quinta-feira, 11 de março de 2004
Os Estados Desunidos da mente
Há mais de quatro décadas, o La MaMa, no East Village de Manhattan, é o templo nova-iorquino do teatro experimental. No sábado passado, no La MaMa, estreou uma peça escrita e dirigida por Gerald Thomas: "Anchor Pectoris, The United States of the Mind" (Anchor Pectoris, os Estados Unidos da Mente).
A expressão conhecida é "angina pectoris": designa uma dor violenta e opressiva atrás do esterno, que nos aflige quando o oxigênio que chega ao coração é insuficiente. "Anchor pectoris", uma âncora no peito, é uma boa metáfora: evoca o sofrimento (uma espécie de facada no coração e um peso que, esmagando-nos, impede a respiração), mas também, paradoxalmente, promete uma cura. Afinal, estamos (ou somos) todos um pouco perdidos, navegando à deriva: lamentamos o porto seguro do qual saímos um dia e sonhamos com uma âncora que possa nos prender a um lugar ou a uma idéia certa e clara.
A peça nasceu como um "tour de force". Gerald Thomas, de passagem por Nova York em janeiro, visitou Ellen Stewart, a diretora artística do La MaMa. E Ellen, de repente, lhe propôs de montar e encenar um espetáculo em 30 dias.
O resultado é intenso, engraçado e tocante: o diretor nos apresenta a atual encruzilhada de sua vida num instantâneo que é também um inventário tragicômico da subjetividade contemporânea.
Como personagens de Beckett, erramos por um terreno baldio, em que circulam lembranças, pensamentos, esperanças e fragmentos obcecantes de discursos políticos vazios (os de George W. Bush, no caso). A musa que poderia nos inspirar (surpreendente Fabiana Guglielmetti) ora parece morta, ora dança zombando da gente. Stephen Nisbet e Tom Walker são os (ótimos) atores que encarnam o próprio Gerald Thomas. Há um momento em que Nisbet pergunta: será que alguém encontrará o tempo para juntar a sucata em que se partiu nossa subjetividade? E será que valeria a pena? O ator, nessa hora, se parece com um boneco que tivesse desmontado a si mesmo para compreender melhor seu funcionamento e, então, perplexo no meio de um quebra-cabeça de braços e pernas, não encontrasse mais o jeito de se reconstruir.
Surge a tentação de juntar-se ao coro das viúvas do "Meu Deus, que horror, tudo o que é sólido se desmancha no ar". É fácil ser mais uma voz chorando o fim dos ideais, do claro sentido da história, do respeito absoluto pelos mestres etc.
Cuidado: certo, o boneco pós-moderno não consegue rejuntar a sucata em que foi transformado por sua própria curiosidade, no entanto ele oferece algumas compensações. Ele é capaz, por exemplo, de escrever a peça de Gerald Thomas, ou seja, de se enxergar com lucidez e ironia atormentadas. Você acha que essa qualidade não levanta pirâmides nem redige sistemas filosóficos? Pode ser. Mas é a qualidade crucial para aqueles que querem (e ousam) mudar.
Um dos livros mais interessantes que li nos últimos anos é "The Protean Self, Human Resilience in an Age of Fragmentation" (O Sujeito Protéico, a Resistência Humana numa Época de Fragmentação), de Robert Jay Lifton, o grande psicanalista e psiquiatra americano que escreveu sobre a Guerra do Vietnã, as conseqüências psíquicas da ameaça nuclear etc. Protéico, no título, não tem nada a ver com as proteínas; é uma referência a Proteus, um deus da mitologia grega que tinha a faculdade de adotar infinitas formas diferentes (de leão, de serpente, de árvore e mesmo de água), sobretudo para evitar que fosse encurralado e obrigado a responder a perguntas sobre o passado e o futuro (sendo que sobre ambos ele sabia mais do que queria dizer). Proteus é o padroeiro das mudanças.
Entre os mil ensaios sobre a pós-modernidade e a subjetividade contemporânea, "The Protean Self", publicado em 1993, é um dos poucos que não se resumem num lamento da consistência perdida. Para Lifton, a novidade pós-moderna é que, claro, vivemos num mundo inquietante, fluido e múltiplo, mas a contrapartida positiva dessa inconsistência é a extraordinária e constante possibilidade de nos outorgar segundas, terceiras e quartas chances.
O sujeito contemporâneo é um imigrante, um órfão e um sobrevivente: perdeu seu lugar de origem, a proteção da autoridade paterna e a fé tanto na imortalidade de sua alma quanto no progresso infinito da espécie. Essas perdas nos definem e nos mantêm num luto constante, mas elas são as condições de nossa plasticidade, ou seja, de uma capacidade, inédita e gloriosa, de mudança. Quem não tem país, não tem pai e não conta com a eternidade atreve-se facilmente a transformar radicalmente sua vida.
Para Lifton, a subjetividade contemporânea é uma agonia que acarreta seu próprio remédio: a experiência do desamparo é a mola de nossas reinvenções.
É a época sonhada por qualquer terapeuta: nunca houve tanto sofrimento para curar, mas também nunca houve tanta possibilidade de curar, pois nunca houve tanta disponibilidade para mudar.
É também uma boa época para pensar, pois é permitido (ou mesmo encorajado) descuidar autoridades e doutrinas para aceitar as incoerências que são impostas pela realidade.
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