nosso  mundo. É preciso, de uma maneira ou de outra, mantê-los em seu  hábitat natural, que pode ser diferente segundo as "espécies" (os  ursos brancos não convivem com  os ursos negros).
Quais são os argumentos que se  opõem à idéia de um mesmo cárcere para todos?
Há o pragmatismo já mencionado: a gestão da prisão será  mais fácil se os presos forem divididos em cárceres diferentes, segundo suas facções.
E há a consideração seguinte. A  exclusão social é um processo antigo, pelo qual nossa coletividade  é responsável. É irrisório que, logo  na hora da prisão, a comunidade  nacional se lembre de que seu  projeto deveria valer para todos e  imponha pelo cárcere comum  uma igualdade de direito que é  desmentida fora da prisão. Vocês  são bichos, tratamos vocês como  tais e pouco fazemos para que se  tornem gente, mas pretendemos  forçá-los a ser cidadãos como nós  na hora de enfiá-los numa jaula.  Irônico, não é?
Sobre o debate, paira uma reflexão cínica que é freqüente nestes  dias: será que o governo carioca  não inventou a fórmula certa?  Coloque-os todos juntos, feche os  olhos e deixe que se matem. Ninguém poderá dizer que houve  uma chacina de Estado, tipo Carandiru, e o resultado será o mesmo: a solução para a sobrecarga  da população carcerária e uma  economia de dinheiro público. Cá  entre nós, não dá para dizer que  foi uma grande perda para nossa  sociedade, não é?
Pois é, o que aconteceu em Benfica constitui ou não uma perda  para nossa sociedade?
Não se trata de discutir sobre a  promessa e o valor das vidas que  foram perdidas. Sei que eram perdidas há tempo; ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o  cárcere teria reabilitado os presos  que morreram e os teria devolvido à comunidade como cidadãos.
A perda que nos espreita é outra. Se tratarmos os marginais como índios, "respeitando" suas tribos, teremos que admitir que o  Brasil não é nem o projeto de  uma Belíndia, mas o teatro de  uma guerra entre duas nações  distintas, Bélgica e Índia.
Se desrespeitarmos as tribos na  esperança de que as prisões se tornem assim matadouros da escória social, nossa Justiça será apenas uma arma de extermínio no  conflito entre as ditas duas nações.
Para não perder o rumo de um projeto nacional, resta um caminho árduo. Consiste em encarcerar os presos não como membros de uma ou outra facção criminosa, mas como cidadãos. E em fazer (em gastar) o que é preciso para que, mesmo assim, seja garantida a segurança de todos.
 
 
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