quinta-feira, 9 de novembro de 2000

De novo, divórcios e crianças

Quinze dias atrás, nesta coluna, comentei uma pesquisa que desmente algumas banalidades afirmadas apressadamente desde os anos 60.
Segundo essa pesquisa, não é verdade que o divórcio afete as crianças só de maneira passageira. E a felicidade ou o alívio dos pais que se separam não parece ser um grande consolo para os rebentos do divórcio.

A perspectiva de ver os pais mais felizes não faz necessariamente a felicidade das crianças. Claro, elas sofrem também quando o casamento dos pais se eterniza numa tragicomédia de brigas ou no silêncio do ódio e da indiferença. No entanto a coluna queria salientar a leviandade de quem pinta o divórcio em cor-de-rosa.

Recebi uma enxurrada de e-mails: comentários e depoimentos, todos corajosos e complexos. Concordando ou não comigo, os leitores entenderam que eu propunha que os pais freassem seus impulsos divorcistas e pensassem mais nas crianças. Reconheço-me nessa sugestão, mas a questão é, obviamente, complicada. Por isso volto ao assunto.

A família sobreviveu às maiores mudanças de nossa sociedade e cultura. Parece ser a única instituição imortal -constante peça central da reprodução social. De fato, ela sobreviveu porque mudou, adaptou-se aos tempos.

Deixou de ser uma pequena tribo e se tornou nuclear, composta quase exclusivamente pelos pais e suas crianças. Também ela não se organiza mais para administrar bens em conjunto e assegurar a continuidade da dinastia.

Hoje ela se funda nos sentimentos de seus membros: é nuclear e apaixonada. Aliás, é nuclear justamente por ser fundada em um princípio -a paixão dos cônjuges.

Às vezes, o núcleo deve incluir os avós ou um parente que sobrou, mas é com pesar e abrindo uma exceção. Isso, não por ingratidão ou porque a convivência com os patriarcas ou os primos seja necessariamente chata, mas porque a casa é um ninho de amor e, como tal, requer uma intimidade protegida.

Aceitar conviver com outros é ameaçador: sugere que a festa amorosa acabou, e a obrigação da consanguinidade passou a prevalecer sobre as necessidades do sentimento. Na família moderna, o amor também rege o laço entre os pais e as crianças.

Certo, achamos que os miúdos nos devem respeito, porque tal é sua obrigação. Mas, no fundo, queremos que eles obedeçam por amor. Assim como nós, de fato, os provemos de cuidados não por obrigação de pais (que nos pareceria um dever bem abstrato), mas porque os amamos.

A família assim construída corresponde exatamente ao que somos: indivíduos apaixonados por nossa liberdade e convencidos de que a autenticidade dos sentimentos é nosso melhor guia. O resultado é uma instituição bonita, intensa e condicional: se o amor acaba, acaba a festa.
Podemos lamentar essa volatilidade, mas, de fato, ninguém aguentaria mais casamentos que não fossem justificados pelos sentimentos e pela esperança de uma união feliz. Assim como dificilmente os pais aguentariam crianças que obedecessem só por obrigação tradicional.

Aceitemos, então, os casamentos eternos enquanto duram. Resposta à pergunta "como reconhecer o fracasso?": no mínimo, seria bom evitar que ele fosse um efeito da intransigência, que surge quando a aspiração a ser feliz se transforma numa exigência imperiosa e impossível. Tipo: "Shangri-Lá!, não aceito nada menos que isso e quero que seja agora ou então nada".
Como observou com toda razão uma leitora, Maria Renata Pinto Coelho, "é o casamento -e não o divórcio- que nos é vendido como um conto de fadas".

A expectativa excessiva produz intolerância. Com isso, negociar e procurar os compromissos sempre necessários numa vida de casal (e, em geral, numa família) parecem constituir uma traição de nossos sonhos de união perfeita. Nós nos divorciamos por esperar demais do casamento.

Ora, as modalidades da convivência ou da separação dos pais transmitem às crianças uma espécie de lição de vida implícita. Por exemplo, um casamento mantido no sofrimento e na humilhação pode transmitir às crianças uma lição (péssima) de resignação e covardia. Outro, também mantido ao custo de mil compromissos, pode transmitir uma humildade saudável, ensinando que é possível amar, mesmo quando o parceiro não corresponde plenamente às nossas fantasias.

Do mesmo jeito, um divórcio pode ser uma lição de honestidade, significando que os pais não quiseram arcar com uma mentira. Outro divórcio pode simplesmente sugerir às crianças que a felicidade deve ser perseguida a qualquer custo.

Esse é o caso pior. Pois como convencer um adolescente de que ele deve ir para a escola e desistir do enésimo "baseado", se, no seu entender, seus pais se separaram logo para não desistir de nenhum hipotético prazer?

A moral de buscar prazer e felicidade a qualquer custo é, notou em seu e-mail outra leitora, Rosangela Padovan, um "sinal dos tempos", ou seja, mais uma causa que um efeito dos divórcios. Concordo. Mas essa não é uma razão para que os pais validem essa máxima duvidosa nem na hora de se separarem.

quinta-feira, 2 de novembro de 2000

Efeitos colaterais

Atendi vários sujeitos que procuravam (legitimamente) uma análise ou uma terapia para sofrer menos e viver melhor, mas que se preocupavam com as mudanças que a terapia poderia acarretar. Temiam que a experiência os transformasse ao ponto de empobrecer suas vidas. Tratava-se, quase sempre, de artistas, convencidos de que havia uma relação entre seus sofrimentos neuróticos e sua capacidade de criar e se expressar.

Imaginemos um exemplo análogo aos casos que conheci. Um sujeito viveu uma infância particularmente nefasta: sei lá, o Camboja na época de Pol Pot, deportações, campos, mortes, lutos e fome. Hoje, nosso sujeito -refugiado em terras hospitaleiras- faz desses horrores a fonte privilegiada de sua inspiração artística. Críticos e público reconhecem que sua produção expressa, por exemplo, uma angústia que alcança proporções universais. Nela, todo mundo reconhece um pouco de seu próprio desamparo.

Mas nosso artista acorda a cada noite urrando, perseguido por pesadelos de caveiras e meninos armados de metralhadora. Ele vive numa ansiedade que impede qualquer procura amorosa. A solidão multiplica sua dor.

Imagine agora que esse sujeito peça a ajuda de um psicanalista ou de um psicoterapeuta. Ele quer dormir melhor e aprender a sorrir. No entanto ele suspeita que seu sofrimento seja a alma de sua arte -ou seja, daquilo que ele tem de melhor para oferecer ao mundo. Sua preocupação não é apenas um cálculo oportunista como: se me curo, perco a habilidade que paga minhas contas. Há mais: separar-se desse sofrimento lhe parece uma traição, pela qual ele desistiria de ser ele mesmo.

Essa preocupação não deve ser minimizada. Em princípio, uma psicoterapia ou uma análise não produzem (não conseguem produzir) mudanças que não sejam desejadas pelo sujeito. Aliás, geralmente isso é considerado como um limite da eficácia das psicoterapias. Reclama-se de que elas não conseguem extirpar nossas neuroses como se extirpam sisos cariados. No caso que estou levantando, ocorre o contrário: os sujeitos receiam que suas neuroses sejam extirpadas como dentes.

Essas reflexões nascem lendo um artigo notável de Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria da Johns Hopkins University. O texto faz parte da coletânea "States of Mind" (editada por R. Conlan), que é, de longe, o conjunto de textos mais honestos e sérios que já li sobre a relação entre cérebro e mente (portanto entre psicoterapia, psiquiatria biológica, neurologia etc.).

Jamison constata que existe uma correlação estatística entre a criatividade artística e a psicose maníaco-depressiva. Contrariamente ao que sugeria a ideologia dos anos 60 e 70, a doença criativa não é a esquizofrenia, mas a mania, em sua alternância com a depressão. Ora, a psicose maníaco-depressiva tem origem genética. Mais cedo, mais tarde, o gene que torna alguns sujeitos vulneráveis a essa doença será isolado. Portanto disporemos de uma cura preventiva.
Redfield Jamison pergunta: "Se há uma relação entre desordens do humor e gênio artístico, que riscos corremos tratando a desordem ou mesmo, pelos testes e pela terapia genética, eliminando-a completamente?" O risco seria produzir uma humanidade futura sem os equivalentes de Schumann, Tennyson, Hemingway, Lowell, Edgar Poe etc.

Segundo Jamison, o problema é que, com o sofrimento maníaco-depressivo, seria suprimida uma parte relevante (embora dolorosa) da experiência humana. "Esperamos -ela escreve- que (os artistas) contemplem aqueles aspectos da vida que nós preferimos ignorar; que eles olhem para a brevidade da existência, que vejam a corrupção do universo e saibam como a morte nos espreita e que, com isso, ainda consigam afirmar a força da vida perante a morte. É bem possível que sofrer de psicose maníaco-depressiva permita a algumas pessoas criativas produzir essas reconciliações".

Jamison (que sofre ela mesma da doença) não minimiza o sofrimento maníaco-depressivo. Tampouco recusa os tratamentos possíveis. Mas lembra que a doença psíquica é também uma vivência que estende os limites da experiência humana. Suprimir geneticamente uma dimensão dessa experiência é tanto mais problemático quando, como nesse caso, ela permite a existência de obras que valem para todos.

Fácil egoísmo de leitor ou espectador? Acho que não. Muitos criadores não gostariam de se ver livres de sua mania e de sua depressão se, em troca, perdessem o que dá sentido a suas vidas. O poeta Robert Lowell dizia de suas crises de mania que "a glória, a violência e a banalidade dessa experiência" é algo que vicia. Certamente ele não aceitaria uma cura cujos passos ele não pudesse controlar cuidadosamente.

P.S.: A coluna da semana passada, "Crianças do Divórcio", suscitou um número inusitado de e-mails. Agradeço aos leitores. É impossível responder a todos. Na próxima quinta, retomarei o tema, debatendo algumas das questões levantadas pelos comentários recebidos.

quinta-feira, 26 de outubro de 2000

As crianças do divórcio

De 31 de outubro a 4 de novembro, acontecerá em Curitiba o Congresso Internacional de Ética e Cidadania. Apresentarei um relatório sobre as mudanças na família contemporânea.

É um tema ideal para um encontro no qual dialogarão juristas e psicanalistas. Pois, no caso da família, é possível verificar como as mudanças jurídicas pesam na transformação de nossa subjetividade.

Começarei por 1969, quando, na Califórnia, aceitou-se que maridos e mulheres se divorciassem sem pretextar adultérios ou crueldades físicas e mentais. Os legisladores ratificaram, assim, a opinião da maioria. Claro, há casamentos em que os cônjuges traem a confiança recíproca ou passam o tempo se jogando louça na cabeça. Mas, pensavam os californianos, na maioria dos casos, isso não é necessário para querer se separar. Chega de ter que inventar amantes e manchas roxas para convencer o juiz.

A lei autorizou, então, que dois adultos casados pudessem separar-se, desde que um deles, sem dramas e culpas, simplesmente não estivesse mais a fim. Você sabe como é, o tempo passa, o amor se perde, as crianças gritam, os cabelos do parceiro embranquecem e a pessoa se pergunta: não será a hora de viver dias mais agradáveis?

A lei californiana conquistou rapidamente o resto dos Estados Unidos e do mundo. Ganhou até nos lugares onde se divorciar continuou sendo complicado. Pois, de qualquer forma, a lei californiana promoveu um novo padrão de racionalidade em matéria de casamento. Tornou-se banal considerar que é legítimo (ou seja, justo, mesmo se não for legal) separar-se, quebrar uma família, quando um dos dois ou os dois acham que o laço perdeu a graça.

Faz sentido. Tentar ser feliz é um direito moderno. Por que deixaríamos que o casamento infernizasse nossa vida? Com a facilidade dos divórcios, surgiu a pergunta: como as crianças lidarão com essa experiência?

A psicologia produziu uma série de afirmações apressadas. Sem verificar, assegurou que seria muito melhor para os filhos lidar com a separação dos pais que assistir às suas brigas cotidianas e à sua constante infelicidade. Geralmente, acrescentou que, por mais que seja doloroso, o divórcio, para a criança, seria uma crise passageira.

Essas idéias eram palavras para justificar uma prática social que corresponde aos desejos dos adultos. J.Wallerstein, J.Lewis e S.Blakeslee acabam de publicar "The Unexpected Legacy of Divorce" (A herança inesperada do divórcio, Hyperion, NY), em que pesquisam filhos e filhas de divorciados ao longo de 25 anos. Demonstram que, para as crianças, o divórcio não é uma crise passageira, mas acarreta consequências que incidem sobre a vida adulta. Salvo casos de violência explícita, as crianças são mais felizes com uma família que se mantenha unida, mesmo que seja de briga em briga.

No livro, o divórcio é culpado por todo tipo de sequela nas crianças, desde depressões severas até dificuldades tardias na vida sentimental e amorosa. Os fatos são convincentes, mas faz falta uma explicação mais satisfatória que a trivialidade segundo a qual o divórcio seria traumático por produzir abandono ou, no mínimo, negligência por parte dos pais -muito preocupados em refazer suas vidas.

Ora, numa recente emissão de rádio consagrada ao livro, um sujeito telefonou para comentar: "Pois é, concordo com tudo, mas será que os pais não têm direito de ser um pouco felizes?".
A pergunta manifesta qual foi a mudança subjetiva ratificada pela lei californiana e desde então adotada pela consciência moderna. Ela diz que o projeto de ser feliz é mais importante do que qualquer obrigação -inclusive a de criar as crianças no quadro de uma família. Os pais que se divorciam transmitem esta opção a seus rebentos, que se tornam, portanto, os arautos da nova disposição subjetiva, assim resumida: o que mais importa é se dar bem.

A mudança em questão explica muito do que nos estranha na conduta das crianças do divórcio e, por extensão, dos jovens. Pois, quer seus pais sejam divorciados quer não, todos os jovens pertencem hoje à (primeira) geração do divórcio. São filhos da época em que a única obrigação institucional que sobreviveu na modernidade -a da família- cedeu, enfim, diante do ditado: procure sua felicidade individual!

Não é o caso de moralizar sobre essa mudança institucional e subjetiva. Seria apenas um exercício de nostalgia estéril e um pouco hipócrita. As autoras do livro sugerem uma série de medidas terapêuticas e preventivas para ajudar as crianças do divórcio. São idéias para limitar os danos, pois é duvidoso que possamos resistir a uma mudança já incorporada por nossa cultura.

Muitas vezes nos queixamos, porque nossos rebentos se engajariam pouco em causas nobres, se drogariam mais, tentariam prosperar sem suar nenhuma camisa e outros lugares-comuns da besteira parental. De fato, os ditos rebentos respondem ao que lhes foi transmitido quando decidimos que nosso anseio de felicidade, conforto e prazer não deve recuar- nem mesmo pelo bem deles.

quinta-feira, 19 de outubro de 2000

Saudosa maloca

Na próxima semana, vou a Porto Alegre para participar do congresso "Brasil: Descoberta/Invenção". De novo, os 500 anos. Comemorei a fatídica semana de abril em Porto Seguro, na Conferência dos 500 Anos dos Povos Indígenas. As questões levantadas naqueles dias seguem comigo.

Estamos vivendo a Década Internacional dos Povos Indígenas. Ela terminará com a Declaração dos Direitos Indígenas, que será votada na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 2002.
Um primeiro esboço da declaração é conhecido desde 1994. O eixo é a idéia de que a autonomia política e econômica de um povo é essencial para que ele possa preservar sua cultura.

Faz sentido. Afinal, os povos indígenas mantidos sob tutela política e à força de subsídios sociais tornam-se quase sempre miseráveis caricaturas de si mesmos. Seus usos e costumes, sua cultura e seu artesanato se reduzem a uma pacotilha de suvenires para turistas ecológicos.
Aproveitando minha estada em Sydney no mês de setembro, mergulhei um pouco no debate local sobre o presente e o futuro dos aborígines. Li várias defesas do separatismo, propondo que os aborígines constituam uma nação e um Estado à parte. Todos os autores afirmam que uma comunidade de cultura implica a autonomia, a soberania e a autodeterminação de uma nação.

Alguns contam com a Declaração de 2002 para que a reivindicação indígena possa ser levada a uma corte internacional, onde seria apoiada pelas Nações Unidas (que sancionarão a declaração). Entende-se que essa perspectiva dê alguns calafrios no governo australiano. Os governos americano e brasileiro também não achariam muito engraçado.

Mas, por mais que essas propostas pareçam incômodas aos governos e às maiorias culturais ocidentais, elas se fundam numa premissa com a qual todos parecem hoje concordar. Até quem se opõe ao separatismo reconhece que uma cultura deve ser preservada por algum tipo de autonomia e soberania. Ora, esse acordo automático me inspira um certo mal-estar.

Pois aparece, assim, um paradoxo: as idéias que alimentam o projeto de separatismo ou autonomia indígenas são obviamente opostas à colonização cultural dos povos indígenas. Mas essas idéias encontram um acordo quase unânime justamente por serem a fina flor da própria cultura ocidental.

Explico: as idéias de autodeterminação e soberania do povo são invenções da filosofia das luzes, aqui adaptadas à idéia de que a uma cultura deva corresponder uma nação -que nasce com o romantismo alemão. Em suma, os princípios pelos quais nos parece bom que os indígenas se separem e se autogovernem não foram transmitidos pelos anciães das tribos. Eles são importados.

Isso não muda minha simpatia para com os movimentos aborígine ou indígena. Mas corta o embalo: é chato descobrir que nossas melhores intenções podem ser culturalmente tão colonizadoras quanto uma integração forçada.

Nesse campo, o cúmulo é representado por nosso desejo de preservar as culturas indígenas. O cuidado com a preservação do passado, de seus monumentos e vestígios é uma paixão muito recente -nasceu na segunda metade do século 19. Ora, nosso desejo de preservar as culturas indígenas nasce porque, por considerá-las (erroneamente) como primitivas, achamos que elas sejam um resto de nosso passado. Queremos guardá-las intatas não por generosidade, mas como um álbum de daguerreótipos de família.

É bem possível que, com o pretexto de preservar, queiramos de fato forçar a permanência de nossos "protegidos" numa espécie de presente imutável, feito para satisfazer apenas nosso anseio nostálgico.

Alguém poderia responder: "Tanto faz! Preservando, damos a índios e aborígines uma chance para que vivam segundo sua cultura". Mas os fatos dizem outra coisa: as políticas de preservação das quais parecemos capazes podem ser tão genocidas quanto uma conquista. É o que percebemos quando visitamos reservas indígenas pelo mundo afora.

Quanto mais somos modernos, ou seja, quanto mais nos definimos pelas potencialidades de nosso futuro, tanto mais sofremos de nostalgia. Adoramos a nostalgia, porque ela nos confirma na ilusão de que temos uma identidade, embora perdida. Graças à nostalgia, acreditamos ser alguma coisa a mais do que nossa agenda de amanhã. Por isso, para nos "reencontrar", frequentamos pousadas sem luz elétrica, tomamos chás "orgânicos" e, no mesmo estilo, protegemos reservas indígenas.

Não é um acidente se essa preservação regularmente avilta o que queremos preservar. Precisamos da imagem de um passado feliz. Mas precisamos também que, vista de perto, essa imagem seja um pouco repugnante. Sem isso, não poderíamos continuar correndo. Ou seja, os índios são sábios, vivem de acordo com a natureza etc. Mas damos um jeito para que a maloca da reserva, de fato, feda a álcool e a abandono.

Azar dos índios: além de ter sua terra conquistada, vieram ocupar um lugar desconfortável da psique moderna -onde são idealizados, sob a condição de se perder na miséria.

segunda-feira, 2 de outubro de 2000

Encerramento

De fato, as medalhas de ouro são de prata coberta de folhas de ouro -seis gramas por medalha.

O Brasil estava antevendo cinco medalhas de ouro. Assim, perdemos 30 gramas de metal precioso. Não vamos fazer drama. Há de se convir que não é muito -sobretudo comparando com o ouro que, nos séculos passados, deixou o Brasil a destino da Europa.

Brincadeira à parte, não sei mesmo se é para reagir ao pouco sucesso nesta Olimpíada. Há a tentação de esquecer e pensar em outras coisas, que inelutavelmente parecerão mais sérias. Nesse caso, adotaremos a seguinte versão: os brasileiros melhoraram suas colocações em uma série de especialidades (isso é verdade). Apenas faltou um pouco de sorte.

Mas talvez essa seja uma boa ocasião para inventar uma política de cuidados com o esporte de competição, para que as alegrias oferecidas pelas vitórias futuras ajudem a criar e valorizar a imagem de uma comunidade de destino. Impor respeito geralmente ajuda a se respeitar a si mesmo.

Em Montreal-1976, a Austrália teve uma de suas piores atuações: nenhum ouro, uma prata e quatro bronzes. Em 24 anos -três gerações de atletas- subiu ao quarto lugar na classificação das nações (atrás de EUA, Rússia e China).

Como isso aconteceu? Imediatamente depois de Montreal, foi fundado o Instituto Australiano do Esporte (AIS), com o intento de reunir em Canberra todos os melhores atletas australianos, oferecendo-lhes a possibilidade de viver e treinar juntos e de viajar seguidamente para fora do país, confrontando-se com adversários internacionais. O Instituto se associou às diferentes federações, criando um programa de identificação de talentos, pelo qual são reconhecidos precocemente os fenótipos de possíveis atletas. É só uma indicação.

Hora de concluir. A cerimônia de encerramento foi melhor do que a de abertura -cheia de humor e ironia. Mas senti um mal-estar quando moças vestidas de Grécia antiga, caminhando hieraticamente em câmera lenta para sugerir valores sagrados, vieram passar a bandeira olímpica para o prefeito de Atenas. A música de fundo era tão óbvia quanto a tentativa de criar alguma significação elevada para o evento.

Tudo bem, o ideal olímpico é bonito etc. Mas a semântica de elevador sempre cheira a manipulação. Se as Coréias estiverem unidas em 2004, quando a juventude do mundo competirá em Atenas, não será por ter desfilado juntas em Sydney. O desfile terá sido a ocasião de expressar um anseio. Só isso. E já é bastante.

Os bons sentimentos, quando encenados ostensivamente, ficam melequentos e dão vontade de voltar logo para o mundo real.

domingo, 1 de outubro de 2000

Balanço olímpico

O primeiro-ministro australiano, John Howard, fez três observações que me chamaram a atenção.

A primeira tenta recuperar politicamente um sucesso esportivo. Howard não é muito favorável à autonomia dos aborígines e à idéia de compensações pelos abusos passados. Ele interpretou a vitória e a popularidade de Cathy Freeman como a prova de que a comunidade australiana estaria menos dividida do que dizem.

Para entender o alcance dessa declaração, imagine que, depois da bela conquista da prata no revezamento 4 x 100 m, FHC venha e declare que o Brasil está unido e solidário, pois quatro homens correram juntos até as estrelas.

Escutando esta primeira observação de Howard, quase fico contente que a campanha do Brasil seja um meio fracasso.

A segunda declaração do premiê é mais interessante. Segundo Howard, os australianos, a começar pela crianças, não praticam esporte quanto se esperaria. Isso parece estranho, pois é cômodo considerar os resultados olímpicos como uma consequência da difusão democrática do esporte. Ou seja, se todos pudessem nadar, jogar tênis, teríamos mais campeões. Na verdade, não é bem assim. Os países socialistas no passado simultaneamente democratizaram a prática do esporte e promoveram o esporte de competição. Mas as duas coisas não vão necessariamente juntas.

Uma piscina em cada escola não é suficiente para produzir dez Gustavo Borges e, entre eles, por fatalidade estatística, um Ian Thorpe. Para produzir atletas ainda é preciso um incentivo econômico, técnico e popular.

Aqui a coisa complica. Todos queremos uma piscina em cada escola. Mas não concordaríamos com a idéia de que seja também uma prioridade incentivar o esporte de competição para ganhar mais medalhas. Há coisas mais urgentes, você dirá com razão.

Mas considere o seguinte. Por que um grupo de fiéis se cotiza para construir uma igreja, quando cada um deles mal consegue pagar as contas do mês? É que, sem igreja, eles não constituiriam uma comunidade e cada um deles seria ainda mais derrelito no mundo. Por que organizar exposições e subvencionar as artes quando há famílias passando fome? Por que erigir monumentos quando ainda faltam casas? É que, sem tudo isso, os sem-teto ficariam também sem história, sem cultura e sem Brasil. A mesma lógica vale provavelmente para o esporte de competição.

Justamente, Howard -foi sua terceira observação- disse que os Jogos estavam sendo psicologicamente ótimos para a Austrália. Pois é, não gostaríamos de poder dizer o mesmo para o Brasil?

quinta-feira, 28 de setembro de 2000

Corre, Claudinei, Corre

Cathy Freeman vai tentar os 200 m rasos, que não são sua especialidade. Competirá sem pressão, tipo: se conseguir, melhor. A imprensa local crê num duelo entre Cathy e Marion Jones, a favorita. O marido da americana (CJ Hunter, campeão de arremesso de peso) testou positivo para anabolizantes. Isto não tem nada a ver com ela, mas é suficiente para pintá-la em cores sombrias, enquanto Cathy é toda sorrisos. O "Sydney Morning Herald" colocou-as em primeira página, com um subtítulo equivocado: "Same race, different circumstances". Eles queriam dizer "Mesma corrida, circunstâncias diferentes". Mas "race" significa também raça. Como Marion Jones é negra americana, lia-se: Cathy e Marion, mesma raça. O clima de reconciliação que preside a festa olímpica tem seus atos falhos.

O paralelo, na verdade, é furado. Na Austrália não houve importação de escravos africanos. O país, além de estar longe das rotas atlânticas, nasceu tarde demais para isso (o tráfico estava em seus últimos suspiros). Os aborígenes eram os habitantes imemoriais desta terra. Seu destino não é paralelo com o dos negros, mas com o dos índios sul e norte-americanos. Os jovens que carregam as medalhas e as bandeiras nas premiações estão vestidos como australianos do cerrado (o "bush"): akubra (é o chapéu de abas australiano), impermeável de tecido encerado e botas.

Os onipresentes voluntários estão também de akubra, mas com uma camisa cujos motivos evocam a arte aborígene. Os indícios apontam para o lugar onde a reconciliação pode acontecer: a terra do "outback", o retroterra quase deserto e selvagem. É o lugar onde é possível, sem idealizações baratas, reconhecer que os aborígenes sabem viver melhor do que os brancos. É o lugar onde a cultura aborígene impõe respeito. É também o lugar de um patrimônio compartilhado, de onde talvez australianos e aborígenes consigam hoje enxergar uma nação comum.

Ocorre que a Amazônia tem exatamente essa função para o Brasil. No entanto a reconciliação não está na ordem do dia. Basta conferir o lugar que coube aos índios nas festas dos 500 anos. Nada de estranho nisso tudo: o país tem uma tradição de exclusão antiga e estabelecida. Ele funciona a exclusão, assim como um motor, a gasolina. Falando nisso, Claudinei Quirino está na semifinal dos 200 m. Sua glória e dificuldade é que ele não é empurrado, como Cathy, pela vontade de inclusão de uma nação inteira.

Ao contrário, carrega nas costas o peso de uma persistente vontade de excluir. Por isso nesta madrugada terei ido lá gritar: "Corre, Claudinei, corre".

A seleção não jogou mal; ela é ruim



Então, se entendi bem, os jogadores da seleção de futebol foram mal escolhidos. Ou, se foram escolhidos direito, renderam muito menos do que era normal esperar. Também foram e seguem sendo paparicados, com hotéis de luxo e salários muito altos. Ou, então, o astral negativo do técnico influenciou todo mundo.

A saída precoce foi uma vergonha, um vexame, uma humilhação. Essas palavras apareceram ontem na imprensa. São expressões estranhas em Sydney, onde a imprensa e a torcida reconhecem e elogiam seus atletas derrotados.

Não somos menos generosos do que os australianos. É que parecemos não ter a menor dúvida de que, no futebol, o Brasil é o melhor. Portanto, perdendo, os jogadores nos humilham, desmentem nossa essência. Além disso, como só podem ser os melhores de todos, se perdem, é por safadeza.

Luxemburgo declarou: "Tivemos todas as chances do mundo para chegar à semifinal, mas jogamos mal". É uma frase engraçada, pois cada time tinha (e alguns ainda têm) todas as chances de chegar até a medalha de ouro.

Ele quis dizer que o Brasil era time forte para chegar à semifinal sem problemas, mas jogou mal.

Jogar mal é sempre apresentado como um acidente. Somos os melhores, mas às vezes (muitas vezes, ultimamente) jogamos mal.

Vi tenistas, depois de errar um golpe, olhar para a raquete procurando algum desajuste das cordas que explicasse o erro. Pois bem, a seleção joga mal, e todos -jogadores, técnicos, torcedores- olhamos para as chuteiras. Será que quebrou uma trava?

Pergunto: quantas vezes a seleção vai ter que jogar mal para que a gente comece a reconhecer que ela é ruim mesmo? E, mais difícil ainda, para que aceitemos a idéia de que a ruindade talvez não seja o resultado de escolhas erradas, mas o reflexo de um futebol que não é mais o rei dos gramados?

Decidimos que o futebol é um gene brasileiro. Até que essa crença mude, vai ser difícil melhorar.

Às vezes, famílias brasileiras com filhos adolescentes emigram para os EUA. Os filhos, que jogaram dez várzeas na vida, descem do avião com a idéia de que vão arrebentar na bola. Chegam em sua nova escola anunciando que são brasileiros como se fosse a mesma coisa do que campeão mundial júnior. Se não forem selecionados na hora para o time, o técnico é burro e americano não entende nada de futebol. Em geral, esses jovens passam para outro esporte, o que não constitui uma perda para o futebol nacional ou americano. Moral da história: para melhorar, é bom reconhecer que a gente é ruim.

Que tal comprar alguns jogadores africanos, para ver se anima o futebol nacional?

quarta-feira, 27 de setembro de 2000

Corre, Cathy, corre

Às oito da noite de segunda a Austrália parou. O estádio Olímpico estava lotado. As áreas de alimentação, onde sempre circulam pessoas à procura de uma cerveja ou de um peixe frito, ficaram desertas. Fora do estádio, no país inteiro, 10 milhões de australianos pararam na frente da TV para ver Cathy Freeman correr.

Em Sydney nenhuma prova era tão esperada quanto os 400 m rasos feminino. De nenhum australiano queria-se tanto que ganhasse, a ponto de que Cathy acendesse a chama olímpica, embora sua prata em Atlanta não justificasse a honra. A decisão foi contestada por alguns, certo, mas por medo que a pressão comprometesse a performance de Cathy.

Única em roupa de látex com capuz, Cathy partiu inconfundível, como uma extraterrestre ou a encarnação do espírito da terra, e correu com o estádio gritando de pé. Eu estava ao lado de crianças que não pararam um instante, como se os berros fornecessem oxigênio para ela: "Run, Cathy, run" ("Corre, Cathy, corre").

Ela correu e ganhou. Deu outra volta carregando, na mesma bandeira, cores australianas e aborígines. Impossível resistir à alegria do público que celebrava a vitória do símbolo da reconciliação.

O sonho de reconciliar a nação com seus indígenas, após 200 anos de horrores e abusos, estava presente desde a cerimônia de abertura, quando a menina loira pegou a mão do velho aborígine. Por outro lado, recentemente, o primeiro-ministro se negou a fazer um pedido de desculpas aos aborígenes pelos abusos. Problemática é a questão de eventuais compensações: por que a Austrália de hoje pagaria por pecados que não são dela? Debate-se sobre números: quantos foram massacrados? Discute-se sobre os riscos de dividir a nação e quebrar a unidade do território nacional, caso seja reconhecido um direito aborígene à autodeterminação.

A avó de Freeman foi uma criança das gerações roubadas, que foram arrancadas de seus pais para serem criadas como brancas e -pensavam os pretensamente ilustrados- salvas da barbárie. Freeman criticou repetidamente o governo federal.

Com esse passado e com seu nome que fala de liberdade, ela correu reto no meio do emaranhado mantendo as duas bandeiras juntas e, sobretudo, sentem os australianos, provando que a integração é possível -pois uma aborígene é a querida da nação.

Penso nos índios brasileiros e americanos, nas armadilhas do pós-colonialismo mais bem intencionado: é difícil atravessar esse emaranhado. A corrida de Cathy foi a felicidade de um momento de ilusão. Mas foi também a ocasião festiva de expressar uma vontade coletiva de justiça.

terça-feira, 26 de setembro de 2000

O país do vôlei

No vôlei está dando quase tudo certo. Shelda e Adriana ganharam a prata. A final com as australianas foi parelha: dois sets, mas 12/11 e 12/10. Sandra e Adriana Samuel levaram o bronze. O vôlei de quadra masculino ganhou de Cuba por 3 a 0.

A dupla masculina de vôlei de praia joga a final. A equipe feminina está qualificada no primeiro lugar no grupo, como a masculina. O Brasil pode ter medalhas em cada especialidade do vôlei.
Estaríamos passando de país do futebol para do vôlei? De fato, seria agradável ser o país de um esporte no qual a gente ganha. Entre Atlanta e Barcelona, já há tradição suficiente para a mudança.

O estereótipo de paraíso tropical de sol e praias comporia a vinheta do país do vôlei na areia. Pelos cartões postais já parece que passamos na praia o tempo todo, seria só praticar um pouquinho: vai sair natural, como as peladas.

Além disso, o vôlei é um bom esporte para o Brasil, fácil de ser praticado nas escolas. Prosperou com o carinho dos torcedores e a dedicação de duas gerações de jogadores e jogadoras. E também graças à tranquilidade de poder jogar sem que, a cada derrota eventual, o Corcovado ameaçasse ruir. Por isso mesmo espero que a passagem do país do futebol à terra do vôlei não aconteça tão cedo.

Domingo de manhã, na praia de Coogee, um grupo de australianos organizava uma pelada. Estava sentado na mureta, vestindo uma camiseta da torcida brasileira. Vêm perguntar: "Brazilian?" e querem que eu jogue. Acham que recuso só por me sentir superior. Mal podem imaginar que toquei em minha primeira bola de futebol aos 16 anos, num colégio do arcebispado de Milão.

Não adianta: apesar da eliminação da seleção, brasileiro para eles segue significando bom de bola. Ainda ontem, um simpático motorista de táxi (e mal informado) não acreditava de jeito nenhum que a seleção brasileira estava voltando para casa.

Escrevi ontem que, se pararmos de pensar que somos por natureza o país do futebol, talvez seja possível treinar e jogar melhor.

Agora, todos conhecem a história do rapaz um pouco desmiolado que um belo dia parou de acreditar que ele era um grão de milho. Foi liberado e ia para casa. De repente volta ao hospital: "Eu sei que não sou um grão de milho, mas vocês informaram às galinhas?". Acontece também com o futebol: os outros acreditam em nosso delírio de grandeza.

Será que daqui a pouco, em qualquer praia do mundo, se formos identificados como brasileiros e convidados para um jogo de vôlei, vamos ter que lidar com a expectativa que um mestre enfim entrou em campo -tipo: vamos ver do que ele é capaz?

sábado, 23 de setembro de 2000

A "Tosca" e os toscos

Os Jogos são a ocasião de um Festival Olímpico das Artes. Há de tudo: cerimônia aborígene, balé, ópera, ciclo de filmes, exposições de arte, teatro.
O programa é uma declaração que diria: "Sydney está orgulhosa de ser a sede da Olimpíada, mas a cidade não é só isso. A paixão pelo esporte é apenas uma faceta. Gostamos de outras coisas também, com toda a complexidade pós-moderna: mesmo respeito para a alta cultura, o folclore, o pop etc.".

Como o edifício da Ópera é (merecidamente) o símbolo da cidade, escolhemos assistir a uma representação da "Tosca" (que foi ótima). No máximo 30% do público era olímpico: delegações ou turistas em Sydney para os Jogos. Os demais eram habitués: pessoas de classe média (regra na Austrália) apreciando a arte lírica ou se convencendo de seu interesse pela ópera. À primeira vista, parecia o tipo de público que se encontra na Sala São Paulo ou no Cultura Artística para um bom concerto.

Ora, antes que o espetáculo começasse e nos dois intervalos entre os atos, as pessoas se reuniam no foyer na frente de duas televisões -cuja presença neste lugar era inesperada. Assistiam a fragmentos das provas de natação daquela noite, torcendo e festejando (ou lamentando) os resultados. Ao tocar da música que assinalava a hora de regressar aos assentos, todos voltavam felizes para o triste destino de Mário Cavaradossi e Tosca.

Pergunta: se houvesse uma Olimpíada em São Paulo, você acha que o público do Cultura Artística pediria TVs no foyer para torcer nos intervalos? Aposto que não. Claro, a maioria provavelmente seria bem feliz com essa possibilidade, mas quase todos achariam inaceitável misturar seu gosto pela alta cultura com um interesse para o esporte. O mesmo aconteceria na Europa e, em menor medida, nos EUA. A razão dessa autocensura não seria estética, mas social e política.

A cultura é um excelente instrumento de separação entre as classes. Para que funcione assim, naturalmente é necessário que o pessoal de baixo seja mantido afastado da alta cultura (o que é simples: basta complicar o acesso à educação e manter inacessíveis os preços dos eventos). Mas para tal fim também é útil manter a ficção de um gosto de elite que desprezaria, por exemplo, a vil paixão pelo esporte. A "Tosca" é nossa e quem gosta de esporte é tosco -não vamos confundir.

Um público de amadores de ópera que, nos intervalos, gosta e não tem vergonha de torcer na frente da TV é índice de uma maturidade democrática fora de série. A Austrália aparentemente é uma sociedade onde abrir e manter a diferença social não é uma preocupação dominante.

sexta-feira, 22 de setembro de 2000

O que faz correr Marie-José Perec?

Tudo indica que Marie-José Perec, a campeã olímpica francesa, não estará nos 400 m rasos. Era uma das favoritas da prova, que catalisa a atenção dos australianos por ser a especialidade de Cathy Freeman, a aborígine que acendeu a flama olímpica na cerimônia de abertura.

A versão oficial diz que Marie-José fugiu da Austrália porque foi ameaçada por um desconhecido em seu hotel. Os jornais insinuam que ela escapou por saber que não estava em forma. Faz sentido: Marie-José foi campeã em Barcelona e em Atlanta. Logo ela sumiu, deixando que Freeman corresse sozinha e ganhasse os Mundiais de 97 e 99. Reapareceu em julho e se qualificou para a Olimpíada com um tempo medíocre. Desde então, inscreveu-se em várias competições, mas nunca compareceu. Em Sydney, ficou escondida fora da Vila Olímpica.

Não sei o que há com Marie-José. No mínimo, sofre com a exigência louca de se mostrar à altura de um passado que a define, mas que ela não consegue repetir. É possível que não seja só isso.

Marie-José nasceu na cidade de Basse Terre, em Guadalupe. Por mais que essa Antilha seja território francês, é difícil acreditar que os antepassados de Marie-José (que é mulata) sejam gauleses.

Agora, cada evento olímpico começa com a apresentação dos atletas que competem. O nome é seguido de "representando..." e lá vai o nome da nação.

Será que cada atleta representa mesmo a nação pela qual está concorrendo? E se ele não se sentir assim? Que tipo de experiência é essa de orientar sua vida toda, durante anos, para uma competição onde se tratará de dar o melhor de si -representando uma coletividade da qual o atleta, no fundo, acha que não faz parte?

Há circunstâncias que ajudam a enlouquecer, como a falta de uma possível resposta clara quando se é confrontado com questões cruciais sobre sua identidade.

Alguns militantes da causa aborígene não queriam que Cathy Freeman corresse: por que dar prestígio para a Austrália opressora? Outros queriam que ela corresse protestando. Os australianos querem que ela encarne o novo multiculturalismo. Pressionada para declarar se ela corria para seu povo ou para a Austrália, Cathy respondeu habilmente: "Corro para mim mesma. Se ganhar, ficarei muito feliz. Estou certa de que muitas pessoas sentirão essa mesma felicidade". Ou seja, festeje quem puder.

Ao que parece, Cathy Freeman tem uma saúde (psíquica) de ferro. Com isso ela distancia seus entrevistadores. Marie-José, desta vez, talvez não tenha conseguido correr mais rápido do que a pergunta inevitável numa Olimpíada: você representa quem?

quinta-feira, 21 de setembro de 2000

Se é proibido perder, jogar fica difícil

Acabou há pouco o jogo contra o Japão. A seleção permanece na Olimpíada. Mas a campanha continua sofrida.
Anteontem, a seleção feminina de futebol ganhou da Austrália, mas no sufoco: 2 a 1 de virada e com um gol australiano anulado (por milagre).

Mesmo assim, na saída do estádio, um torcedor brasileiro enrolado numa enorme bandeira interrompe a conversa com um grupo de australianos, exclamando: "Vocês ainda têm tudo o que aprender sobre futebol!". Subentendido: aprender com a gente.

Antes, na arquibancada, dois australianos param um brasileiro de camiseta da seleção. Perguntam: "Brazil?". O torcedor confirma e logo convida seus interlocutores a contar as quatro estrelinhas azuis, "quatro vezes campeão do mundo", ele explica. Em suma, esse esporte é nosso.

Por isso mesmo, estou achando que, para nossas seleções de futebol, masculina e feminina, vai ser cada vez mais difícil jogar bem e ganhar.

Isso independentemente dos técnicos e da qualidade dos jogadores. Por quê?
Existe um nível de expectativa que é nocivo para os atletas. E é bem possível que, em matéria de futebol, a gente já o tenha atingido. Um exemplo. Todos os atletas australianos estão sob pressão: os olhos do mundo estão virados para cá, e o país pede medalhas. Mas, acima de tudo, sonhava-se com a abertura da Olimpíada.

A primeira prova era o triatlo feminino -um evento-espetáculo bem no meio do cartão postal de Sydney.

Esperava-se uma apoteose logo no início. Havia de fato uma chance de que as australianas ganhassem as três medalhas. Para isso se preparavam. Isso estava sendo antecipado. Ora, Loretta Harrop, favorita, chegou em quinto lugar.

Michelle Jones perdeu o ouro logo no sprint e ficou com a única medalha australiana.
Eis uma das dificuldades cruciais em psicologia do esporte. Por um lado, o atleta precisa de um alto nível de motivação (aqui as expectativas do público e, no caso, do país ajudam). Por outro, como já Freud tinha reparado, o excesso de investimento pode produzir uma inibição irresistível. Nada de muito patológico nisso. Reagimos todos assim: quando queremos alguma coisa em demasia, na nossa cabeça, ela se confunde com todas as coisas que quisemos muito e que nos foram proibidas.

Em consequência, fracassamos.

Ora, em matéria de futebol, parece que ganhar se tornou uma condição "sine qua non" da identidade nacional brasileira. Perder é crime de alta traição.
Com isso, vai ficar difícil jogar -não só nesta Olimpíada.

terça-feira, 19 de setembro de 2000

Torcida brasileira

No jogo da seleção feminina de vôlei contra a Austrália, a torcida era firme. Cantou até o hino nacional em ritmo acelerado. Os australianos repetiam seu "Aussie, aussie, aussie/oi, oi, oi". "Aussie" é a abreviação de australiano e se pronuncia "ozie".
As brasileiras lideravam por 2 sets a 0 e 21 a 12 no terceiro, quando a torcida inventou: "Easy, easy, easy/oi, oi, oi!". "Easy" soa perto de "ozie" e significa "fácil". Escutando essa gozação, que dizia "Fácil, fácil, fácil /oi, oi ,oi..", a torcida australiana emudeceu. Enfim, a seleção jogou muito bem, ganhou (fácil) e promete.

Tomado pelo entusiasmo dos 500 torcedores, gritei, pulei e, no fim do jogo, fiquei no saguão para uma festa improvisada. Voltando para o hotel, resmungava desconfianças das emoções torcedoras.

A Olimpíada de Sydney pediu que a ONU decretasse a trégua olímpica e exigisse paz entre as nações durante os Jogos. Seria a ocasião de mostrar que desacordos e conflitos podem ser resolvidos no fair play do esporte.

Em vez de se armar para guerra, contentem-se com torcer. Argentina e Reino Unido poderiam ter decidido o futuro das Malvinas em três jogos de futebol. Quem ganha, leva. Pena que a coisa não funcionou em Berlim-36. Hitler poderia ter visto em Jesse Owens a superioridade dos negros e, assim, teria desistido da guerra e de sua política racial.

Em suma, torcer seria bom: uma maneira de evitar guerras.

É possível pensar o contrário. Ou seja, que a torcida não é uma catarse dos nacionalismos belicosos. Ao contrário, seria seu caldo de cultura. Quem pensa assim, nota também que a torcida nacional, fomentando a rivalidade entre nações, garante de fato a paz social. Quem se desespera ou exulta com a nação, esquece que ela é dividida, apaga as iniquidades sociais das quais ele é vítima.

Os excluídos podem torcer para um país que os ignora. A idéia seria: torcer evita a consciência dos conflitos sociais pela invenção de antagonismos nacionais.

Numa linha parecida, há as pesquisas de um tal Robert Cialdini, da Universidade de Arizona, para dizer que o torcedor é um fraco, que tenta obter respeito não por suas próprias façanhas, mas por conexão com sua seleção.

Mas as teorias nem sempre se aplicam. Esta noite a torcida brasileira não treinava sentimentos belicosos -a festa final incluiu na dança e no canto os torcedores australianos. Também não acho que o orgulho ocultasse as feridas sociais da nação no espírito da torcida. Ainda menos o torcedor brasileiro, que torce, em geral, na esperança de crescer graças à grandeza do país. Ele torce muito mais na esperança de que o país consiga, enfim, crescer.

segunda-feira, 18 de setembro de 2000

"Mate", amigo e irmão

Os australianos nos param na rua para saber se gostamos de Sydney. Perguntam com quais medalhas sonha o Brasil e logo nos desejam boa sorte.

São conversas de homem a homem, frequentes sobretudo na sexta e no sábado, quando um par de cervejas solta as línguas. Nessas investidas cordiais, eles nos chamam sempre de "mate".
"Mate" significa companheiro, amigo do peito: é o apelido dos homens australianos entre si. O termo tem sentido forte quando reivindica a importância de uma relação: "Farei qualquer coisa para ele, ele é meu "mate'". Mas parece também fraco por ser usado para se dirigir a estranhos: ""Mate", sabe onde está a rua tal?".

No Brasil há termos parecidos: "amigo", em São Paulo, e "irmão", no Rio, são usados, mas com menos frequência. Uso forte: "Fulano é um irmão para mim". Uso fraco: "Amigo, traz uma aguinha para a gente". O paralelo revela uma diferença. Os australianos chamam todos de "mate", e essa intimidade pressupõe a idéia de uma sociedade de iguais, onde todos são "mates". No Brasil, o mesmo uso é condescendente: chamamos o guardador de carros de amigo. A recíproca é inesperada e ameaçadora.

Há razões históricas para isso. A Austrália nasceu, pouco mais de 200 anos atrás, do projeto de transformar um continente inteiro em colônia penal. A Inglaterra do fim do século 18 não sabia o que fazer com seus criminosos -melhor dito, com seus pobres.

Os miseráveis da Revolução Industrial não eram bonitos de se ver na rua. Surgiu a idéia de levá-los para a praia australiana. Se morressem, não seria uma grande perda. Se conseguissem sobreviver, seria mais uma colônia para o império. Entende-se por que os australianos se consideram companheiros de naufrágio. Inventaram uma sociedade horizontal onde um dos passatempos consiste, como eles se expressam, em cortar as papoulas que crescem mais do que as outras.

No Brasil, a história é outra: a escravatura introduziu uma desigualdade da qual mal conseguimos sair. O privilégio pode ser detestado, mas é também invejável.

Enfim, para chegar a conviver como pares, precisaríamos levantar o peso do passado e tirá-lo de nossa frente. Deve ser por isso que hoje fui assistir à prova de levantamento de peso feminino (categoria 48 kg), na qual concorria Maria Elizabete Jorge. Nossa atleta se classificou em décimo -era o que ela esperava. Depois do último arremesso, despediu-se do público sorrindo e abanando. Deu entrevista confirmando sua vontade de continuar levantando peso. Ótimo, pois ainda há bastante entulhos no nosso caminho e precisamos de muitas Elizabetes.

quinta-feira, 31 de agosto de 2000

Por que Orfeu fica no morro

Na sexta -feira passada, "Orfeu", de Cacá Diegues, estreou em Nova York. À noite, a sala do Lincoln Plaza Cinema estava cheia, apesar de a época do ano não ser das melhores, com a cidade ainda vazia pelas férias de verão. O filme entusiasmou e ganhou aplausos.

Eu fiquei sentado, deixando passar os créditos finais, comovido pela intensidade dos últimos minutos, quando todos gritam, apitam e choram a morte de Orfeu. Compartilhava a sensação de uma perda irreparável, que não poderíamos deixar acontecer. Perda de quê?

Na tarde do mesmo dia, assistira a um documentário da série "Seis Histórias Brasileiras", que o GNT transmitiu duas semanas atrás. Era "Um Dia Qualquer", de Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe. Ficava vívida em mim a lembrança de Apolônio, vendedor de abacaxis na praia de Copacabana, e de suas palavras surpreendentes -sobre o que é ser negro, sobre seu corpo ou sobre a mulher brasileira.

Ora, no filme de Cacá Diegues, alguém pergunta a Orfeu por que ele não aproveita seu sucesso para ir embora do morro. Orfeu não responde e, naturalmente, fica. Ele poderia dizer, imagino, que o morro é o mundo do qual ele quer ser a voz. Apesar do tráfico de drogas e das balas achadas e perdidas, o morro (ou redutos análogos: favela, cortiço etc.) é seu lugar, porque aí moram os Apolônios.

Essa resposta (imaginária) de Orfeu não nos estranharia. Estamos acostumados a supor que tanto a alegria de viver quanto a capacidade de chorar, assim como todas as qualidades autenticamente humanas, habitam o morro, a favela ou a maloca rural batida pela seca.

É um traço bem estabelecido de nossa cultura: como o status social é decidido numa corrida, inventamos prêmios de consolação para os derrotados. Quer seja um acesso mais fácil ao paraíso depois da morte, quer seja um privilégio poético. Assim, revisando nossos extratos bancários, nos extasiamos: "Oh! admirável simplicidade do pescador, do camponês e do miserável".

Claro, é uma armadilha ideológica: "Eu te exploro até o osso, mas em troca disso eu admiro e invejo tua fome e tua miséria, porque és mais humano e mais verdadeiro".

Mas cuidado: nessa vinheta, que parece feita só para aliviar a culpa dos tubarões, talvez haja mesmo alguma verdade. É a melhor maneira de ocultar algo: dizer a verdade de tal forma que todos pensem que se trata de uma mentira. Então qual é a verdade?

Lembra a história do mestre e do escravo? Hegel imaginava que o escravo, trabalhando, acabaria sendo o único a saber lidar com o mundo, fabricar as coisas, tirar leite da vaca, plantar feijão e trocar o óleo do carro. O mestre ficaria se coçando e, no fim, incompetente, dependeria totalmente do escravo. Aí a relação de forças se inverteria.

As coisas não funcionaram assim. Sobretudo porque o mestre não ficou ocioso: ao contrário, ele se especializou nas tarefas mais rentáveis e consolidou seu poder. Ele não está cansado nem se tornou incompetente.

Ora, apesar disso, talvez o escravo tenha mesmo ficado com algo relevante que o mestre perdeu. De uma certa forma, ele ficou com a vida concreta. É na cultura dos pobres, dos deserdados, que importa rir, chorar, amar, odiar, enfim, ser alegre e ser triste. A cultura dos mestres é cada vez mais abstrata por (e para) se resumir na sede de lucro e no esbanjamento que decide o status.
Os mestres não têm tempo para se deter em questões, diferenças e, eles diriam, em detalhes concretos. Eles precisam de abstração para justificar as equivalências entre coisas, pessoas e valores que permitem o bom funcionamento do mercado e da produção.

Deve ser por isso que Orfeu permanece no morro. Por isso que as palavras de Apolônio são permeadas de uma extraordinária sabedoria prática. Porque a vida concreta ficou com os derrotados.

Por essa razão, sempre desconfio das formas de "progresso" social que prometem apenas a entrada dos excluídos no mundo e na cultura dos mestres.

Pense bem. O que seriam os Estados Unidos, por exemplo, se seus derrotados fossem todos perfeitamente integrados? Claro, cidades com menos drogas, facadas, assaltos -e onde todos terminam o colégio. Mas seriam também o vasto e irrespirável subúrbio de uma classe média mesquinha e conformista.

E o que seria o Brasil sem seus excluídos? Foi a idéia dessa perda que me deixou comovido no fim do filme de Cacá Diegues. Você pode perguntar: "Como assim? Seria uma perda se não houvesse mais excluídos?".

Explico-me. Seria um desastre se Orfeu e Apolônio morressem de bala ou de fome, exterminados pela opressão. Mas seria um desastre também se eles simplesmente ganhassem em alguma loteria e se instalassem na Vieira Souto ou nos Jardins, confundindo-se com os indígenas. Pois, se isso acontecesse, nossa sociedade não seria mais nada, apenas uma selva de Lalaus (mais ou menos bem-sucedidos).

P.S.: No domingo dia 20, a estréia americana de "Orfeu" foi precedida por um longo e bonito artigo de Caetano no "The New York Times". É possível, e vale a pena, lê-lo (em inglês) procurando no site www.nytimes.com.

Por que Orfeu fica no morro

Na sexta -feira passada, "Orfeu", de Cacá Diegues, estreou em Nova York. À noite, a sala do Lincoln Plaza Cinema estava cheia, apesar de a época do ano não ser das melhores, com a cidade ainda vazia pelas férias de verão. O filme entusiasmou e ganhou aplausos.

Eu fiquei sentado, deixando passar os créditos finais, comovido pela intensidade dos últimos minutos, quando todos gritam, apitam e choram a morte de Orfeu. Compartilhava a sensação de uma perda irreparável, que não poderíamos deixar acontecer. Perda de quê?

Na tarde do mesmo dia, assistira a um documentário da série "Seis Histórias Brasileiras", que o GNT transmitiu duas semanas atrás. Era "Um Dia Qualquer", de Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe. Ficava vívida em mim a lembrança de Apolônio, vendedor de abacaxis na praia de Copacabana, e de suas palavras surpreendentes -sobre o que é ser negro, sobre seu corpo ou sobre a mulher brasileira.

Ora, no filme de Cacá Diegues, alguém pergunta a Orfeu por que ele não aproveita seu sucesso para ir embora do morro. Orfeu não responde e, naturalmente, fica. Ele poderia dizer, imagino, que o morro é o mundo do qual ele quer ser a voz. Apesar do tráfico de drogas e das balas achadas e perdidas, o morro (ou redutos análogos: favela, cortiço etc.) é seu lugar, porque aí moram os Apolônios.

Essa resposta (imaginária) de Orfeu não nos estranharia. Estamos acostumados a supor que tanto a alegria de viver quanto a capacidade de chorar, assim como todas as qualidades autenticamente humanas, habitam o morro, a favela ou a maloca rural batida pela seca.

É um traço bem estabelecido de nossa cultura: como o status social é decidido numa corrida, inventamos prêmios de consolação para os derrotados. Quer seja um acesso mais fácil ao paraíso depois da morte, quer seja um privilégio poético. Assim, revisando nossos extratos bancários, nos extasiamos: "Oh! admirável simplicidade do pescador, do camponês e do miserável".

Claro, é uma armadilha ideológica: "Eu te exploro até o osso, mas em troca disso eu admiro e invejo tua fome e tua miséria, porque és mais humano e mais verdadeiro".

Mas cuidado: nessa vinheta, que parece feita só para aliviar a culpa dos tubarões, talvez haja mesmo alguma verdade. É a melhor maneira de ocultar algo: dizer a verdade de tal forma que todos pensem que se trata de uma mentira. Então qual é a verdade?

Lembra a história do mestre e do escravo? Hegel imaginava que o escravo, trabalhando, acabaria sendo o único a saber lidar com o mundo, fabricar as coisas, tirar leite da vaca, plantar feijão e trocar o óleo do carro. O mestre ficaria se coçando e, no fim, incompetente, dependeria totalmente do escravo. Aí a relação de forças se inverteria.

As coisas não funcionaram assim. Sobretudo porque o mestre não ficou ocioso: ao contrário, ele se especializou nas tarefas mais rentáveis e consolidou seu poder. Ele não está cansado nem se tornou incompetente.

Ora, apesar disso, talvez o escravo tenha mesmo ficado com algo relevante que o mestre perdeu. De uma certa forma, ele ficou com a vida concreta. É na cultura dos pobres, dos deserdados, que importa rir, chorar, amar, odiar, enfim, ser alegre e ser triste. A cultura dos mestres é cada vez mais abstrata por (e para) se resumir na sede de lucro e no esbanjamento que decide o status.
Os mestres não têm tempo para se deter em questões, diferenças e, eles diriam, em detalhes concretos. Eles precisam de abstração para justificar as equivalências entre coisas, pessoas e valores que permitem o bom funcionamento do mercado e da produção.

Deve ser por isso que Orfeu permanece no morro. Por isso que as palavras de Apolônio são permeadas de uma extraordinária sabedoria prática. Porque a vida concreta ficou com os derrotados.

Por essa razão, sempre desconfio das formas de "progresso" social que prometem apenas a entrada dos excluídos no mundo e na cultura dos mestres.

Pense bem. O que seriam os Estados Unidos, por exemplo, se seus derrotados fossem todos perfeitamente integrados? Claro, cidades com menos drogas, facadas, assaltos -e onde todos terminam o colégio. Mas seriam também o vasto e irrespirável subúrbio de uma classe média mesquinha e conformista.

E o que seria o Brasil sem seus excluídos? Foi a idéia dessa perda que me deixou comovido no fim do filme de Cacá Diegues. Você pode perguntar: "Como assim? Seria uma perda se não houvesse mais excluídos?".

Explico-me. Seria um desastre se Orfeu e Apolônio morressem de bala ou de fome, exterminados pela opressão. Mas seria um desastre também se eles simplesmente ganhassem em alguma loteria e se instalassem na Vieira Souto ou nos Jardins, confundindo-se com os indígenas. Pois, se isso acontecesse, nossa sociedade não seria mais nada, apenas uma selva de Lalaus (mais ou menos bem-sucedidos).

P.S.: No domingo dia 20, a estréia americana de "Orfeu" foi precedida por um longo e bonito artigo de Caetano no "The New York Times". É possível, e vale a pena, lê-lo (em inglês) procurando no site www.nytimes.com.

quinta-feira, 24 de agosto de 2000

O submarino russo: mortes inúteis

Passei a semana tentando me apegar a outros pensamentos. Inútil. A mesma imagem voltava e insistia sempre: o submarino russo, parado, silencioso e gélido no fundo do mar.

Nos primeiros dias, a história parecia ser apenas mais um exemplo patético da decadência russa. Nos jornais, na rua, na Internet, nos táxis, onde quer que houvesse conversa, todos falavam disso: a tecnologia da ex-URSS é sucata. Na verdade -muitos acrescentavam- sempre foi sucata.

Só o Ocidente não sabia. O Kursk devia ser uma lata de conserva disfarçada: talvez fosse esse o segredo que os russos queriam tanto esconder. Falava-se também dos efeitos infelizes dos orgulhos nacionais mal colocados. A indignação com o governo russo era grande: por que não pedem ajuda? Para não confessar suas dificuldades? Ou para não mostrar ao mundo sabe Deus qual arma secreta e estapafúrdia -escondida no ventre do Kursk? Pudores irrisórios e segredos de polichinelo.

Mas rapidamente essas conversas definharam. Foram substituídas por uma grande pena e por uma torcida mundial para que não estivessem todos mortos. De resto trágico da Guerra Fria e de suas mentiras, o Kursk parecia se transformar em símbolo de algo maior, algo que nos concerniria a todos -Guerra Fria ou não.

Um jornal de Murmansk começou a publicar pequenos necrológios dos marinheiros, feitos de últimas cartas aos pais, lembranças de amigos e parentes etc. Alguns jornais europeus traduziram. Era uma espécie de cemitério de homens comuns, uma nova "Antologia de Spoon River", o poema dos mortos quaisquer. Alguns pareciam até orgulhosos de estar na Marinha, mas ninguém, nem na lembrança depois de morto, recorria ao tipo de retórica belicosa que poderia dar sentido à sua morte e à de seus companheiros.

Nessa altura, comecei a ser perseguido pelas letras de uma música. Aconteceu assim: li uma notícia sem interesse sobre os Beatles (o que sobra deles) e houve uma espécie de curto-circuito. Sem querer, passeando pelas ruas na sexta-feira, comecei a cantarolar, na melodia de "Yellow Submarine": "We all live in a russian submarine, russian submariiiiine" (Vivemos todos num submarino russo, submarino russo).

Com isso, a visão já insistente do submarino pousado no fundo do mar ficou mais lúgubre ainda: o ritmo me parecia vir de lá, como se os sobreviventes no escuro batessem contra a parede metálica ao ritmo da música e cantassem num coro de baixos. Oniricamente, eles pareciam nos chamar.

Como a música não me deixava tranquilo, decidi levá-la a sério. Respeitando meu automatismo mental, disse para mim mesmo: está bem, acredito, somos todos marinheiros do Kursk, mas por quê? Quem sabe respondendo eu conseguisse entender como o destino do submarino russo conquistou a imaginação popular do mundo inteiro.

O fato é que este gigantesco tubo inerte, mistura de vibrador quebrado com sarcófago, parece resumir nossa relação com a tecnologia. O avanço tecnológico é a melhor expressão de nossa potência, uma espécie de gloriosa ereção fálica. Olhe só, vamos à Lua, circulamos de naveta espacial, viajamos de supersônico, conseguimos energia atômica limpa e barata etc. Somos poderosos.
Acontece que esse falo tecnológico se transforma facilmente numa tumba. É o Concorde caindo ou a naveta espacial explodindo. O vôo TWA 800 ou então Tchernobil.

Tempo atrás, alguém diria que essas são as vítimas cobradas pelo progresso. Mas ainda há quem pense que o progresso é um valor?

Inventamos a morte inútil. É diferente da morte acidental, produzida por um relâmpago, um terremoto, uma bala perdida ou mesmo a raiva de um assaltante. Diferente, porque nos vários submarinos nucleares da vida embarcamos orgulhosa e voluntariamente. A morte inútil também se distingue da morte justificada por uma causa mais ou menos nobre. Paradoxalmente, ela não é acidental e não tem causa final.

Morremos de morte inútil quando morremos como consequência do funcionamento de nossa potência. Sem outros fins.

Entendo que as autoridades russas gostem da idéia de que o Kursk tenha afundado depois de uma colisão com um submarino americano ou britânico. Na verdade, todos preferiríamos que assim fosse. Esse restinho de Guerra Fria nos permitiria pensar no Kursk como um túmulo de bravos que morreram para defender a pátria, a honra ou coisa análoga. Seriam mortes por causa nobre.

Ora, o Kursk é sobretudo um túmulo para as razões que durante anos deram sentido à morte e que hoje estão faltando no mercado.

Não há porque se queixar da diminuição dos motivos para sacrifícios supremos. Mas isso nos deixa com um fenômeno novo: mortes estranhas, consequências de exercícios abstratos de potência tecnológica que não alveja mais nem a guerra nem a defesa nem a conquista.
Engraçado, décadas atrás uma geração lançou ao mar um psicodélico submarino amarelo também para lutar contra essa paixão tecnológica abstrata. Pena que não tenha chegado a tempo ao mar de Barents.

quinta-feira, 17 de agosto de 2000

Saudade de Bill Clinton

Até a semana passada, a campanha para as eleições presidenciais americanas corria tranquila. Valia a piada pela qual a síntese entre Bush e Gore é "bore" -que significa tédio.

De repente, Al Gore designou seu vice-presidente: o senador Joseph Lieberman, de Connecticut, que é judeu ortodoxo. A coisa em si não me tirou do tédio. Como muitos outros, pensei: "Ah é? Legal!". Mas logo tive de me perguntar qual foi a razão dessa escolha. Aí me preocupei.
No começo, a coisa foi apresentada como uma ousadia: pela primeira vez, exclamava-se, um judeu está a um passo da Presidência dos Estados Unidos. Mais tarde, os jornalistas lembraram que Allan Greenspan é judeu e talvez seja mais importante do que um vice-presidente. A seguir, as pesquisas de opinião verificaram que o fato de um candidato ser judeu não é muito relevante para os eleitores.

Na verdade, a escolha é uma ousadia apenas para poucos racistas -os quais, de qualquer forma, votariam na extrema direita de Pat Buchanan.

Em suma, não se trata de uma decisão ousada promovendo a aceitação da diversidade cultural. Ao contrário, a escolha é uma confissão de conformismo. Gore não escolheu seu vice por ele ser judeu, mas por ele ser um religioso praticante, o primeiro e mais virulento dos democratas em sua crítica aos pecadilhos do presidente Clinton. Por essas duas razões, o senador Lieberman encontra a aprovação até dos republicanos mais conservadores.

É engraçado: quando Clinton era candidato, já com a história de Gennifer Flowers no ar, ele escolheu Al Gore como o homem que, por sua simples presença, lhe ofereceria uma garantia moral. Agora, para se dissociar de Clinton, Gore escolhe Lieberman para a mesma função. Tipo: eu sou moral, olhe para meu vice. A esse ritmo, Lieberman, se ele for candidato depois da eventual Presidência de Gore, terá de procurar seu vice entre o papa e o Dalai Lama.

O plano democrata de governo difere substancialmente do projeto republicano -em matéria de política fiscal, de saúde pública e de previdência social. Apesar disso, Gore e sua equipe quiseram responder à tentativa republicana de tirar partido das pretensas falhas morais de Clinton. Lieberman foi escolhido para ser exibido como prova de caráter moral.

Nada contra. Afinal, por que a estatura moral não seria um bom critério para escolher governantes? O problema naturalmente é: quem mede a dita estatura, e como?

Atenção: Joseph Lieberman é provavelmente um sujeito altamente respeitável. Nos anos 60, ele foi um "cavaleiro da liberdade" -registrando eleitores negros no sul ainda segregado. Mas quem lembrou esse passado de Lieberman foi logo Clinton, o pecador. A campanha democrata preferiu uma versão em cores mais suaves.

O senador Lieberman -esta foi a mensagem- é uma garantia ética graças a seus bons costumes e por respeitar rigorosamente as formas sociais de sua religião. Para servir de exemplo moral, ele foi apresentado como um suburbano que come kosher e vai à sinagoga a cada semana. A qualidade ética conclamada não reside em alguma têmpera subjetiva forjada na complexidade da experiência. Se algo disso existe, como no caso do senador Lieberman, melhor esquecer e salientar a estética de vida pequeno-burguesa: moral é celebrar o sábado (ou domingo, que seja). Será que o vice-presidente poderia declarar a guerra no sabá se fosse preciso? -perguntam com emoção as mamães do subúrbio, correndo em suas camionetes para levar as meninas ao treino de futebol.

Em suma, a moralidade coincide com a conformidade e o farisaísmo religioso dos subúrbios. O mundo do bem é o sorriso estereotipado da Main Street de Disneylândia.

Numa total confusão entre bons costumes e estatura ética, o conformismo e a mediocridade tornam-se patamares morais.

Theodore Roosevelt, Thomas Jefferson e outros grandes americanos devem estar esperneando em suas tumbas.

Resta esperar que Gore esteja enganado e que os americanos tenham uma visão mais complexa daquilo que os políticos parecem supor que seja ético. Afinal, os eleitores em 1998 não se deixaram convencer pela hipocrisia moralista e, apesar da enorme campanha contra Clinton, o pecador, mandaram muitos novos representantes democratas para o Congresso.

Dizem que, para ser eleito, Gore deveria compartilhar com Clinton o mérito dos excelentes resultados da Presidência, mas se distanciar da sombra moral que o presidente projeta. Pois Clinton, acrescentam, foi um presidente de sucesso, mas houve o problema Lewinski e outros.
Ora, Clinton foi um grande presidente não apesar de, mas por causa de suas notórias fraquezas. É por ele ser capaz de errar, se arrepender e errar de novo que ele pode reconhecer alguma complexidade em si mesmo (e, portanto, nos outros). Sem essa capacidade, não há nenhuma experiência moral verdadeira.

Cruzo os dedos para que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha ao menos a mesma estatura ética de Bill Clinton. À primeira vista, há pouca chance.

quinta-feira, 10 de agosto de 2000

Pão, circo e corruptos na cadeia


Luiz Francisco de Souza é nosso herói do momento. E com ele todos os procuradores que corajosamente prendem os corruptos e tentam recuperar o dinheiro público saqueado.
É curioso. Há eleições importantes à vista. A propaganda política nos lembra de que, afinal, os eleitores devem contar para alguma coisa, pois os candidatos precisam de seus votos. Esta seria a hora de escolher o melhor porta-voz de nossas esperanças e projetos. No entanto, hoje nos sentimos representados muito mais pela Justiça do que por vereadores, prefeitos, governadores, deputados etc.


Parece que o desfile interminável de políticos traindo seus eleitores levou a gente a desistir da democracia representativa. A corrupção não produz apenas perdas do patrimônio público, ela também acarreta uma progressiva destruição de nossa confiança no sistema.


Se falo de política no boteco da esquina, num táxi ou num jantar com amigos, encontro sobretudo comentários indignados. Está ficando difícil discutir, pois as idéias e os engajamentos políticos de cada um mal são mencionados. Passamos direto ao consenso imediato: a raiva com a corrupção e o desejo de que ela seja enfim reprimida. Quase não há mais discussão política, porque concordamos quanto ao essencial: é necessário perseguir e punir os corruptos.


Ora, os membros eleitos do Poder Legislativo deveriam representar positivamente nossas vontades políticas. Os brasileiros teriam, sei lá, aposentadorias dignas, saúde pública e ensino básico de qualidade, novas formas de participação democrática, porque a maioria elegeu representantes que poderiam dar forma de lei a essas vontades. É assim que, a princípio, a coisa deveria funcionar. Mas quem quer discutir vontades políticas concretas? Qual ensino, qual saúde, qual democracia? Por que se preocupar com a complicação de projetos políticos e sociais com os quais acabaríamos discordando? Não vale a pena, pois dispomos de um projeto policial e jurídico com o qual, oh, maravilha, todos concordamos: que prendam e condenem os ladrões. O resto, parecemos pensar, será uma simples e mágica consequência.


Faça a prova: lance uma conversa sobre a escolha entre Marta Suplicy, Erundina e Maluf. No caso mais simples, logo o papo chegará às conclusões seguintes: Erundina não roubou, Marta não vai roubar e Maluf... bom, a gente sabe. Os interlocutores às vezes saberão apresentar provas, números, histórias de obras superfaturadas, ou não. Mas tente levar a conversa para os programas: o que os candidatos prometem fazer e como. Quase ninguém sabe ou dá bola.
O Poder Judiciário, que não é eleito, tornou-se paradoxalmente nosso representante mais autêntico, porque a variedade de nossos pensamentos políticos e sociais tende a se resumir ao simples e unívoco pedido de que a justiça seja feita.


Nas mesmas conversas em que a discussão política foi substituída pela indignação unânime, também tornou-se difícil debater os caminhos concretos pelos quais a economia do país poderia voltar a crescer. É como se não valesse a pena comparar escolhas e modelos fiscais, produtivos ou administrativos. Resgatar o dinheiro roubado é uma condição prévia tão importante que o resto perde interesse. Parecemos acreditar que, estancando a hemorragia da corrupção, logo nos tornaremos ricos. Teremos tudo o que precisamos para criar uma sociedade melhor.


Em suma, o Judiciário encarna nossa vontade política e promete os meios de nosso futuro econômico. Com isso, ele se torna o garante e o verdadeiro depositário da democracia. O Legislativo e o Executivo não nos respeitam, mas ainda estamos numa democracia porque o Judiciário nos vingará.


Claro que não é nada disso: lutar contra a corrupção não constitui uma plataforma política, assim como recuperar o dinheiro roubado não salva a economia do país.


Acontece, porém, que a corrupção produz uma perda bem maior do que as quantias que ela rouba. Ela desacredita a democracia e, instaurando uma falsa unanimidade, nos convida a desistir de pensar.


Poderíamos imaginar que isso seja um percalço brasileiro. A corrupção, doença endêmica, estaria condenando nossos trópicos a uma miséria política na qual pegar ladrão apareceria como a essência do exercício democrático.


Mas não é assim. A corrupção dos políticos (real ou suspeita) é um argumento conservador, antigo e global, feito para cortar entusiasmos. "Não se meta com política que é coisa suja, os políticos são todos iguais..." Quase 40 anos atrás, na Itália, eu escutava isso ao manifestar minhas simpatias socialistas juvenis.


Bonita armadilha: os eleitos enchem seus bolsos ou servem aos interesses dos que financiaram suas campanhas. Ou, no mínimo, suspeita-se que assim seja. Isso é uma razão para que o cidadão desista de seus sonhos políticos e se divirta festejando prisões e CPIs de corruptos. Ótimo. Só não gostaria que estas se tornassem o equivalente das execuções públicas que o soberano antigo oferecia a seu povo miserável. Tipo: o que o povo quer (para ficar calado)? Pão, circo e corruptos na cadeia.


Será que queremos só isso mesmo?

quinta-feira, 3 de agosto de 2000

Roubaram (também) o sonho liberal

Até terça-feira , quando escrevo esta coluna, o dito escândalo Eduardo Jorge poderia ser uma espécie de tempestade em copo d'água.

Como resumiu Clóvis Rossi, a acusação parece consistir em "índices de comportamento pouco santo". O procurador Luiz Francisco não acrescentou muita coisa ao declarar que EJ teria dado prova de "omissão e má-fé na apresentação de seu patrimônio".

Em particular, não está comprovado que EJ tenha vendido seu acesso privilegiado ao presidente. Talvez ele tenha somente exercido muito a influência de sua função.

Imaginemos que as coisas permaneçam nesse patamar. Ou seja, que não haja nada para abafar e que EJ tenha se mostrado apenas "pouco santo".

O engraçado é que, mesmo assim, sua história me dói mais do que, por exemplo, as sinistras peripécias do foragido Nicolau.

Tento entender o porquê. Supostamente, Nicolau roubou e esbanjou de maneira revoltante. A quantidade monstruosa de dinheiro público do qual ele teria se apropriado, comparada com a indigência do povo e do Estado, leva a cálculos assustadores: quantas casas, quantos hospitais, quantos remédios teriam pago os tristes luxos de Nicolau?

EJ, se nada mais for comprovado, não se entregou a nenhum excesso de ganância de estilo Nicolau. Seu caso apenas enfia nosso nariz na fronteira mal-cheirosa entre Poder Executivo e Legislativo. Revela assim o fedor da banalidade cotidiana do poder.

EJ "pouco santo" mereceria nossa indulgência pois sua culpa maior seria apenas ter sido um político e ter trabalhado nos bastidores do governo. E seria uma culpa globalizada, nem pitoresca, nem especificamente brasileira. Não precisa recorrer ao mito do malandro ou da lei de Gerson. Os corredores do poder não conhecem latitude nem fuso horário, eles estão sempre, e em qualquer lugar, na mesma hora: a do lusco-fusco.

Por isso, a história de EJ me indigna menos do que o atrevimento de quem rouba as galinhas dos pobres. Mas, repito, paradoxalmente me dói mais. Por quê?

A democracia não é apenas uma instituição feita de livres eleições, separação e independência dos poderes etc.

Ela é também um estado de espírito, um sentimento que talvez seja complexo, mas no qual nunca faltam (ou nunca poderiam faltar) três pilares. A sensação de que, com mais ou menos sorte e com méritos diferentes, somos todos feitos do mesmo pano (no Brasil este já é um pilar rachado). A sensação de que os sonhos não têm limites e ninguém nos tirará a liberdade de sonhar. E a convicção de que nosso pensamento e nossas ações podem ter efeito sobre a vida da comunidade. Ou seja, que as decisões sociais e políticas são nossas. É graças a esta convicção que nos animamos a participar, votar, cooperar, opinar.

Ora, no mundo democrático inteiro ouve-se hoje uma mesma queixa. Parece que quase mais ninguém quer saber de política. Os jovens não participam dos ritos democráticos (partidos e eleições). Os adultos não estão muito melhor: onde o voto não é obrigatório, os cidadãos pouco se deslocam para as urnas.

Com isso, brotam as críticas: os jovens de hoje seriam cínicos e hedonistas. Os adultos seriam acomodados, submissos, alienados etc.

Tente recapitular a história do caso EJ. Talvez, como eu, você também acabe sem grande indignação, mas perseguido pela pergunta seguinte: "O que eu tenho a ver com isso tudo?". Não que as decisões tomadas com a contribuição influente de EJ não tenham repercussões em nossas vidas. Obviamente têm, basta lembrar o caso da Encol. Mas a zona cinza do poder, onde essas decisões são tomadas, parece totalmente alheia a nossa intervenção, afastada de nós ao ponto de tornar ridículas nossas cédulas eleitorais.

Pergunta: se jovens e adultos se afastam hoje das práticas democráticas será que isso é efeito de sua cínica alienação? Ou de um sistema que de fato dispensa a participação de seus cidadãos?
Dizem que o sonho socialista está morto -destruído pelos doutrinários, que confundiram o socialismo com a uniformidade das aspirações de todos, e pelas burocracias, que se transformaram em classes dominantes. Concordo.

Agora, suspeito que o sonho liberal também esteja morto. Ou no mínimo moribundo. Socialismo e liberalismo são obviamente sonhos concorrentes, mas além de suas diferenças eles compartilham (compartilhavam?) algo: são os dois sonhos modernos de todos poderem participar da invenção da vida social e política.

Ora, assim como as burocracias roubaram o sonho socialista, também o sonho liberal parece estar sendo roubado por entidades imprevistas que se tornaram dominantes, as corporações. Entre lobbying e financiamento de campanhas, somos forçados a constatar que perdemos até o sentimento de poder influenciar nosso destino coletivo. A história de EJ dói tanto justamente porque confirma esta perda.

Não é de estranhar se a esperança -última deusa, como dizia um poeta- parece hoje desertar as grandes ambições de governo. Ela encontra refúgio em quem luta em espaços circunscritos e concretos, onde a ação e a opinião de cada um ainda parecem contar. De novo, falo das novas revoltas.

quinta-feira, 27 de julho de 2000

Os caça-propaganda, outras figuras da nova revolta

Sigo indagando o espírito da revolta de Seattle e Washington.

Encontro assim uma fotografia: é a sala da máquina para fotocopiar de um escritório. Um jovem, de camisa e gravata, está esperando que a copiadora faça seu trabalho. À direita, uma citação: "Antevejo o dia em que árabes e americanos, latinos e escandinavos mastigarão seus crackers tão entusiasticamente quanto eles já bebem Coca-Cola ou escovam os dentes com Colgate". Assinado: o presidente da Nabisco Corporation.

A imagem produz tristeza e irritação. A tristeza é pela conformidade repetitiva imposta a nossas vidas: alguém está esperando que saiamos todos conformes, como fotocópias. A irritação é com o autor da citação, que confessa sua ambição de planejar nossos gostos. Mistura de triunfalismo ingênuo com cinismo: ele parece apostar que todos, corporações e consumidores, antevejamos um mesmo futuro feliz de salgadinhos, refrigerantes e pasta de dentes.

Outra fotografia: um cubículo anônimo sem janelas. Atrás de uma escrivaninha ordenadamente coberta por papéis, um jovem executivo está na frente de um computador, teclando. Mais uma citação: "Olhando para o futuro, vibro com a excitação dos negócios. Isto porque a companhia da sopa Campbell está engajada numa cruzada para o consumidor global", citado do Relatório Anual de 1994 da Campbell's Soup Company. Desta vez o efeito é cômico pelo contraste absurdo entre a banalidade deprimente do escritório e as (incríveis) vibrações dos cavalheiros cruzados da sopa enlatada.

Ambas imagens fazem parte de um ensaio fotográfico publicado pela "Adbusters" -uma revista canadense que milita contra o funcionamento ordinário de nossa cultura. Os "adbusters" são os caça-propaganda, traduzindo por analogia com "ghostbusters", os caça-fantasma.
O mentor da revista, Kalle Lasn, publicou, no ano passado, um livro programático: "The Uncooling of America". Ele propõe tornar inaceitáveis, deselegantes e sem graça todas as coisas (mercadorias, marcas, estilos) que são promovidas como "cool", ou seja, na moda, "legais". Isso é o "un-cooling".

O esforço para associar publicamente a Nike com a exploração de mão-de-obra infantil na Ásia é um exemplo clássico de "uncooling". Se coloco dois caubóis no pôr-do-sol e escrevo: "Bem-vindos ao país do enfisema", também é uma forma de "uncooling".

Uma outra revista, "Stay Free!" (Mantenha-se livre!), propõe uma série de fotografias de crônica (talvez modificadas, não sei dizer) nas quais personagens desagradáveis aparecem vestindo roupa de marca. Uma simpatizante da Ku Klux Klan, ao ser presa, está de moletom Gap; um molestador de crianças vai para a cadeia com um casaco de Perry Ellis etc.

Exemplo brasileiro: "Época" publica uma fotografia do juiz Nicolau com uma bolsinha Louis Vuitton na mão. Com todo o dinheiro desviado, o homem ainda recorre a este símbolo de status emergente. Ele é patético, e Vuitton perde todo seu "cool".

Mas cuidado: os caça-propaganda não estão criticando os produtos. Nada contra uma caixa de Nabisco, uma sopa Campbell e um moletom quente da Gap numa noite de inverno.

O projeto dos caça-propaganda é mais ambicioso. Lasn considera que a propaganda das grandes corporações é o instrumento pedagógico constitutivo da subjetividade contemporânea e, por isso, o maior projeto psicológico de todos os tempos. É provável que, nas últimas décadas, no mundo inteiro, os gastos com publicidade sejam maiores do que os gastos com a educação básica. Faz sentido: adquirir e consumir é hoje o caminho pelo qual somos convidados a inventar nossas identidades. Sem isso, o neoliberalismo pára.

Ora, os caça-propaganda gostariam de forçar uma nova subjetividade, que não fosse só identificação com bens, estilos e marcas. Mas há um problema: até agora o neoliberalismo se mostrou capaz de recuperar qualquer anseio de mudança. Ser revoltado tornou-se mais um estilo, uma maneira de consumir.

A contracultura, por exemplo, se transformou num ótimo negócio. Você odeia ecologicamente a vida urbana? Vendo a você um Timberland ou um casaco North Face. Com isso, você se define como um sujeito aventuroso, natural, e lá vai besteira. Por que o projeto dos caça-propaganda não seria recuperado do mesmo jeito?

Um acontecimento inesperado me sugeriu uma perspectiva mais otimista. Nos EUA, há uma marca de roupa adotada por muitos adolescentes de classe média: Abercrombie & Fitch. São roupas envelhecidas, esfarrapadas para produzir um efeito de "não estou nem aí". A marca vende o desleixo do adolescente como estilo (para os próprios adolescentes). Um dia, meu filho Ramiro, 17, incomodado com a presença invasiva desta marca entre seus colegas de escola, criou e adotou firme uma peça de vestuário original: pegou uma camiseta branca furada (modelo "esta eu guardo só para dormir") e, com uma caneta indelével, escreveu em letras capitais, no peito: Abercrombie & Fitch.

Talvez a zombaria seja a arma eficaz da revolta futura.
P.S.: Para ler mais veja os sites: www.adbusters.org e www.stayfreemagazine.org

quinta-feira, 20 de julho de 2000

A nova revolta: responsabilidade ilimitada

Angela Davis é um ícone da militância comunista, feminista e negra dos anos 60 e 70.

Numa recente entrevista, ela declarou: "Estou impressionada com o trabalho que os jovens estão fazendo e me irrito com muitas pessoas de minha geração que se consideram veteranos de lutas passadas e que tendem a depreciar o trabalho dos jovens e contribuem para manter a imagem dos anos 60 como a única era revolucionária".

Concordo com ela. A nostalgia do ex-combatente serve para justificar cinismo e desistência.
É mais interessante olhar com respeito para a babel de revoltas e de esperanças que animaram as ruas de Seattle e de Washington, que promete muitas outras badernas pelo mundo afora.
Dos agricultores franceses ao Greenpeace, os novos revoltados têm ao menos um inimigo comum: as grandes corporações. O projeto de um novo estatuto jurídico para as corporações está no centro da pauta de vários grupos. Parece um combate reformista que não vai mudar nada, não é?

Mas, como sugere Angela Davis, não vamos desconsiderar tão rapidamente o trabalho dos jovens.

Nesses últimos dias, as produtoras americanas de tabaco foram condenadas por um júri popular a pagar indenizações punitivas de US$ 144,8 bilhões.

O júri nem se perguntou se os fumantes que adoeceram são ou não também responsáveis por suas doenças. O que importou é que as corporações sabiam que seu produto era nocivo e produzia dependência. Com isso, seguiam caladas vendendo, promovendo e lucrando.

Quando foi formulado o pedido bilionário, as companhias afirmaram que, se fossem condenadas a pagar tal montante, iriam à bancarrota. O júri não se inibiu. Ao contrário, quis condenar as companhias à morte, assim como na Flórida (onde o processo aconteceu) seria condenado à morte alguém que matasse 400 mil pessoas por ano durante 50 anos.

Claro, é provável que o apelo acabe reduzindo substancialmente o montante. Mesmo assim, a reação da Bolsa foi curiosa. As ações da Philip Morris, da R.J.Reynolds e de outras companhias caíram apenas um pouco. Os acionistas não se indignaram e não se assustaram. Como é possível?
É graças a uma lei feita justamente para que as pessoas possam ser pacifistas e comprar Raytheon ou Lockheed, ser verdes e comprar Exxon. A lei diz e garante que, enquanto investidores, nossa responsabilidade é limitada. Muito limitada.

Naturalmente, essa isenção de responsabilidade civil e penal enferruja também nossos sentimentos morais. Se não somos responsáveis legalmente, por que nos sentiríamos culpados?
De repente, como investidores, somos outros sujeitos, além do bem e do mal -alienados num mundo abstrato onde só conta o lucro.

Veja só: se você for dono de um prédio, junto com outros proprietários, e se este prédio ruir matando um transeunte, você, junto com seus sócios, será pessoalmente responsável por essa morte. Provavelmente você também se sentirá culpado, no mínimo triste.

Isso não acontece com os investimentos acionários. A Philip Morris é condenada a pagar US$ 73 bilhões aos fumantes da Flórida. Se ela for à falência, você perderá seus investimentos: seus R$ 2.000 de ações da Philip Morris (imaginemos) não valerão mais nada.

Mas -mesmo no caso em que os bens da corporação não alcancem- os fumantes e seus herdeiros não poderão exigir que seus bens (apartamento, carro, lençóis e bicicleta) sejam vendidos para pagar os danos. Com isso, torna-se fácil investir em Philip Morris sem sequer levantar a questão da responsabilidade moral.

Os fundos de ações aperfeiçoam o sistema: o pessoal investe e não precisa saber no quê. Tudo graças ao princípio da responsabilidade limitada.

Pois bem, um dos projetos da nova revolta anticorporativa americana é este: abolir a responsabilidade limitada. Quem possui ações deveria ser pessoalmente responsável pelos atos das corporações nas quais investe.

Se essa mudança do estatuto de responsabilidade do investidor viesse a acontecer, seria certamente uma catástrofe para as bolsas -uma crise econômica incontrolável.
Mas os efeitos sociais seriam interessantes. A responsabilidade limitada é uma licença para matar: hoje as corporações supõem, com razão, que os investidores só querem lucrar.
Mas, se estes fossem responsáveis civil e penalmente, as corporações se imporiam freios morais. Pois, mesmo para lucrar, não se arriscariam a fazer algo cujas consequências afugentariam os investidores.

Você pensa em comprar ações da Petrobras. Ora, um júri popular poderia decidir que a conta da poluição é mais alta do que a Petrobras pode pagar. Neste caso, os bens dos acionistas seriam leiloados para limpar as praias da baía de Guanabara ou do rio Iguaçu. Você ainda quer comprar ações da Petrobras?

Os pruridos dos investidores assustados imporiam, enfim, algum tipo de controle democrático na atividade de monstros que hoje contam com nossas vidas mais do que os governos eleitos.
Talvez Angela Davis tenha razão: esses novos revoltados são mais radicais do que parecem.

P.S.: Quer ver um projeto de novo estatuto jurídico das corporações? Veja o da Alliance for Democracy (www.afd-online.org).

quinta-feira, 13 de julho de 2000

O segredo de Harry Potter

Na sexta passada, à meia-noite, o quarto volume das aventuras de Harry Potter estava enfim solto pelo mundo. Tinha minha reserva numa livraria de Brookline -tranquila cidade residencial. Como muitas outras livrarias nos EUA, nesta ocasião a loja abriria brevemente de madrugada. Assim, meia-noite se aproximando, fui procurar meu exemplar de "Harry Potter and the Goblet of Fire" (Harry Potter e o Cálice de Fogo). Imaginava que haveria pouca gente: de regra, em Brookline o pessoal janta cedo, as crianças vão para a cama às 21h e não é raro que os adultos antecedam seus rebentos. Ficariam acordados por causa de um livro?

Surpresa: a livraria estava cheia. Por pequenos grupos que pareciam conspiradores apressando o passo na noite, o lugar ia se abarrotando. Eram centenas de pais sonolentos e felizes, trazendo crianças que, como revelavam os olhos avermelhados, haviam lutado até então contra o sono. Outras pareciam já ter dormido e chegado direto da cama: era um desfile de pijamas, camisolas e pantufas. Também havia adultos sem crianças. Atrás de mim na fila, um senhor arvorava uma cicatriz ziguezagueando na testa, como Harry Potter.

Um rapaz fantasiado de mago abria a porta e desejava boa-noite. Mas o clima não era de festa mascarada. As pessoas estavam lá para comprar o livro.

Na minha frente, duas irmãs (12 e 13 anos) acompanhadas pelo pai, ambas de camisola. Cada uma ganha um exemplar. Seria difícil convencê-las a dividir. Ambas abraçam o livro, um tijolo de 730 páginas, como se fosse um ursinho de pelúcia. Passam com delicadeza uma mão na capa, acariciando Harry ou as palavras que produzem o mundo mágico de Hogwarts. Logo começam a ler, enquanto o pai espera o cartão ser processado: a cada frase levantam o rosto, sorriem uma para a outra, apertam forte o volume, suspirando. E voltam a ler.

Os livros de J.K. Rowling são um fenômeno. No Brasil, o primeiro volume, "Harry Potter e a Pedra Filosofal", ocupa os primeiros lugares nas listas dos mais vendidos. Este quarto volume é a maior primeira tiragem da história da edição: 3,8 milhões nos EUA e 1,5 milhão na Grã-Bretanha. Entre meia-noite e 1h, a livraria de Brookline vendeu quase mil exemplares.
Uma sondagem feita pela Internet sugere que, até terça-feira, 38% dos jovens que compraram o livro no sábado já terminaram de ler as 730 páginas. Na mesma sondagem, quase 40% dos entrevistados afirmam que seus pais também lêem Harry Potter.

Não sei se Potter subirá ao firmamento da literatura juvenil como Tom Sawyer, Huckleberry Finn, Lord Fauntleroy, o Pequeno Príncipe, Dorothy do mundo de Oz e os outros. O entusiasmo geral depõe a seu favor. Pois, ao redor de todas essas figuras, leitores adultos e jovens sempre se encontraram como hoje acontece com Potter.

Desde que há literatura no sentido moderno, muitos best sellers foram livros ditos infanto-juvenis, que obviamente não eram lidos só pelos jovens. Na verdade, eram sobretudo livros nos quais uma criança ou um adolescente é o herói.

A maioria das pessoas, quando lhes perguntam quais livros foram mais marcantes em suas vidas, lembram de alguma leitura de infância. A literatura juvenil é tão importante em nossa cultura porque as histórias que ela conta repetem uma espécie de mito fundador da modernidade: um conto de criança que trata do heroísmo de crescer, se tornar independente, se afastar do amparo dos adultos, descobrir e inventar um destino diferente, autônomo. Em suma, é na literatura juvenil que aprendemos a ser modernos.

Para significar e garantir a liberdade infantil e adolescente, as crianças protagonistas -de Tom Sawyer a Tarzan, passando por Narizinho- são sempre órfãs ou quase.

Harry também é órfão. Os pais mortos por Valdemort lhe deixaram um pecúlio suficiente para não se preocupar. Do amor materno, lhe sobra uma proteção permanente contra todo sortilégio assassino. Do pai, uma lição de coragem. Assim, Harry está certo de ter sido amado, mas pode e deve crescer sozinho e livre. Os pais lhe transmitiram apenas o que é preciso, ou seja, as condições de sua autonomia.

Mas há algo mais, que faz de Potter o herói do momento. As circunstâncias levam Harry a lutar contra o malvado Valdemort. O órfão se transforma assim em vingador de seus pais e salvador do mundo. Ou seja, ele encarna um paradoxo: é livre para realizar exatamente os sonhos mais ambiciosos de seus pais. Que liberdade é essa? A contradição faz de Harry um compêndio da glória, das dores e das ilusões de nossa subjetividade contemporânea.

P.S. Livre, mas condenado a vingar os pais e a lutar contra o mal, Harry é uma espécie de Batman jovem.

Mago reprimido, criado pelos tios que odeiam a magia, Harry evoca (numa versão cômica) a triste adolescência dos X-men mutantes da Marvel Comics.

As histórias em quadrinhos (nos quais também leitores adultos e jovens se encontram) fornecem a Rowling vários elementos para atualizar o mito do órfão da literatura juvenil. Essa é mais uma explicação da popularidade de nosso herói.

quinta-feira, 6 de julho de 2000

Terapias virtuais para nossa realidade virtual

Quem não gostaria de jogar videogame para se livrar de sintomas chatos e invalidantes? Pois bem, recentemente "Veja" e "Época" assinalaram a existência de Virtually Better (Virtualmente Melhor). É uma das empresas que desenvolvem programas de realidade virtual para curar medo de avião, de altura, de tempestade, de espaços abertos e de falar em público. A sede é em Atlanta, mas há clínicas afiliadas até em Buenos Aires. Aposto que logo aparecerá uma sucursal em São Paulo.

Eis como se chegou ao uso terapêutico da realidade virtual. Há tempo existem terapias ditas de dessensibilização: os pacientes (sobretudo fóbicos) são expostos progressivamente aos objetos de seus medos, aprendendo técnicas para acalmar a angústia.

Pode-se tentar a exposição pela imaginação: feche os olhos, imagine que está subindo no avião etc. Não funciona muito bem. A exposição real é mais eficaz: paciente e terapeuta viajam no mesmo avião -quem sabe de mãos dadas, seguindo a sugestão de Belchior.

Infelizmente é um acompanhamento caro (pelo tempo que o terapeuta dedica ao paciente). E incerto: por exemplo, seria bom que o primeiro vôo fosse tranquilo, mas como garantir que não haja turbulências naquele dia?

Esses problemas são resolvidos pela realidade virtual, que comprovadamente oferece a mesma eficácia da exposição real, reduz os custos e permite o controle da experiência.

O paciente veste um capacete e, ao virar a cabeça, tem uma visão de 360 graus e som estéreo. Outros aparelhos (um colete, uma cadeira que vibra e mexe) produzem mais impressões sensoriais, aperfeiçoando a imersão no mundo virtual. O terapeuta acompanha o paciente graças a uma tela.

Sua fala ressoa de dentro do mundo virtual. Alguns eletrodos informam o terapeuta sobre o nível de estresse que a situação virtual está impondo ao paciente. Ele pode assim calibrar suas intervenções.

Por exemplo, no programa para o medo de falar em público, o terapeuta controla as reações da platéia. Dependendo do estresse do paciente, ele administra aplausos, indiferença ou vaias. Detalhe interessante: o paciente pode ensaiar dessa forma uma palestra que ele deve realmente apresentar e cujo texto aparece num teleprompter para ele ler.

Estudos pequenos, mas significativos, mostram que a terapia virtual funciona. Seus benefícios não são sempre permanentes; em compensação, é fácil repetir a dose se for necessário.

Pode-se discutir sobre a origem desta eficácia. Alguns acreditam que a melhora seja o efeito da simples repetição. É a idéia do rei Mitrídates: tomando um pouco de veneno a cada dia, a gente se tornaria imune. A meu ver, a mudança não aconteceria sem o diálogo e a confiança depositada no terapeuta.

Seja como for, se a realidade virtual pode nos ajudar a vencer ou a controlar nossos medos, é porque -como comentou um colega, Manoel Berlinck- estes são tão virtuais quanto os programas.

Que o avião caia, que sejamos aspirados no precipício, que nossa voz falhe e a platéia nos devore ou que o espaço aberto nos aniquile, esses pavores são puras virtualidades.
A lição das terapias virtuais não pára aqui. Virtually Better propõe um programa de realidade virtual para o tratamento dos transtornos pós-traumáticos dos veteranos do Vietnã. A memória e seus traumas podem ser corrigidos virtualmente do mesmo jeito que a antecipação e seus medos.

Há mais. No começo dos anos 90, uma outra técnica de realidade virtual -a realidade aumentada- deu resultados positivos com pacientes de doença de Parkinson que apresentam o seguinte paradoxo neurológico: sua marcha é imobilizada, e eles conseguem avançar só se houver obstáculos ou limiares. O caminho deles foi, portanto, obstruído por obstáculos virtuais projetados, o que lhes permitiu avançar.

Também se difunde o uso anestésico da realidade virtual. A imersão num outro mundo produz mais do que uma simples distração. Ela transporta os pacientes alhures durante a dolorosa medicação de queimaduras ou a administração de quimioterapias pesadas.
Em suma, o futuro dos programas de realidade virtual é luminoso. Sua eficácia é garantida, pois eles nos propõem experiências cuja matéria-prima é a mesma tanto de nossos medos quanto de nossas aspirações, fantasias e lembranças.

Sofremos, sonhamos e gozamos com virtualidades -ectoplasmas projetados por nossa subjetividade. São elas que nos assustam e inibem ou motivam e excitam. Não é de estranhar que a imersão em mundos virtuais eletrônicos nos afete.

P.S.: Neste sábado, chega às livrarias americanas o quarto livro de Harry Potter. É a maior primeira tiragem da história: 3,8 milhões de exemplares.

Mesmo assim, as pessoas estão com medo de ficar sem um. Fiz minha reserva e receberei meu exemplar à meia-noite de sexta.

Seguindo o princípio de marketing do livro: na coluna da próxima quinta, vou enfim dizer por que eu e alguns outros gostamos de Harry Potter. Desde já, reserve o seu exemplar da Folha nas bancas.