Até a semana passada, a campanha para as eleições presidenciais americanas corria tranquila. Valia a piada pela qual a síntese entre Bush e Gore é "bore" -que significa tédio.
De repente, Al Gore designou seu vice-presidente: o senador Joseph Lieberman, de Connecticut, que é judeu ortodoxo. A coisa em si não me tirou do tédio. Como muitos outros, pensei: "Ah é? Legal!". Mas logo tive de me perguntar qual foi a razão dessa escolha. Aí me preocupei.
No começo, a coisa foi apresentada como uma ousadia: pela primeira vez, exclamava-se, um judeu está a um passo da Presidência dos Estados Unidos. Mais tarde, os jornalistas lembraram que Allan Greenspan é judeu e talvez seja mais importante do que um vice-presidente. A seguir, as pesquisas de opinião verificaram que o fato de um candidato ser judeu não é muito relevante para os eleitores.
Na verdade, a escolha é uma ousadia apenas para poucos racistas -os quais, de qualquer forma, votariam na extrema direita de Pat Buchanan.
Em suma, não se trata de uma decisão ousada promovendo a aceitação da diversidade cultural. Ao contrário, a escolha é uma confissão de conformismo. Gore não escolheu seu vice por ele ser judeu, mas por ele ser um religioso praticante, o primeiro e mais virulento dos democratas em sua crítica aos pecadilhos do presidente Clinton. Por essas duas razões, o senador Lieberman encontra a aprovação até dos republicanos mais conservadores.
É engraçado: quando Clinton era candidato, já com a história de Gennifer Flowers no ar, ele escolheu Al Gore como o homem que, por sua simples presença, lhe ofereceria uma garantia moral. Agora, para se dissociar de Clinton, Gore escolhe Lieberman para a mesma função. Tipo: eu sou moral, olhe para meu vice. A esse ritmo, Lieberman, se ele for candidato depois da eventual Presidência de Gore, terá de procurar seu vice entre o papa e o Dalai Lama.
O plano democrata de governo difere substancialmente do projeto republicano -em matéria de política fiscal, de saúde pública e de previdência social. Apesar disso, Gore e sua equipe quiseram responder à tentativa republicana de tirar partido das pretensas falhas morais de Clinton. Lieberman foi escolhido para ser exibido como prova de caráter moral.
Nada contra. Afinal, por que a estatura moral não seria um bom critério para escolher governantes? O problema naturalmente é: quem mede a dita estatura, e como?
Atenção: Joseph Lieberman é provavelmente um sujeito altamente respeitável. Nos anos 60, ele foi um "cavaleiro da liberdade" -registrando eleitores negros no sul ainda segregado. Mas quem lembrou esse passado de Lieberman foi logo Clinton, o pecador. A campanha democrata preferiu uma versão em cores mais suaves.
O senador Lieberman -esta foi a mensagem- é uma garantia ética graças a seus bons costumes e por respeitar rigorosamente as formas sociais de sua religião. Para servir de exemplo moral, ele foi apresentado como um suburbano que come kosher e vai à sinagoga a cada semana. A qualidade ética conclamada não reside em alguma têmpera subjetiva forjada na complexidade da experiência. Se algo disso existe, como no caso do senador Lieberman, melhor esquecer e salientar a estética de vida pequeno-burguesa: moral é celebrar o sábado (ou domingo, que seja). Será que o vice-presidente poderia declarar a guerra no sabá se fosse preciso? -perguntam com emoção as mamães do subúrbio, correndo em suas camionetes para levar as meninas ao treino de futebol.
Em suma, a moralidade coincide com a conformidade e o farisaísmo religioso dos subúrbios. O mundo do bem é o sorriso estereotipado da Main Street de Disneylândia.
Numa total confusão entre bons costumes e estatura ética, o conformismo e a mediocridade tornam-se patamares morais.
Theodore Roosevelt, Thomas Jefferson e outros grandes americanos devem estar esperneando em suas tumbas.
Resta esperar que Gore esteja enganado e que os americanos tenham uma visão mais complexa daquilo que os políticos parecem supor que seja ético. Afinal, os eleitores em 1998 não se deixaram convencer pela hipocrisia moralista e, apesar da enorme campanha contra Clinton, o pecador, mandaram muitos novos representantes democratas para o Congresso.
Dizem que, para ser eleito, Gore deveria compartilhar com Clinton o mérito dos excelentes resultados da Presidência, mas se distanciar da sombra moral que o presidente projeta. Pois Clinton, acrescentam, foi um presidente de sucesso, mas houve o problema Lewinski e outros.
Ora, Clinton foi um grande presidente não apesar de, mas por causa de suas notórias fraquezas. É por ele ser capaz de errar, se arrepender e errar de novo que ele pode reconhecer alguma complexidade em si mesmo (e, portanto, nos outros). Sem essa capacidade, não há nenhuma experiência moral verdadeira.
Cruzo os dedos para que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha ao menos a mesma estatura ética de Bill Clinton. À primeira vista, há pouca chance.
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