quarta-feira, 27 de setembro de 2000

Corre, Cathy, corre

Às oito da noite de segunda a Austrália parou. O estádio Olímpico estava lotado. As áreas de alimentação, onde sempre circulam pessoas à procura de uma cerveja ou de um peixe frito, ficaram desertas. Fora do estádio, no país inteiro, 10 milhões de australianos pararam na frente da TV para ver Cathy Freeman correr.

Em Sydney nenhuma prova era tão esperada quanto os 400 m rasos feminino. De nenhum australiano queria-se tanto que ganhasse, a ponto de que Cathy acendesse a chama olímpica, embora sua prata em Atlanta não justificasse a honra. A decisão foi contestada por alguns, certo, mas por medo que a pressão comprometesse a performance de Cathy.

Única em roupa de látex com capuz, Cathy partiu inconfundível, como uma extraterrestre ou a encarnação do espírito da terra, e correu com o estádio gritando de pé. Eu estava ao lado de crianças que não pararam um instante, como se os berros fornecessem oxigênio para ela: "Run, Cathy, run" ("Corre, Cathy, corre").

Ela correu e ganhou. Deu outra volta carregando, na mesma bandeira, cores australianas e aborígines. Impossível resistir à alegria do público que celebrava a vitória do símbolo da reconciliação.

O sonho de reconciliar a nação com seus indígenas, após 200 anos de horrores e abusos, estava presente desde a cerimônia de abertura, quando a menina loira pegou a mão do velho aborígine. Por outro lado, recentemente, o primeiro-ministro se negou a fazer um pedido de desculpas aos aborígenes pelos abusos. Problemática é a questão de eventuais compensações: por que a Austrália de hoje pagaria por pecados que não são dela? Debate-se sobre números: quantos foram massacrados? Discute-se sobre os riscos de dividir a nação e quebrar a unidade do território nacional, caso seja reconhecido um direito aborígene à autodeterminação.

A avó de Freeman foi uma criança das gerações roubadas, que foram arrancadas de seus pais para serem criadas como brancas e -pensavam os pretensamente ilustrados- salvas da barbárie. Freeman criticou repetidamente o governo federal.

Com esse passado e com seu nome que fala de liberdade, ela correu reto no meio do emaranhado mantendo as duas bandeiras juntas e, sobretudo, sentem os australianos, provando que a integração é possível -pois uma aborígene é a querida da nação.

Penso nos índios brasileiros e americanos, nas armadilhas do pós-colonialismo mais bem intencionado: é difícil atravessar esse emaranhado. A corrida de Cathy foi a felicidade de um momento de ilusão. Mas foi também a ocasião festiva de expressar uma vontade coletiva de justiça.

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