quinta-feira, 5 de agosto de 2004

Campanhas para eleitores reprimidos e narcisistas

As campanhas eleitorais são sempre um pouco humilhantes.

O mais freqüente é que elas apostem na idéia de que nós, eleitores, seríamos burros e mal-informados. Mas podem também apostar na idéia de que seríamos reprimidos ou fundamentalmente narcisistas. Antes de ilustrar esses casos com exemplos, uma observação.
No dia em que um candidato passar a nos tratar como gente grande, acredito que ganhará votos, seja qual for seu plano.

Sonho que alguém apareça na tela e diga: "Salvo exceções que explicarei, meus concorrentes são pessoas tão qualificadas e bem-intencionadas quanto eu. Temos em comum a vontade de fazer o que nos parece melhor; é claro, dentro do possível, que sempre é menor que o necessário. Somos todos, é óbvio, animados por uma ambição descomunal; sem isso, não estaríamos aqui. Mas nosso gosto pelo poder é corrigido pela vontade de servir o interesse público.

Agora, temos diferenças, sobre as quais, você, eleitor, deve se pronunciar.

É raro que as diferenças sejam de fundo (ninguém, hoje, promove projetos revolucionários). Quase sempre, são questões de prioridade (maneiras divergentes de decidir o que é mais urgente) ou de meios (concepções conflitantes de como chegar a resultados parecidos).
Pode ser que a propaganda eleitoral de meus sonhos nos mate de tédio, à força de argumentações sensatas. Mas ela teria suas vantagens.

Primeiro caso. Recentemente, a campanha de José Serra (candidato que tenho em grande estima) achou bom publicar em seu site na internet uma charge contra Marta Suplicy, intitulada: "Dona Marta e seus dois maridos". A idéia era levantar nossa indignação porque Marta visitou umas obras em companhia de seu ex-marido, o senador Eduardo Suplicy, o qual apóia a campanha de sua ex-mulher.
O texto queria que exclamássemos: "Hã! Marta quer a presença de Eduardo porque ele é muito amado em São Paulo!" (pois é, deveria fazer o quê? Convidar Fernandinho Beira-Mar? Não é normal que um candidato peça o apoio de quem tem a confiança dos eleitores?). Subentendido: "Se ela queria o apoio de Eduardo Suplicy, por que não continuou casada com ele, eh?" (quer dizer o quê? Será que cada candidato deve casar ou, quem sabe, passar noites de paixão com todas as figuras públicas que compartilham suas idéias e apóiam sua campanha? É esta a idéia: nada de palanque sem casamento ou coisa parecida?).

O fundo da mensagem proposta é, obviamente, que a Marta se saiu excessivamente bem; como diz o ditado, ela conseguiu ficar com o leite e com o queijo (com seu novo casamento e, mesmo assim, com o apoio de Eduardo). Imagine: não só ela se separa e volta a casar, mas mantém com seu ex-marido uma relação suficientemente amistosa para que o ressentimento não impeça um engajamento comum.

Essa "constatação" deveria inspirar nosso desgosto e levar-nos a votar alhures. Por quê? Fácil: porque é muita coisa, ou melhor, são coisas que muitos querem e não conseguem fazer. Mas pouco importam os detalhes; o que vale nesse apelo um pouco escroto é que somos chamados a votar contra quem "goza" demais.

Em geral, a birra inspirada pelos supostos "prazeres" dos outros tem esta motivação: detestamos os que alcançam o que nós não nos permitimos porque temos raiva de nossas próprias limitações. Em suma, a charge contra Marta pedia que nosso voto fosse inspirado pela repressão que impomos (ou que é imposta) a nossos desejos. Era um apelo aos eleitores reprimidos.

Outro caso, agora americano. No dia posterior à convenção democrata, um provedor de internet dos EUA pediu a seus assinantes que se pronunciassem sobre algumas citações dos discursos da convenção do Partido Democrata. As frases partidárias receberam, sistematicamente, 50% de votos a favor e 50% contra. É claro, a sociedade americana é politicamente dividida ao meio; se os democratas gostavam, os republicanos não gostavam. Mas havia uma citação (do discurso de Barack Obama) que dizia: "Não existem uma América progressista e uma América conservadora, existem os Estados Unidos da América". Essa frase levou 87% de aprovação.

Patriotismo genérico dos eleitores? Parece-me mais provável que os eleitores estejam cansados de serem contrapostos coletivamente. Talvez se lembrem do seguinte: o que eles compartilham de mais relevante não são as camisetas e os chapéus dos partidos, mas o barco no qual estão todos e para o qual se trata de inventar a melhor rota possível.

Ser democrata, republicano, serrista, malufista ou "martista" é uma maneira de abdicar de boa parte de nossa subjetividade em favor de uma identidade de grupo. É uma maneira de votar com a paixão narcisista de ser sempre igual a si mesmo e a alguns outros que são iguais à gente.

Pois é, eu (e não devo ser o único) preferiria que as campanhas me encorajassem a votar com meus sonhos e meus desejos, não com a raiva de minhas repressões nem com o conforto duvidoso de minhas identificações de grupo.

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