quinta-feira, 28 de setembro de 2000
A seleção não jogou mal; ela é ruim
Então, se entendi bem, os jogadores da seleção de futebol foram mal escolhidos. Ou, se foram escolhidos direito, renderam muito menos do que era normal esperar. Também foram e seguem sendo paparicados, com hotéis de luxo e salários muito altos. Ou, então, o astral negativo do técnico influenciou todo mundo.
A saída precoce foi uma vergonha, um vexame, uma humilhação. Essas palavras apareceram ontem na imprensa. São expressões estranhas em Sydney, onde a imprensa e a torcida reconhecem e elogiam seus atletas derrotados.
Não somos menos generosos do que os australianos. É que parecemos não ter a menor dúvida de que, no futebol, o Brasil é o melhor. Portanto, perdendo, os jogadores nos humilham, desmentem nossa essência. Além disso, como só podem ser os melhores de todos, se perdem, é por safadeza.
Luxemburgo declarou: "Tivemos todas as chances do mundo para chegar à semifinal, mas jogamos mal". É uma frase engraçada, pois cada time tinha (e alguns ainda têm) todas as chances de chegar até a medalha de ouro.
Ele quis dizer que o Brasil era time forte para chegar à semifinal sem problemas, mas jogou mal.
Jogar mal é sempre apresentado como um acidente. Somos os melhores, mas às vezes (muitas vezes, ultimamente) jogamos mal.
Vi tenistas, depois de errar um golpe, olhar para a raquete procurando algum desajuste das cordas que explicasse o erro. Pois bem, a seleção joga mal, e todos -jogadores, técnicos, torcedores- olhamos para as chuteiras. Será que quebrou uma trava?
Pergunto: quantas vezes a seleção vai ter que jogar mal para que a gente comece a reconhecer que ela é ruim mesmo? E, mais difícil ainda, para que aceitemos a idéia de que a ruindade talvez não seja o resultado de escolhas erradas, mas o reflexo de um futebol que não é mais o rei dos gramados?
Decidimos que o futebol é um gene brasileiro. Até que essa crença mude, vai ser difícil melhorar.
Às vezes, famílias brasileiras com filhos adolescentes emigram para os EUA. Os filhos, que jogaram dez várzeas na vida, descem do avião com a idéia de que vão arrebentar na bola. Chegam em sua nova escola anunciando que são brasileiros como se fosse a mesma coisa do que campeão mundial júnior. Se não forem selecionados na hora para o time, o técnico é burro e americano não entende nada de futebol. Em geral, esses jovens passam para outro esporte, o que não constitui uma perda para o futebol nacional ou americano. Moral da história: para melhorar, é bom reconhecer que a gente é ruim.
Que tal comprar alguns jogadores africanos, para ver se anima o futebol nacional?
quarta-feira, 27 de setembro de 2000
Corre, Cathy, corre
Em Sydney nenhuma prova era tão esperada quanto os 400 m rasos feminino. De nenhum australiano queria-se tanto que ganhasse, a ponto de que Cathy acendesse a chama olímpica, embora sua prata em Atlanta não justificasse a honra. A decisão foi contestada por alguns, certo, mas por medo que a pressão comprometesse a performance de Cathy.
Única em roupa de látex com capuz, Cathy partiu inconfundível, como uma extraterrestre ou a encarnação do espírito da terra, e correu com o estádio gritando de pé. Eu estava ao lado de crianças que não pararam um instante, como se os berros fornecessem oxigênio para ela: "Run, Cathy, run" ("Corre, Cathy, corre").
Ela correu e ganhou. Deu outra volta carregando, na mesma bandeira, cores australianas e aborígines. Impossível resistir à alegria do público que celebrava a vitória do símbolo da reconciliação.
O sonho de reconciliar a nação com seus indígenas, após 200 anos de horrores e abusos, estava presente desde a cerimônia de abertura, quando a menina loira pegou a mão do velho aborígine. Por outro lado, recentemente, o primeiro-ministro se negou a fazer um pedido de desculpas aos aborígenes pelos abusos. Problemática é a questão de eventuais compensações: por que a Austrália de hoje pagaria por pecados que não são dela? Debate-se sobre números: quantos foram massacrados? Discute-se sobre os riscos de dividir a nação e quebrar a unidade do território nacional, caso seja reconhecido um direito aborígene à autodeterminação.
A avó de Freeman foi uma criança das gerações roubadas, que foram arrancadas de seus pais para serem criadas como brancas e -pensavam os pretensamente ilustrados- salvas da barbárie. Freeman criticou repetidamente o governo federal.
Com esse passado e com seu nome que fala de liberdade, ela correu reto no meio do emaranhado mantendo as duas bandeiras juntas e, sobretudo, sentem os australianos, provando que a integração é possível -pois uma aborígene é a querida da nação.
Penso nos índios brasileiros e americanos, nas armadilhas do pós-colonialismo mais bem intencionado: é difícil atravessar esse emaranhado. A corrida de Cathy foi a felicidade de um momento de ilusão. Mas foi também a ocasião festiva de expressar uma vontade coletiva de justiça.
terça-feira, 26 de setembro de 2000
O país do vôlei
A dupla masculina de vôlei de praia joga a final. A equipe feminina está qualificada no primeiro lugar no grupo, como a masculina. O Brasil pode ter medalhas em cada especialidade do vôlei.
Estaríamos passando de país do futebol para do vôlei? De fato, seria agradável ser o país de um esporte no qual a gente ganha. Entre Atlanta e Barcelona, já há tradição suficiente para a mudança.
O estereótipo de paraíso tropical de sol e praias comporia a vinheta do país do vôlei na areia. Pelos cartões postais já parece que passamos na praia o tempo todo, seria só praticar um pouquinho: vai sair natural, como as peladas.
Além disso, o vôlei é um bom esporte para o Brasil, fácil de ser praticado nas escolas. Prosperou com o carinho dos torcedores e a dedicação de duas gerações de jogadores e jogadoras. E também graças à tranquilidade de poder jogar sem que, a cada derrota eventual, o Corcovado ameaçasse ruir. Por isso mesmo espero que a passagem do país do futebol à terra do vôlei não aconteça tão cedo.
Domingo de manhã, na praia de Coogee, um grupo de australianos organizava uma pelada. Estava sentado na mureta, vestindo uma camiseta da torcida brasileira. Vêm perguntar: "Brazilian?" e querem que eu jogue. Acham que recuso só por me sentir superior. Mal podem imaginar que toquei em minha primeira bola de futebol aos 16 anos, num colégio do arcebispado de Milão.
Não adianta: apesar da eliminação da seleção, brasileiro para eles segue significando bom de bola. Ainda ontem, um simpático motorista de táxi (e mal informado) não acreditava de jeito nenhum que a seleção brasileira estava voltando para casa.
Escrevi ontem que, se pararmos de pensar que somos por natureza o país do futebol, talvez seja possível treinar e jogar melhor.
Agora, todos conhecem a história do rapaz um pouco desmiolado que um belo dia parou de acreditar que ele era um grão de milho. Foi liberado e ia para casa. De repente volta ao hospital: "Eu sei que não sou um grão de milho, mas vocês informaram às galinhas?". Acontece também com o futebol: os outros acreditam em nosso delírio de grandeza.
Será que daqui a pouco, em qualquer praia do mundo, se formos identificados como brasileiros e convidados para um jogo de vôlei, vamos ter que lidar com a expectativa que um mestre enfim entrou em campo -tipo: vamos ver do que ele é capaz?
sábado, 23 de setembro de 2000
A "Tosca" e os toscos
O programa é uma declaração que diria: "Sydney está orgulhosa de ser a sede da Olimpíada, mas a cidade não é só isso. A paixão pelo esporte é apenas uma faceta. Gostamos de outras coisas também, com toda a complexidade pós-moderna: mesmo respeito para a alta cultura, o folclore, o pop etc.".
Como o edifício da Ópera é (merecidamente) o símbolo da cidade, escolhemos assistir a uma representação da "Tosca" (que foi ótima). No máximo 30% do público era olímpico: delegações ou turistas em Sydney para os Jogos. Os demais eram habitués: pessoas de classe média (regra na Austrália) apreciando a arte lírica ou se convencendo de seu interesse pela ópera. À primeira vista, parecia o tipo de público que se encontra na Sala São Paulo ou no Cultura Artística para um bom concerto.
Ora, antes que o espetáculo começasse e nos dois intervalos entre os atos, as pessoas se reuniam no foyer na frente de duas televisões -cuja presença neste lugar era inesperada. Assistiam a fragmentos das provas de natação daquela noite, torcendo e festejando (ou lamentando) os resultados. Ao tocar da música que assinalava a hora de regressar aos assentos, todos voltavam felizes para o triste destino de Mário Cavaradossi e Tosca.
Pergunta: se houvesse uma Olimpíada em São Paulo, você acha que o público do Cultura Artística pediria TVs no foyer para torcer nos intervalos? Aposto que não. Claro, a maioria provavelmente seria bem feliz com essa possibilidade, mas quase todos achariam inaceitável misturar seu gosto pela alta cultura com um interesse para o esporte. O mesmo aconteceria na Europa e, em menor medida, nos EUA. A razão dessa autocensura não seria estética, mas social e política.
A cultura é um excelente instrumento de separação entre as classes. Para que funcione assim, naturalmente é necessário que o pessoal de baixo seja mantido afastado da alta cultura (o que é simples: basta complicar o acesso à educação e manter inacessíveis os preços dos eventos). Mas para tal fim também é útil manter a ficção de um gosto de elite que desprezaria, por exemplo, a vil paixão pelo esporte. A "Tosca" é nossa e quem gosta de esporte é tosco -não vamos confundir.
Um público de amadores de ópera que, nos intervalos, gosta e não tem vergonha de torcer na frente da TV é índice de uma maturidade democrática fora de série. A Austrália aparentemente é uma sociedade onde abrir e manter a diferença social não é uma preocupação dominante.
sexta-feira, 22 de setembro de 2000
O que faz correr Marie-José Perec?
A versão oficial diz que Marie-José fugiu da Austrália porque foi ameaçada por um desconhecido em seu hotel. Os jornais insinuam que ela escapou por saber que não estava em forma. Faz sentido: Marie-José foi campeã em Barcelona e em Atlanta. Logo ela sumiu, deixando que Freeman corresse sozinha e ganhasse os Mundiais de 97 e 99. Reapareceu em julho e se qualificou para a Olimpíada com um tempo medíocre. Desde então, inscreveu-se em várias competições, mas nunca compareceu. Em Sydney, ficou escondida fora da Vila Olímpica.
Não sei o que há com Marie-José. No mínimo, sofre com a exigência louca de se mostrar à altura de um passado que a define, mas que ela não consegue repetir. É possível que não seja só isso.
Marie-José nasceu na cidade de Basse Terre, em Guadalupe. Por mais que essa Antilha seja território francês, é difícil acreditar que os antepassados de Marie-José (que é mulata) sejam gauleses.
Agora, cada evento olímpico começa com a apresentação dos atletas que competem. O nome é seguido de "representando..." e lá vai o nome da nação.
Será que cada atleta representa mesmo a nação pela qual está concorrendo? E se ele não se sentir assim? Que tipo de experiência é essa de orientar sua vida toda, durante anos, para uma competição onde se tratará de dar o melhor de si -representando uma coletividade da qual o atleta, no fundo, acha que não faz parte?
Há circunstâncias que ajudam a enlouquecer, como a falta de uma possível resposta clara quando se é confrontado com questões cruciais sobre sua identidade.
Alguns militantes da causa aborígene não queriam que Cathy Freeman corresse: por que dar prestígio para a Austrália opressora? Outros queriam que ela corresse protestando. Os australianos querem que ela encarne o novo multiculturalismo. Pressionada para declarar se ela corria para seu povo ou para a Austrália, Cathy respondeu habilmente: "Corro para mim mesma. Se ganhar, ficarei muito feliz. Estou certa de que muitas pessoas sentirão essa mesma felicidade". Ou seja, festeje quem puder.
Ao que parece, Cathy Freeman tem uma saúde (psíquica) de ferro. Com isso ela distancia seus entrevistadores. Marie-José, desta vez, talvez não tenha conseguido correr mais rápido do que a pergunta inevitável numa Olimpíada: você representa quem?
quinta-feira, 21 de setembro de 2000
Se é proibido perder, jogar fica difícil
Anteontem, a seleção feminina de futebol ganhou da Austrália, mas no sufoco: 2 a 1 de virada e com um gol australiano anulado (por milagre).
Mesmo assim, na saída do estádio, um torcedor brasileiro enrolado numa enorme bandeira interrompe a conversa com um grupo de australianos, exclamando: "Vocês ainda têm tudo o que aprender sobre futebol!". Subentendido: aprender com a gente.
Antes, na arquibancada, dois australianos param um brasileiro de camiseta da seleção. Perguntam: "Brazil?". O torcedor confirma e logo convida seus interlocutores a contar as quatro estrelinhas azuis, "quatro vezes campeão do mundo", ele explica. Em suma, esse esporte é nosso.
Por isso mesmo, estou achando que, para nossas seleções de futebol, masculina e feminina, vai ser cada vez mais difícil jogar bem e ganhar.
Isso independentemente dos técnicos e da qualidade dos jogadores. Por quê?
Existe um nível de expectativa que é nocivo para os atletas. E é bem possível que, em matéria de futebol, a gente já o tenha atingido. Um exemplo. Todos os atletas australianos estão sob pressão: os olhos do mundo estão virados para cá, e o país pede medalhas. Mas, acima de tudo, sonhava-se com a abertura da Olimpíada.
A primeira prova era o triatlo feminino -um evento-espetáculo bem no meio do cartão postal de Sydney.
Esperava-se uma apoteose logo no início. Havia de fato uma chance de que as australianas ganhassem as três medalhas. Para isso se preparavam. Isso estava sendo antecipado. Ora, Loretta Harrop, favorita, chegou em quinto lugar.
Michelle Jones perdeu o ouro logo no sprint e ficou com a única medalha australiana.
Eis uma das dificuldades cruciais em psicologia do esporte. Por um lado, o atleta precisa de um alto nível de motivação (aqui as expectativas do público e, no caso, do país ajudam). Por outro, como já Freud tinha reparado, o excesso de investimento pode produzir uma inibição irresistível. Nada de muito patológico nisso. Reagimos todos assim: quando queremos alguma coisa em demasia, na nossa cabeça, ela se confunde com todas as coisas que quisemos muito e que nos foram proibidas.
Em consequência, fracassamos.
Ora, em matéria de futebol, parece que ganhar se tornou uma condição "sine qua non" da identidade nacional brasileira. Perder é crime de alta traição.
Com isso, vai ficar difícil jogar -não só nesta Olimpíada.
terça-feira, 19 de setembro de 2000
Torcida brasileira
As brasileiras lideravam por 2 sets a 0 e 21 a 12 no terceiro, quando a torcida inventou: "Easy, easy, easy/oi, oi, oi!". "Easy" soa perto de "ozie" e significa "fácil". Escutando essa gozação, que dizia "Fácil, fácil, fácil /oi, oi ,oi..", a torcida australiana emudeceu. Enfim, a seleção jogou muito bem, ganhou (fácil) e promete.
Tomado pelo entusiasmo dos 500 torcedores, gritei, pulei e, no fim do jogo, fiquei no saguão para uma festa improvisada. Voltando para o hotel, resmungava desconfianças das emoções torcedoras.
A Olimpíada de Sydney pediu que a ONU decretasse a trégua olímpica e exigisse paz entre as nações durante os Jogos. Seria a ocasião de mostrar que desacordos e conflitos podem ser resolvidos no fair play do esporte.
Em vez de se armar para guerra, contentem-se com torcer. Argentina e Reino Unido poderiam ter decidido o futuro das Malvinas em três jogos de futebol. Quem ganha, leva. Pena que a coisa não funcionou em Berlim-36. Hitler poderia ter visto em Jesse Owens a superioridade dos negros e, assim, teria desistido da guerra e de sua política racial.
Em suma, torcer seria bom: uma maneira de evitar guerras.
É possível pensar o contrário. Ou seja, que a torcida não é uma catarse dos nacionalismos belicosos. Ao contrário, seria seu caldo de cultura. Quem pensa assim, nota também que a torcida nacional, fomentando a rivalidade entre nações, garante de fato a paz social. Quem se desespera ou exulta com a nação, esquece que ela é dividida, apaga as iniquidades sociais das quais ele é vítima.
Os excluídos podem torcer para um país que os ignora. A idéia seria: torcer evita a consciência dos conflitos sociais pela invenção de antagonismos nacionais.
Numa linha parecida, há as pesquisas de um tal Robert Cialdini, da Universidade de Arizona, para dizer que o torcedor é um fraco, que tenta obter respeito não por suas próprias façanhas, mas por conexão com sua seleção.
Mas as teorias nem sempre se aplicam. Esta noite a torcida brasileira não treinava sentimentos belicosos -a festa final incluiu na dança e no canto os torcedores australianos. Também não acho que o orgulho ocultasse as feridas sociais da nação no espírito da torcida. Ainda menos o torcedor brasileiro, que torce, em geral, na esperança de crescer graças à grandeza do país. Ele torce muito mais na esperança de que o país consiga, enfim, crescer.
segunda-feira, 18 de setembro de 2000
"Mate", amigo e irmão
São conversas de homem a homem, frequentes sobretudo na sexta e no sábado, quando um par de cervejas solta as línguas. Nessas investidas cordiais, eles nos chamam sempre de "mate".
"Mate" significa companheiro, amigo do peito: é o apelido dos homens australianos entre si. O termo tem sentido forte quando reivindica a importância de uma relação: "Farei qualquer coisa para ele, ele é meu "mate'". Mas parece também fraco por ser usado para se dirigir a estranhos: ""Mate", sabe onde está a rua tal?".
No Brasil há termos parecidos: "amigo", em São Paulo, e "irmão", no Rio, são usados, mas com menos frequência. Uso forte: "Fulano é um irmão para mim". Uso fraco: "Amigo, traz uma aguinha para a gente". O paralelo revela uma diferença. Os australianos chamam todos de "mate", e essa intimidade pressupõe a idéia de uma sociedade de iguais, onde todos são "mates". No Brasil, o mesmo uso é condescendente: chamamos o guardador de carros de amigo. A recíproca é inesperada e ameaçadora.
Há razões históricas para isso. A Austrália nasceu, pouco mais de 200 anos atrás, do projeto de transformar um continente inteiro em colônia penal. A Inglaterra do fim do século 18 não sabia o que fazer com seus criminosos -melhor dito, com seus pobres.
Os miseráveis da Revolução Industrial não eram bonitos de se ver na rua. Surgiu a idéia de levá-los para a praia australiana. Se morressem, não seria uma grande perda. Se conseguissem sobreviver, seria mais uma colônia para o império. Entende-se por que os australianos se consideram companheiros de naufrágio. Inventaram uma sociedade horizontal onde um dos passatempos consiste, como eles se expressam, em cortar as papoulas que crescem mais do que as outras.
No Brasil, a história é outra: a escravatura introduziu uma desigualdade da qual mal conseguimos sair. O privilégio pode ser detestado, mas é também invejável.
Enfim, para chegar a conviver como pares, precisaríamos levantar o peso do passado e tirá-lo de nossa frente. Deve ser por isso que hoje fui assistir à prova de levantamento de peso feminino (categoria 48 kg), na qual concorria Maria Elizabete Jorge. Nossa atleta se classificou em décimo -era o que ela esperava. Depois do último arremesso, despediu-se do público sorrindo e abanando. Deu entrevista confirmando sua vontade de continuar levantando peso. Ótimo, pois ainda há bastante entulhos no nosso caminho e precisamos de muitas Elizabetes.
quinta-feira, 31 de agosto de 2000
Por que Orfeu fica no morro
Eu fiquei sentado, deixando passar os créditos finais, comovido pela intensidade dos últimos minutos, quando todos gritam, apitam e choram a morte de Orfeu. Compartilhava a sensação de uma perda irreparável, que não poderíamos deixar acontecer. Perda de quê?
Na tarde do mesmo dia, assistira a um documentário da série "Seis Histórias Brasileiras", que o GNT transmitiu duas semanas atrás. Era "Um Dia Qualquer", de Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe. Ficava vívida em mim a lembrança de Apolônio, vendedor de abacaxis na praia de Copacabana, e de suas palavras surpreendentes -sobre o que é ser negro, sobre seu corpo ou sobre a mulher brasileira.
Ora, no filme de Cacá Diegues, alguém pergunta a Orfeu por que ele não aproveita seu sucesso para ir embora do morro. Orfeu não responde e, naturalmente, fica. Ele poderia dizer, imagino, que o morro é o mundo do qual ele quer ser a voz. Apesar do tráfico de drogas e das balas achadas e perdidas, o morro (ou redutos análogos: favela, cortiço etc.) é seu lugar, porque aí moram os Apolônios.
Essa resposta (imaginária) de Orfeu não nos estranharia. Estamos acostumados a supor que tanto a alegria de viver quanto a capacidade de chorar, assim como todas as qualidades autenticamente humanas, habitam o morro, a favela ou a maloca rural batida pela seca.
É um traço bem estabelecido de nossa cultura: como o status social é decidido numa corrida, inventamos prêmios de consolação para os derrotados. Quer seja um acesso mais fácil ao paraíso depois da morte, quer seja um privilégio poético. Assim, revisando nossos extratos bancários, nos extasiamos: "Oh! admirável simplicidade do pescador, do camponês e do miserável".
Claro, é uma armadilha ideológica: "Eu te exploro até o osso, mas em troca disso eu admiro e invejo tua fome e tua miséria, porque és mais humano e mais verdadeiro".
Mas cuidado: nessa vinheta, que parece feita só para aliviar a culpa dos tubarões, talvez haja mesmo alguma verdade. É a melhor maneira de ocultar algo: dizer a verdade de tal forma que todos pensem que se trata de uma mentira. Então qual é a verdade?
Lembra a história do mestre e do escravo? Hegel imaginava que o escravo, trabalhando, acabaria sendo o único a saber lidar com o mundo, fabricar as coisas, tirar leite da vaca, plantar feijão e trocar o óleo do carro. O mestre ficaria se coçando e, no fim, incompetente, dependeria totalmente do escravo. Aí a relação de forças se inverteria.
As coisas não funcionaram assim. Sobretudo porque o mestre não ficou ocioso: ao contrário, ele se especializou nas tarefas mais rentáveis e consolidou seu poder. Ele não está cansado nem se tornou incompetente.
Ora, apesar disso, talvez o escravo tenha mesmo ficado com algo relevante que o mestre perdeu. De uma certa forma, ele ficou com a vida concreta. É na cultura dos pobres, dos deserdados, que importa rir, chorar, amar, odiar, enfim, ser alegre e ser triste. A cultura dos mestres é cada vez mais abstrata por (e para) se resumir na sede de lucro e no esbanjamento que decide o status.
Os mestres não têm tempo para se deter em questões, diferenças e, eles diriam, em detalhes concretos. Eles precisam de abstração para justificar as equivalências entre coisas, pessoas e valores que permitem o bom funcionamento do mercado e da produção.
Deve ser por isso que Orfeu permanece no morro. Por isso que as palavras de Apolônio são permeadas de uma extraordinária sabedoria prática. Porque a vida concreta ficou com os derrotados.
Por essa razão, sempre desconfio das formas de "progresso" social que prometem apenas a entrada dos excluídos no mundo e na cultura dos mestres.
Pense bem. O que seriam os Estados Unidos, por exemplo, se seus derrotados fossem todos perfeitamente integrados? Claro, cidades com menos drogas, facadas, assaltos -e onde todos terminam o colégio. Mas seriam também o vasto e irrespirável subúrbio de uma classe média mesquinha e conformista.
E o que seria o Brasil sem seus excluídos? Foi a idéia dessa perda que me deixou comovido no fim do filme de Cacá Diegues. Você pode perguntar: "Como assim? Seria uma perda se não houvesse mais excluídos?".
Explico-me. Seria um desastre se Orfeu e Apolônio morressem de bala ou de fome, exterminados pela opressão. Mas seria um desastre também se eles simplesmente ganhassem em alguma loteria e se instalassem na Vieira Souto ou nos Jardins, confundindo-se com os indígenas. Pois, se isso acontecesse, nossa sociedade não seria mais nada, apenas uma selva de Lalaus (mais ou menos bem-sucedidos).
P.S.: No domingo dia 20, a estréia americana de "Orfeu" foi precedida por um longo e bonito artigo de Caetano no "The New York Times". É possível, e vale a pena, lê-lo (em inglês) procurando no site www.nytimes.com.
Por que Orfeu fica no morro
Eu fiquei sentado, deixando passar os créditos finais, comovido pela intensidade dos últimos minutos, quando todos gritam, apitam e choram a morte de Orfeu. Compartilhava a sensação de uma perda irreparável, que não poderíamos deixar acontecer. Perda de quê?
Na tarde do mesmo dia, assistira a um documentário da série "Seis Histórias Brasileiras", que o GNT transmitiu duas semanas atrás. Era "Um Dia Qualquer", de Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe. Ficava vívida em mim a lembrança de Apolônio, vendedor de abacaxis na praia de Copacabana, e de suas palavras surpreendentes -sobre o que é ser negro, sobre seu corpo ou sobre a mulher brasileira.
Ora, no filme de Cacá Diegues, alguém pergunta a Orfeu por que ele não aproveita seu sucesso para ir embora do morro. Orfeu não responde e, naturalmente, fica. Ele poderia dizer, imagino, que o morro é o mundo do qual ele quer ser a voz. Apesar do tráfico de drogas e das balas achadas e perdidas, o morro (ou redutos análogos: favela, cortiço etc.) é seu lugar, porque aí moram os Apolônios.
Essa resposta (imaginária) de Orfeu não nos estranharia. Estamos acostumados a supor que tanto a alegria de viver quanto a capacidade de chorar, assim como todas as qualidades autenticamente humanas, habitam o morro, a favela ou a maloca rural batida pela seca.
É um traço bem estabelecido de nossa cultura: como o status social é decidido numa corrida, inventamos prêmios de consolação para os derrotados. Quer seja um acesso mais fácil ao paraíso depois da morte, quer seja um privilégio poético. Assim, revisando nossos extratos bancários, nos extasiamos: "Oh! admirável simplicidade do pescador, do camponês e do miserável".
Claro, é uma armadilha ideológica: "Eu te exploro até o osso, mas em troca disso eu admiro e invejo tua fome e tua miséria, porque és mais humano e mais verdadeiro".
Mas cuidado: nessa vinheta, que parece feita só para aliviar a culpa dos tubarões, talvez haja mesmo alguma verdade. É a melhor maneira de ocultar algo: dizer a verdade de tal forma que todos pensem que se trata de uma mentira. Então qual é a verdade?
Lembra a história do mestre e do escravo? Hegel imaginava que o escravo, trabalhando, acabaria sendo o único a saber lidar com o mundo, fabricar as coisas, tirar leite da vaca, plantar feijão e trocar o óleo do carro. O mestre ficaria se coçando e, no fim, incompetente, dependeria totalmente do escravo. Aí a relação de forças se inverteria.
As coisas não funcionaram assim. Sobretudo porque o mestre não ficou ocioso: ao contrário, ele se especializou nas tarefas mais rentáveis e consolidou seu poder. Ele não está cansado nem se tornou incompetente.
Ora, apesar disso, talvez o escravo tenha mesmo ficado com algo relevante que o mestre perdeu. De uma certa forma, ele ficou com a vida concreta. É na cultura dos pobres, dos deserdados, que importa rir, chorar, amar, odiar, enfim, ser alegre e ser triste. A cultura dos mestres é cada vez mais abstrata por (e para) se resumir na sede de lucro e no esbanjamento que decide o status.
Os mestres não têm tempo para se deter em questões, diferenças e, eles diriam, em detalhes concretos. Eles precisam de abstração para justificar as equivalências entre coisas, pessoas e valores que permitem o bom funcionamento do mercado e da produção.
Deve ser por isso que Orfeu permanece no morro. Por isso que as palavras de Apolônio são permeadas de uma extraordinária sabedoria prática. Porque a vida concreta ficou com os derrotados.
Por essa razão, sempre desconfio das formas de "progresso" social que prometem apenas a entrada dos excluídos no mundo e na cultura dos mestres.
Pense bem. O que seriam os Estados Unidos, por exemplo, se seus derrotados fossem todos perfeitamente integrados? Claro, cidades com menos drogas, facadas, assaltos -e onde todos terminam o colégio. Mas seriam também o vasto e irrespirável subúrbio de uma classe média mesquinha e conformista.
E o que seria o Brasil sem seus excluídos? Foi a idéia dessa perda que me deixou comovido no fim do filme de Cacá Diegues. Você pode perguntar: "Como assim? Seria uma perda se não houvesse mais excluídos?".
Explico-me. Seria um desastre se Orfeu e Apolônio morressem de bala ou de fome, exterminados pela opressão. Mas seria um desastre também se eles simplesmente ganhassem em alguma loteria e se instalassem na Vieira Souto ou nos Jardins, confundindo-se com os indígenas. Pois, se isso acontecesse, nossa sociedade não seria mais nada, apenas uma selva de Lalaus (mais ou menos bem-sucedidos).
P.S.: No domingo dia 20, a estréia americana de "Orfeu" foi precedida por um longo e bonito artigo de Caetano no "The New York Times". É possível, e vale a pena, lê-lo (em inglês) procurando no site www.nytimes.com.
quinta-feira, 24 de agosto de 2000
O submarino russo: mortes inúteis
Nos primeiros dias, a história parecia ser apenas mais um exemplo patético da decadência russa. Nos jornais, na rua, na Internet, nos táxis, onde quer que houvesse conversa, todos falavam disso: a tecnologia da ex-URSS é sucata. Na verdade -muitos acrescentavam- sempre foi sucata.
Só o Ocidente não sabia. O Kursk devia ser uma lata de conserva disfarçada: talvez fosse esse o segredo que os russos queriam tanto esconder. Falava-se também dos efeitos infelizes dos orgulhos nacionais mal colocados. A indignação com o governo russo era grande: por que não pedem ajuda? Para não confessar suas dificuldades? Ou para não mostrar ao mundo sabe Deus qual arma secreta e estapafúrdia -escondida no ventre do Kursk? Pudores irrisórios e segredos de polichinelo.
Mas rapidamente essas conversas definharam. Foram substituídas por uma grande pena e por uma torcida mundial para que não estivessem todos mortos. De resto trágico da Guerra Fria e de suas mentiras, o Kursk parecia se transformar em símbolo de algo maior, algo que nos concerniria a todos -Guerra Fria ou não.
Um jornal de Murmansk começou a publicar pequenos necrológios dos marinheiros, feitos de últimas cartas aos pais, lembranças de amigos e parentes etc. Alguns jornais europeus traduziram. Era uma espécie de cemitério de homens comuns, uma nova "Antologia de Spoon River", o poema dos mortos quaisquer. Alguns pareciam até orgulhosos de estar na Marinha, mas ninguém, nem na lembrança depois de morto, recorria ao tipo de retórica belicosa que poderia dar sentido à sua morte e à de seus companheiros.
Nessa altura, comecei a ser perseguido pelas letras de uma música. Aconteceu assim: li uma notícia sem interesse sobre os Beatles (o que sobra deles) e houve uma espécie de curto-circuito. Sem querer, passeando pelas ruas na sexta-feira, comecei a cantarolar, na melodia de "Yellow Submarine": "We all live in a russian submarine, russian submariiiiine" (Vivemos todos num submarino russo, submarino russo).
Com isso, a visão já insistente do submarino pousado no fundo do mar ficou mais lúgubre ainda: o ritmo me parecia vir de lá, como se os sobreviventes no escuro batessem contra a parede metálica ao ritmo da música e cantassem num coro de baixos. Oniricamente, eles pareciam nos chamar.
Como a música não me deixava tranquilo, decidi levá-la a sério. Respeitando meu automatismo mental, disse para mim mesmo: está bem, acredito, somos todos marinheiros do Kursk, mas por quê? Quem sabe respondendo eu conseguisse entender como o destino do submarino russo conquistou a imaginação popular do mundo inteiro.
O fato é que este gigantesco tubo inerte, mistura de vibrador quebrado com sarcófago, parece resumir nossa relação com a tecnologia. O avanço tecnológico é a melhor expressão de nossa potência, uma espécie de gloriosa ereção fálica. Olhe só, vamos à Lua, circulamos de naveta espacial, viajamos de supersônico, conseguimos energia atômica limpa e barata etc. Somos poderosos.
Acontece que esse falo tecnológico se transforma facilmente numa tumba. É o Concorde caindo ou a naveta espacial explodindo. O vôo TWA 800 ou então Tchernobil.
Tempo atrás, alguém diria que essas são as vítimas cobradas pelo progresso. Mas ainda há quem pense que o progresso é um valor?
Inventamos a morte inútil. É diferente da morte acidental, produzida por um relâmpago, um terremoto, uma bala perdida ou mesmo a raiva de um assaltante. Diferente, porque nos vários submarinos nucleares da vida embarcamos orgulhosa e voluntariamente. A morte inútil também se distingue da morte justificada por uma causa mais ou menos nobre. Paradoxalmente, ela não é acidental e não tem causa final.
Morremos de morte inútil quando morremos como consequência do funcionamento de nossa potência. Sem outros fins.
Entendo que as autoridades russas gostem da idéia de que o Kursk tenha afundado depois de uma colisão com um submarino americano ou britânico. Na verdade, todos preferiríamos que assim fosse. Esse restinho de Guerra Fria nos permitiria pensar no Kursk como um túmulo de bravos que morreram para defender a pátria, a honra ou coisa análoga. Seriam mortes por causa nobre.
Ora, o Kursk é sobretudo um túmulo para as razões que durante anos deram sentido à morte e que hoje estão faltando no mercado.
Não há porque se queixar da diminuição dos motivos para sacrifícios supremos. Mas isso nos deixa com um fenômeno novo: mortes estranhas, consequências de exercícios abstratos de potência tecnológica que não alveja mais nem a guerra nem a defesa nem a conquista.
Engraçado, décadas atrás uma geração lançou ao mar um psicodélico submarino amarelo também para lutar contra essa paixão tecnológica abstrata. Pena que não tenha chegado a tempo ao mar de Barents.
quinta-feira, 17 de agosto de 2000
Saudade de Bill Clinton
De repente, Al Gore designou seu vice-presidente: o senador Joseph Lieberman, de Connecticut, que é judeu ortodoxo. A coisa em si não me tirou do tédio. Como muitos outros, pensei: "Ah é? Legal!". Mas logo tive de me perguntar qual foi a razão dessa escolha. Aí me preocupei.
No começo, a coisa foi apresentada como uma ousadia: pela primeira vez, exclamava-se, um judeu está a um passo da Presidência dos Estados Unidos. Mais tarde, os jornalistas lembraram que Allan Greenspan é judeu e talvez seja mais importante do que um vice-presidente. A seguir, as pesquisas de opinião verificaram que o fato de um candidato ser judeu não é muito relevante para os eleitores.
Na verdade, a escolha é uma ousadia apenas para poucos racistas -os quais, de qualquer forma, votariam na extrema direita de Pat Buchanan.
Em suma, não se trata de uma decisão ousada promovendo a aceitação da diversidade cultural. Ao contrário, a escolha é uma confissão de conformismo. Gore não escolheu seu vice por ele ser judeu, mas por ele ser um religioso praticante, o primeiro e mais virulento dos democratas em sua crítica aos pecadilhos do presidente Clinton. Por essas duas razões, o senador Lieberman encontra a aprovação até dos republicanos mais conservadores.
É engraçado: quando Clinton era candidato, já com a história de Gennifer Flowers no ar, ele escolheu Al Gore como o homem que, por sua simples presença, lhe ofereceria uma garantia moral. Agora, para se dissociar de Clinton, Gore escolhe Lieberman para a mesma função. Tipo: eu sou moral, olhe para meu vice. A esse ritmo, Lieberman, se ele for candidato depois da eventual Presidência de Gore, terá de procurar seu vice entre o papa e o Dalai Lama.
O plano democrata de governo difere substancialmente do projeto republicano -em matéria de política fiscal, de saúde pública e de previdência social. Apesar disso, Gore e sua equipe quiseram responder à tentativa republicana de tirar partido das pretensas falhas morais de Clinton. Lieberman foi escolhido para ser exibido como prova de caráter moral.
Nada contra. Afinal, por que a estatura moral não seria um bom critério para escolher governantes? O problema naturalmente é: quem mede a dita estatura, e como?
Atenção: Joseph Lieberman é provavelmente um sujeito altamente respeitável. Nos anos 60, ele foi um "cavaleiro da liberdade" -registrando eleitores negros no sul ainda segregado. Mas quem lembrou esse passado de Lieberman foi logo Clinton, o pecador. A campanha democrata preferiu uma versão em cores mais suaves.
O senador Lieberman -esta foi a mensagem- é uma garantia ética graças a seus bons costumes e por respeitar rigorosamente as formas sociais de sua religião. Para servir de exemplo moral, ele foi apresentado como um suburbano que come kosher e vai à sinagoga a cada semana. A qualidade ética conclamada não reside em alguma têmpera subjetiva forjada na complexidade da experiência. Se algo disso existe, como no caso do senador Lieberman, melhor esquecer e salientar a estética de vida pequeno-burguesa: moral é celebrar o sábado (ou domingo, que seja). Será que o vice-presidente poderia declarar a guerra no sabá se fosse preciso? -perguntam com emoção as mamães do subúrbio, correndo em suas camionetes para levar as meninas ao treino de futebol.
Em suma, a moralidade coincide com a conformidade e o farisaísmo religioso dos subúrbios. O mundo do bem é o sorriso estereotipado da Main Street de Disneylândia.
Numa total confusão entre bons costumes e estatura ética, o conformismo e a mediocridade tornam-se patamares morais.
Theodore Roosevelt, Thomas Jefferson e outros grandes americanos devem estar esperneando em suas tumbas.
Resta esperar que Gore esteja enganado e que os americanos tenham uma visão mais complexa daquilo que os políticos parecem supor que seja ético. Afinal, os eleitores em 1998 não se deixaram convencer pela hipocrisia moralista e, apesar da enorme campanha contra Clinton, o pecador, mandaram muitos novos representantes democratas para o Congresso.
Dizem que, para ser eleito, Gore deveria compartilhar com Clinton o mérito dos excelentes resultados da Presidência, mas se distanciar da sombra moral que o presidente projeta. Pois Clinton, acrescentam, foi um presidente de sucesso, mas houve o problema Lewinski e outros.
Ora, Clinton foi um grande presidente não apesar de, mas por causa de suas notórias fraquezas. É por ele ser capaz de errar, se arrepender e errar de novo que ele pode reconhecer alguma complexidade em si mesmo (e, portanto, nos outros). Sem essa capacidade, não há nenhuma experiência moral verdadeira.
Cruzo os dedos para que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha ao menos a mesma estatura ética de Bill Clinton. À primeira vista, há pouca chance.
quinta-feira, 10 de agosto de 2000
Pão, circo e corruptos na cadeia
Luiz Francisco de Souza é nosso herói do momento. E com ele todos os procuradores que corajosamente prendem os corruptos e tentam recuperar o dinheiro público saqueado.
É curioso. Há eleições importantes à vista. A propaganda política nos lembra de que, afinal, os eleitores devem contar para alguma coisa, pois os candidatos precisam de seus votos. Esta seria a hora de escolher o melhor porta-voz de nossas esperanças e projetos. No entanto, hoje nos sentimos representados muito mais pela Justiça do que por vereadores, prefeitos, governadores, deputados etc.
Parece que o desfile interminável de políticos traindo seus eleitores levou a gente a desistir da democracia representativa. A corrupção não produz apenas perdas do patrimônio público, ela também acarreta uma progressiva destruição de nossa confiança no sistema.
Se falo de política no boteco da esquina, num táxi ou num jantar com amigos, encontro sobretudo comentários indignados. Está ficando difícil discutir, pois as idéias e os engajamentos políticos de cada um mal são mencionados. Passamos direto ao consenso imediato: a raiva com a corrupção e o desejo de que ela seja enfim reprimida. Quase não há mais discussão política, porque concordamos quanto ao essencial: é necessário perseguir e punir os corruptos.
Ora, os membros eleitos do Poder Legislativo deveriam representar positivamente nossas vontades políticas. Os brasileiros teriam, sei lá, aposentadorias dignas, saúde pública e ensino básico de qualidade, novas formas de participação democrática, porque a maioria elegeu representantes que poderiam dar forma de lei a essas vontades. É assim que, a princípio, a coisa deveria funcionar. Mas quem quer discutir vontades políticas concretas? Qual ensino, qual saúde, qual democracia? Por que se preocupar com a complicação de projetos políticos e sociais com os quais acabaríamos discordando? Não vale a pena, pois dispomos de um projeto policial e jurídico com o qual, oh, maravilha, todos concordamos: que prendam e condenem os ladrões. O resto, parecemos pensar, será uma simples e mágica consequência.
Faça a prova: lance uma conversa sobre a escolha entre Marta Suplicy, Erundina e Maluf. No caso mais simples, logo o papo chegará às conclusões seguintes: Erundina não roubou, Marta não vai roubar e Maluf... bom, a gente sabe. Os interlocutores às vezes saberão apresentar provas, números, histórias de obras superfaturadas, ou não. Mas tente levar a conversa para os programas: o que os candidatos prometem fazer e como. Quase ninguém sabe ou dá bola.
O Poder Judiciário, que não é eleito, tornou-se paradoxalmente nosso representante mais autêntico, porque a variedade de nossos pensamentos políticos e sociais tende a se resumir ao simples e unívoco pedido de que a justiça seja feita.
Nas mesmas conversas em que a discussão política foi substituída pela indignação unânime, também tornou-se difícil debater os caminhos concretos pelos quais a economia do país poderia voltar a crescer. É como se não valesse a pena comparar escolhas e modelos fiscais, produtivos ou administrativos. Resgatar o dinheiro roubado é uma condição prévia tão importante que o resto perde interesse. Parecemos acreditar que, estancando a hemorragia da corrupção, logo nos tornaremos ricos. Teremos tudo o que precisamos para criar uma sociedade melhor.
Em suma, o Judiciário encarna nossa vontade política e promete os meios de nosso futuro econômico. Com isso, ele se torna o garante e o verdadeiro depositário da democracia. O Legislativo e o Executivo não nos respeitam, mas ainda estamos numa democracia porque o Judiciário nos vingará.
Claro que não é nada disso: lutar contra a corrupção não constitui uma plataforma política, assim como recuperar o dinheiro roubado não salva a economia do país.
Acontece, porém, que a corrupção produz uma perda bem maior do que as quantias que ela rouba. Ela desacredita a democracia e, instaurando uma falsa unanimidade, nos convida a desistir de pensar.
Poderíamos imaginar que isso seja um percalço brasileiro. A corrupção, doença endêmica, estaria condenando nossos trópicos a uma miséria política na qual pegar ladrão apareceria como a essência do exercício democrático.
Mas não é assim. A corrupção dos políticos (real ou suspeita) é um argumento conservador, antigo e global, feito para cortar entusiasmos. "Não se meta com política que é coisa suja, os políticos são todos iguais..." Quase 40 anos atrás, na Itália, eu escutava isso ao manifestar minhas simpatias socialistas juvenis.
Bonita armadilha: os eleitos enchem seus bolsos ou servem aos interesses dos que financiaram suas campanhas. Ou, no mínimo, suspeita-se que assim seja. Isso é uma razão para que o cidadão desista de seus sonhos políticos e se divirta festejando prisões e CPIs de corruptos. Ótimo. Só não gostaria que estas se tornassem o equivalente das execuções públicas que o soberano antigo oferecia a seu povo miserável. Tipo: o que o povo quer (para ficar calado)? Pão, circo e corruptos na cadeia.
Será que queremos só isso mesmo?
quinta-feira, 3 de agosto de 2000
Roubaram (também) o sonho liberal
Como resumiu Clóvis Rossi, a acusação parece consistir em "índices de comportamento pouco santo". O procurador Luiz Francisco não acrescentou muita coisa ao declarar que EJ teria dado prova de "omissão e má-fé na apresentação de seu patrimônio".
Em particular, não está comprovado que EJ tenha vendido seu acesso privilegiado ao presidente. Talvez ele tenha somente exercido muito a influência de sua função.
Imaginemos que as coisas permaneçam nesse patamar. Ou seja, que não haja nada para abafar e que EJ tenha se mostrado apenas "pouco santo".
O engraçado é que, mesmo assim, sua história me dói mais do que, por exemplo, as sinistras peripécias do foragido Nicolau.
Tento entender o porquê. Supostamente, Nicolau roubou e esbanjou de maneira revoltante. A quantidade monstruosa de dinheiro público do qual ele teria se apropriado, comparada com a indigência do povo e do Estado, leva a cálculos assustadores: quantas casas, quantos hospitais, quantos remédios teriam pago os tristes luxos de Nicolau?
EJ, se nada mais for comprovado, não se entregou a nenhum excesso de ganância de estilo Nicolau. Seu caso apenas enfia nosso nariz na fronteira mal-cheirosa entre Poder Executivo e Legislativo. Revela assim o fedor da banalidade cotidiana do poder.
EJ "pouco santo" mereceria nossa indulgência pois sua culpa maior seria apenas ter sido um político e ter trabalhado nos bastidores do governo. E seria uma culpa globalizada, nem pitoresca, nem especificamente brasileira. Não precisa recorrer ao mito do malandro ou da lei de Gerson. Os corredores do poder não conhecem latitude nem fuso horário, eles estão sempre, e em qualquer lugar, na mesma hora: a do lusco-fusco.
Por isso, a história de EJ me indigna menos do que o atrevimento de quem rouba as galinhas dos pobres. Mas, repito, paradoxalmente me dói mais. Por quê?
A democracia não é apenas uma instituição feita de livres eleições, separação e independência dos poderes etc.
Ela é também um estado de espírito, um sentimento que talvez seja complexo, mas no qual nunca faltam (ou nunca poderiam faltar) três pilares. A sensação de que, com mais ou menos sorte e com méritos diferentes, somos todos feitos do mesmo pano (no Brasil este já é um pilar rachado). A sensação de que os sonhos não têm limites e ninguém nos tirará a liberdade de sonhar. E a convicção de que nosso pensamento e nossas ações podem ter efeito sobre a vida da comunidade. Ou seja, que as decisões sociais e políticas são nossas. É graças a esta convicção que nos animamos a participar, votar, cooperar, opinar.
Ora, no mundo democrático inteiro ouve-se hoje uma mesma queixa. Parece que quase mais ninguém quer saber de política. Os jovens não participam dos ritos democráticos (partidos e eleições). Os adultos não estão muito melhor: onde o voto não é obrigatório, os cidadãos pouco se deslocam para as urnas.
Com isso, brotam as críticas: os jovens de hoje seriam cínicos e hedonistas. Os adultos seriam acomodados, submissos, alienados etc.
Tente recapitular a história do caso EJ. Talvez, como eu, você também acabe sem grande indignação, mas perseguido pela pergunta seguinte: "O que eu tenho a ver com isso tudo?". Não que as decisões tomadas com a contribuição influente de EJ não tenham repercussões em nossas vidas. Obviamente têm, basta lembrar o caso da Encol. Mas a zona cinza do poder, onde essas decisões são tomadas, parece totalmente alheia a nossa intervenção, afastada de nós ao ponto de tornar ridículas nossas cédulas eleitorais.
Pergunta: se jovens e adultos se afastam hoje das práticas democráticas será que isso é efeito de sua cínica alienação? Ou de um sistema que de fato dispensa a participação de seus cidadãos?
Dizem que o sonho socialista está morto -destruído pelos doutrinários, que confundiram o socialismo com a uniformidade das aspirações de todos, e pelas burocracias, que se transformaram em classes dominantes. Concordo.
Agora, suspeito que o sonho liberal também esteja morto. Ou no mínimo moribundo. Socialismo e liberalismo são obviamente sonhos concorrentes, mas além de suas diferenças eles compartilham (compartilhavam?) algo: são os dois sonhos modernos de todos poderem participar da invenção da vida social e política.
Ora, assim como as burocracias roubaram o sonho socialista, também o sonho liberal parece estar sendo roubado por entidades imprevistas que se tornaram dominantes, as corporações. Entre lobbying e financiamento de campanhas, somos forçados a constatar que perdemos até o sentimento de poder influenciar nosso destino coletivo. A história de EJ dói tanto justamente porque confirma esta perda.
Não é de estranhar se a esperança -última deusa, como dizia um poeta- parece hoje desertar as grandes ambições de governo. Ela encontra refúgio em quem luta em espaços circunscritos e concretos, onde a ação e a opinião de cada um ainda parecem contar. De novo, falo das novas revoltas.
quinta-feira, 27 de julho de 2000
Os caça-propaganda, outras figuras da nova revolta
Encontro assim uma fotografia: é a sala da máquina para fotocopiar de um escritório. Um jovem, de camisa e gravata, está esperando que a copiadora faça seu trabalho. À direita, uma citação: "Antevejo o dia em que árabes e americanos, latinos e escandinavos mastigarão seus crackers tão entusiasticamente quanto eles já bebem Coca-Cola ou escovam os dentes com Colgate". Assinado: o presidente da Nabisco Corporation.
A imagem produz tristeza e irritação. A tristeza é pela conformidade repetitiva imposta a nossas vidas: alguém está esperando que saiamos todos conformes, como fotocópias. A irritação é com o autor da citação, que confessa sua ambição de planejar nossos gostos. Mistura de triunfalismo ingênuo com cinismo: ele parece apostar que todos, corporações e consumidores, antevejamos um mesmo futuro feliz de salgadinhos, refrigerantes e pasta de dentes.
Outra fotografia: um cubículo anônimo sem janelas. Atrás de uma escrivaninha ordenadamente coberta por papéis, um jovem executivo está na frente de um computador, teclando. Mais uma citação: "Olhando para o futuro, vibro com a excitação dos negócios. Isto porque a companhia da sopa Campbell está engajada numa cruzada para o consumidor global", citado do Relatório Anual de 1994 da Campbell's Soup Company. Desta vez o efeito é cômico pelo contraste absurdo entre a banalidade deprimente do escritório e as (incríveis) vibrações dos cavalheiros cruzados da sopa enlatada.
Ambas imagens fazem parte de um ensaio fotográfico publicado pela "Adbusters" -uma revista canadense que milita contra o funcionamento ordinário de nossa cultura. Os "adbusters" são os caça-propaganda, traduzindo por analogia com "ghostbusters", os caça-fantasma.
O mentor da revista, Kalle Lasn, publicou, no ano passado, um livro programático: "The Uncooling of America". Ele propõe tornar inaceitáveis, deselegantes e sem graça todas as coisas (mercadorias, marcas, estilos) que são promovidas como "cool", ou seja, na moda, "legais". Isso é o "un-cooling".
O esforço para associar publicamente a Nike com a exploração de mão-de-obra infantil na Ásia é um exemplo clássico de "uncooling". Se coloco dois caubóis no pôr-do-sol e escrevo: "Bem-vindos ao país do enfisema", também é uma forma de "uncooling".
Uma outra revista, "Stay Free!" (Mantenha-se livre!), propõe uma série de fotografias de crônica (talvez modificadas, não sei dizer) nas quais personagens desagradáveis aparecem vestindo roupa de marca. Uma simpatizante da Ku Klux Klan, ao ser presa, está de moletom Gap; um molestador de crianças vai para a cadeia com um casaco de Perry Ellis etc.
Exemplo brasileiro: "Época" publica uma fotografia do juiz Nicolau com uma bolsinha Louis Vuitton na mão. Com todo o dinheiro desviado, o homem ainda recorre a este símbolo de status emergente. Ele é patético, e Vuitton perde todo seu "cool".
Mas cuidado: os caça-propaganda não estão criticando os produtos. Nada contra uma caixa de Nabisco, uma sopa Campbell e um moletom quente da Gap numa noite de inverno.
O projeto dos caça-propaganda é mais ambicioso. Lasn considera que a propaganda das grandes corporações é o instrumento pedagógico constitutivo da subjetividade contemporânea e, por isso, o maior projeto psicológico de todos os tempos. É provável que, nas últimas décadas, no mundo inteiro, os gastos com publicidade sejam maiores do que os gastos com a educação básica. Faz sentido: adquirir e consumir é hoje o caminho pelo qual somos convidados a inventar nossas identidades. Sem isso, o neoliberalismo pára.
Ora, os caça-propaganda gostariam de forçar uma nova subjetividade, que não fosse só identificação com bens, estilos e marcas. Mas há um problema: até agora o neoliberalismo se mostrou capaz de recuperar qualquer anseio de mudança. Ser revoltado tornou-se mais um estilo, uma maneira de consumir.
A contracultura, por exemplo, se transformou num ótimo negócio. Você odeia ecologicamente a vida urbana? Vendo a você um Timberland ou um casaco North Face. Com isso, você se define como um sujeito aventuroso, natural, e lá vai besteira. Por que o projeto dos caça-propaganda não seria recuperado do mesmo jeito?
Um acontecimento inesperado me sugeriu uma perspectiva mais otimista. Nos EUA, há uma marca de roupa adotada por muitos adolescentes de classe média: Abercrombie & Fitch. São roupas envelhecidas, esfarrapadas para produzir um efeito de "não estou nem aí". A marca vende o desleixo do adolescente como estilo (para os próprios adolescentes). Um dia, meu filho Ramiro, 17, incomodado com a presença invasiva desta marca entre seus colegas de escola, criou e adotou firme uma peça de vestuário original: pegou uma camiseta branca furada (modelo "esta eu guardo só para dormir") e, com uma caneta indelével, escreveu em letras capitais, no peito: Abercrombie & Fitch.
Talvez a zombaria seja a arma eficaz da revolta futura.
P.S.: Para ler mais veja os sites: www.adbusters.org e www.stayfreemagazine.org
quinta-feira, 20 de julho de 2000
A nova revolta: responsabilidade ilimitada
Numa recente entrevista, ela declarou: "Estou impressionada com o trabalho que os jovens estão fazendo e me irrito com muitas pessoas de minha geração que se consideram veteranos de lutas passadas e que tendem a depreciar o trabalho dos jovens e contribuem para manter a imagem dos anos 60 como a única era revolucionária".
Concordo com ela. A nostalgia do ex-combatente serve para justificar cinismo e desistência.
É mais interessante olhar com respeito para a babel de revoltas e de esperanças que animaram as ruas de Seattle e de Washington, que promete muitas outras badernas pelo mundo afora.
Dos agricultores franceses ao Greenpeace, os novos revoltados têm ao menos um inimigo comum: as grandes corporações. O projeto de um novo estatuto jurídico para as corporações está no centro da pauta de vários grupos. Parece um combate reformista que não vai mudar nada, não é?
Mas, como sugere Angela Davis, não vamos desconsiderar tão rapidamente o trabalho dos jovens.
Nesses últimos dias, as produtoras americanas de tabaco foram condenadas por um júri popular a pagar indenizações punitivas de US$ 144,8 bilhões.
O júri nem se perguntou se os fumantes que adoeceram são ou não também responsáveis por suas doenças. O que importou é que as corporações sabiam que seu produto era nocivo e produzia dependência. Com isso, seguiam caladas vendendo, promovendo e lucrando.
Quando foi formulado o pedido bilionário, as companhias afirmaram que, se fossem condenadas a pagar tal montante, iriam à bancarrota. O júri não se inibiu. Ao contrário, quis condenar as companhias à morte, assim como na Flórida (onde o processo aconteceu) seria condenado à morte alguém que matasse 400 mil pessoas por ano durante 50 anos.
Claro, é provável que o apelo acabe reduzindo substancialmente o montante. Mesmo assim, a reação da Bolsa foi curiosa. As ações da Philip Morris, da R.J.Reynolds e de outras companhias caíram apenas um pouco. Os acionistas não se indignaram e não se assustaram. Como é possível?
É graças a uma lei feita justamente para que as pessoas possam ser pacifistas e comprar Raytheon ou Lockheed, ser verdes e comprar Exxon. A lei diz e garante que, enquanto investidores, nossa responsabilidade é limitada. Muito limitada.
Naturalmente, essa isenção de responsabilidade civil e penal enferruja também nossos sentimentos morais. Se não somos responsáveis legalmente, por que nos sentiríamos culpados?
De repente, como investidores, somos outros sujeitos, além do bem e do mal -alienados num mundo abstrato onde só conta o lucro.
Veja só: se você for dono de um prédio, junto com outros proprietários, e se este prédio ruir matando um transeunte, você, junto com seus sócios, será pessoalmente responsável por essa morte. Provavelmente você também se sentirá culpado, no mínimo triste.
Isso não acontece com os investimentos acionários. A Philip Morris é condenada a pagar US$ 73 bilhões aos fumantes da Flórida. Se ela for à falência, você perderá seus investimentos: seus R$ 2.000 de ações da Philip Morris (imaginemos) não valerão mais nada.
Mas -mesmo no caso em que os bens da corporação não alcancem- os fumantes e seus herdeiros não poderão exigir que seus bens (apartamento, carro, lençóis e bicicleta) sejam vendidos para pagar os danos. Com isso, torna-se fácil investir em Philip Morris sem sequer levantar a questão da responsabilidade moral.
Os fundos de ações aperfeiçoam o sistema: o pessoal investe e não precisa saber no quê. Tudo graças ao princípio da responsabilidade limitada.
Pois bem, um dos projetos da nova revolta anticorporativa americana é este: abolir a responsabilidade limitada. Quem possui ações deveria ser pessoalmente responsável pelos atos das corporações nas quais investe.
Se essa mudança do estatuto de responsabilidade do investidor viesse a acontecer, seria certamente uma catástrofe para as bolsas -uma crise econômica incontrolável.
Mas os efeitos sociais seriam interessantes. A responsabilidade limitada é uma licença para matar: hoje as corporações supõem, com razão, que os investidores só querem lucrar.
Mas, se estes fossem responsáveis civil e penalmente, as corporações se imporiam freios morais. Pois, mesmo para lucrar, não se arriscariam a fazer algo cujas consequências afugentariam os investidores.
Você pensa em comprar ações da Petrobras. Ora, um júri popular poderia decidir que a conta da poluição é mais alta do que a Petrobras pode pagar. Neste caso, os bens dos acionistas seriam leiloados para limpar as praias da baía de Guanabara ou do rio Iguaçu. Você ainda quer comprar ações da Petrobras?
Os pruridos dos investidores assustados imporiam, enfim, algum tipo de controle democrático na atividade de monstros que hoje contam com nossas vidas mais do que os governos eleitos.
Talvez Angela Davis tenha razão: esses novos revoltados são mais radicais do que parecem.
P.S.: Quer ver um projeto de novo estatuto jurídico das corporações? Veja o da Alliance for Democracy (www.afd-online.org).
quinta-feira, 13 de julho de 2000
O segredo de Harry Potter
Surpresa: a livraria estava cheia. Por pequenos grupos que pareciam conspiradores apressando o passo na noite, o lugar ia se abarrotando. Eram centenas de pais sonolentos e felizes, trazendo crianças que, como revelavam os olhos avermelhados, haviam lutado até então contra o sono. Outras pareciam já ter dormido e chegado direto da cama: era um desfile de pijamas, camisolas e pantufas. Também havia adultos sem crianças. Atrás de mim na fila, um senhor arvorava uma cicatriz ziguezagueando na testa, como Harry Potter.
Um rapaz fantasiado de mago abria a porta e desejava boa-noite. Mas o clima não era de festa mascarada. As pessoas estavam lá para comprar o livro.
Na minha frente, duas irmãs (12 e 13 anos) acompanhadas pelo pai, ambas de camisola. Cada uma ganha um exemplar. Seria difícil convencê-las a dividir. Ambas abraçam o livro, um tijolo de 730 páginas, como se fosse um ursinho de pelúcia. Passam com delicadeza uma mão na capa, acariciando Harry ou as palavras que produzem o mundo mágico de Hogwarts. Logo começam a ler, enquanto o pai espera o cartão ser processado: a cada frase levantam o rosto, sorriem uma para a outra, apertam forte o volume, suspirando. E voltam a ler.
Os livros de J.K. Rowling são um fenômeno. No Brasil, o primeiro volume, "Harry Potter e a Pedra Filosofal", ocupa os primeiros lugares nas listas dos mais vendidos. Este quarto volume é a maior primeira tiragem da história da edição: 3,8 milhões nos EUA e 1,5 milhão na Grã-Bretanha. Entre meia-noite e 1h, a livraria de Brookline vendeu quase mil exemplares.
Uma sondagem feita pela Internet sugere que, até terça-feira, 38% dos jovens que compraram o livro no sábado já terminaram de ler as 730 páginas. Na mesma sondagem, quase 40% dos entrevistados afirmam que seus pais também lêem Harry Potter.
Não sei se Potter subirá ao firmamento da literatura juvenil como Tom Sawyer, Huckleberry Finn, Lord Fauntleroy, o Pequeno Príncipe, Dorothy do mundo de Oz e os outros. O entusiasmo geral depõe a seu favor. Pois, ao redor de todas essas figuras, leitores adultos e jovens sempre se encontraram como hoje acontece com Potter.
Desde que há literatura no sentido moderno, muitos best sellers foram livros ditos infanto-juvenis, que obviamente não eram lidos só pelos jovens. Na verdade, eram sobretudo livros nos quais uma criança ou um adolescente é o herói.
A maioria das pessoas, quando lhes perguntam quais livros foram mais marcantes em suas vidas, lembram de alguma leitura de infância. A literatura juvenil é tão importante em nossa cultura porque as histórias que ela conta repetem uma espécie de mito fundador da modernidade: um conto de criança que trata do heroísmo de crescer, se tornar independente, se afastar do amparo dos adultos, descobrir e inventar um destino diferente, autônomo. Em suma, é na literatura juvenil que aprendemos a ser modernos.
Para significar e garantir a liberdade infantil e adolescente, as crianças protagonistas -de Tom Sawyer a Tarzan, passando por Narizinho- são sempre órfãs ou quase.
Harry também é órfão. Os pais mortos por Valdemort lhe deixaram um pecúlio suficiente para não se preocupar. Do amor materno, lhe sobra uma proteção permanente contra todo sortilégio assassino. Do pai, uma lição de coragem. Assim, Harry está certo de ter sido amado, mas pode e deve crescer sozinho e livre. Os pais lhe transmitiram apenas o que é preciso, ou seja, as condições de sua autonomia.
Mas há algo mais, que faz de Potter o herói do momento. As circunstâncias levam Harry a lutar contra o malvado Valdemort. O órfão se transforma assim em vingador de seus pais e salvador do mundo. Ou seja, ele encarna um paradoxo: é livre para realizar exatamente os sonhos mais ambiciosos de seus pais. Que liberdade é essa? A contradição faz de Harry um compêndio da glória, das dores e das ilusões de nossa subjetividade contemporânea.
P.S. Livre, mas condenado a vingar os pais e a lutar contra o mal, Harry é uma espécie de Batman jovem.
Mago reprimido, criado pelos tios que odeiam a magia, Harry evoca (numa versão cômica) a triste adolescência dos X-men mutantes da Marvel Comics.
As histórias em quadrinhos (nos quais também leitores adultos e jovens se encontram) fornecem a Rowling vários elementos para atualizar o mito do órfão da literatura juvenil. Essa é mais uma explicação da popularidade de nosso herói.
quinta-feira, 6 de julho de 2000
Terapias virtuais para nossa realidade virtual
Eis como se chegou ao uso terapêutico da realidade virtual. Há tempo existem terapias ditas de dessensibilização: os pacientes (sobretudo fóbicos) são expostos progressivamente aos objetos de seus medos, aprendendo técnicas para acalmar a angústia.
Pode-se tentar a exposição pela imaginação: feche os olhos, imagine que está subindo no avião etc. Não funciona muito bem. A exposição real é mais eficaz: paciente e terapeuta viajam no mesmo avião -quem sabe de mãos dadas, seguindo a sugestão de Belchior.
Infelizmente é um acompanhamento caro (pelo tempo que o terapeuta dedica ao paciente). E incerto: por exemplo, seria bom que o primeiro vôo fosse tranquilo, mas como garantir que não haja turbulências naquele dia?
Esses problemas são resolvidos pela realidade virtual, que comprovadamente oferece a mesma eficácia da exposição real, reduz os custos e permite o controle da experiência.
O paciente veste um capacete e, ao virar a cabeça, tem uma visão de 360 graus e som estéreo. Outros aparelhos (um colete, uma cadeira que vibra e mexe) produzem mais impressões sensoriais, aperfeiçoando a imersão no mundo virtual. O terapeuta acompanha o paciente graças a uma tela.
Sua fala ressoa de dentro do mundo virtual. Alguns eletrodos informam o terapeuta sobre o nível de estresse que a situação virtual está impondo ao paciente. Ele pode assim calibrar suas intervenções.
Por exemplo, no programa para o medo de falar em público, o terapeuta controla as reações da platéia. Dependendo do estresse do paciente, ele administra aplausos, indiferença ou vaias. Detalhe interessante: o paciente pode ensaiar dessa forma uma palestra que ele deve realmente apresentar e cujo texto aparece num teleprompter para ele ler.
Estudos pequenos, mas significativos, mostram que a terapia virtual funciona. Seus benefícios não são sempre permanentes; em compensação, é fácil repetir a dose se for necessário.
Pode-se discutir sobre a origem desta eficácia. Alguns acreditam que a melhora seja o efeito da simples repetição. É a idéia do rei Mitrídates: tomando um pouco de veneno a cada dia, a gente se tornaria imune. A meu ver, a mudança não aconteceria sem o diálogo e a confiança depositada no terapeuta.
Seja como for, se a realidade virtual pode nos ajudar a vencer ou a controlar nossos medos, é porque -como comentou um colega, Manoel Berlinck- estes são tão virtuais quanto os programas.
Que o avião caia, que sejamos aspirados no precipício, que nossa voz falhe e a platéia nos devore ou que o espaço aberto nos aniquile, esses pavores são puras virtualidades.
A lição das terapias virtuais não pára aqui. Virtually Better propõe um programa de realidade virtual para o tratamento dos transtornos pós-traumáticos dos veteranos do Vietnã. A memória e seus traumas podem ser corrigidos virtualmente do mesmo jeito que a antecipação e seus medos.
Há mais. No começo dos anos 90, uma outra técnica de realidade virtual -a realidade aumentada- deu resultados positivos com pacientes de doença de Parkinson que apresentam o seguinte paradoxo neurológico: sua marcha é imobilizada, e eles conseguem avançar só se houver obstáculos ou limiares. O caminho deles foi, portanto, obstruído por obstáculos virtuais projetados, o que lhes permitiu avançar.
Também se difunde o uso anestésico da realidade virtual. A imersão num outro mundo produz mais do que uma simples distração. Ela transporta os pacientes alhures durante a dolorosa medicação de queimaduras ou a administração de quimioterapias pesadas.
Em suma, o futuro dos programas de realidade virtual é luminoso. Sua eficácia é garantida, pois eles nos propõem experiências cuja matéria-prima é a mesma tanto de nossos medos quanto de nossas aspirações, fantasias e lembranças.
Sofremos, sonhamos e gozamos com virtualidades -ectoplasmas projetados por nossa subjetividade. São elas que nos assustam e inibem ou motivam e excitam. Não é de estranhar que a imersão em mundos virtuais eletrônicos nos afete.
P.S.: Neste sábado, chega às livrarias americanas o quarto livro de Harry Potter. É a maior primeira tiragem da história: 3,8 milhões de exemplares.
Mesmo assim, as pessoas estão com medo de ficar sem um. Fiz minha reserva e receberei meu exemplar à meia-noite de sexta.
Seguindo o princípio de marketing do livro: na coluna da próxima quinta, vou enfim dizer por que eu e alguns outros gostamos de Harry Potter. Desde já, reserve o seu exemplar da Folha nas bancas.
quinta-feira, 29 de junho de 2000
A TV-realidade mostra a vida como ela é
Terça é a vez de "The Real World", na MTV. Um grupo de jovens de origens étnicas e sociais variadas passa o verão num casarão de New Orleans. Entendem-se ou não, gostam-se, apaixonam-se, embebedam-se, odeiam-se etc. Na frente das câmeras.
Quarta é o dia do programa de maior sucesso hoje: "Survivor", na CBS. Sobreviventes de um hipotético naufrágio são jogados numa ilha deserta do Pacífico. São pessoas de todo tipo: brancos e pretos, jovens e velhos, legais e chatos. Divididas em duas tribos, elas devem construir abrigos, encontrar a comida que a ilha oferece (churrasco de rato, por exemplo) e competir.
A cada semana, o grupo que perde vota para expulsar um dos seus. Sobreviverá só um sujeito, que levará para casa US$ 1 milhão. Aprendi pela coluna de Anna Lee na Folha que a Globo está preparando sua versão no Ceará.
Os comentadores lamentam o fim da privacidade, o voyeurismo e o exibicionismo generalizados. Estigmatizam o narcisismo: pessoas comuns olham para pessoas comuns, ou seja, olham-se no espelho. Lembram dois filmes recentes como sábios precursores de suas críticas.
"The Truman Show - O Show da Vida", com Jim Carrey, agitava o espantalho de nossa alienação num mundo que seria um estúdio de TV sem que a gente se desse conta. "EDtv" -mais engraçado- fomentava a revolta contra a insuportável invasão de privacidade imposta pela TV-realidade.
Os mesmos críticos evocam a presença persecutória das telecâmeras no universo totalitário imaginado por Orwell em "1984". Ora, toda essa indignação é o maior argumento de marketing do "televoyeurismo". A prova disso: para o 5 de julho a CBS promete "Big Brother", com dez pessoas coabitando presas numa casa onde tudo será filmado minuciosamente.
"Big Brother" (O Grande Irmão) era o nome da agência persecutória no romance de Orwell. Maneira de dizer: "É isso mesmo, que horror! Não vão perder essa...". Enfim, o inesperado foi descobrir que os programas não são chatos. E os protagonistas são ótimos. Em todos os programas há momentos em que eles fazem apartes com a câmera.
Nestes, eles são sempre convincentes, como se estivessem escrevendo para seu "caro diário". Também em todos os programas, a presença dos técnicos filmando não altera em nada o comportamento dos protagonistas. Eles agem, pensam, falam como se a situação de serem filmados fosse-lhes indiferente.
Contrariamente ao que aconteceria com atores, eles reconhecem a presença da câmera, mas não por isso são menos espontâneos. Demonstra-se que sujeitos quaisquer conseguem viver sob o olhar constante de câmeras que gravam e transmitem suas vidas pelo mundo afora sem perder por isso sua naturalidade.
Estava passeando e ponderando esta constatação quando, numa esquina perto de casa, parei ao lado de uma mulher de meia idade. Ela estava visivelmente tomada por alguma fantasia de olhos abertos e falava animadamente com um interlocutor imaginário: "E daí? Você acha mesmo que pode me tratar deste jeito...". Não estava bêbada nem drogada. De um carro, alguém a apostrofou: "Está louca?!". A mulher, vermelha de vergonha, saiu correndo. O grito me trouxe uma lembrança de quando eu era bem moço. Eu fazia isso o tempo todo: ia pelas ruas falando em voz alta com interlocutores ausentes. De vez em quando, o mesmo grito me precipitava na vergonha -só que em italiano: "O maaattoooo!".
Na verdade, ensaiava a peça de minha vida. Às vezes eu previa e preparava um encontro: "Desculpe o atraso, mas..." ou então "Foi impossível completar o dever de casa...". Elaborava maneiras de ser convincente. Não que quisesse mentir, mas -fiel a Aristóteles- sabia que a verossimilhança importa mais do que a verdade.
Outras vezes repetia uma cena que já acontecera, mas que teria um desfecho mais satisfatório se eu agisse de outro jeito. Outras, ainda, me preparava para viver as situações que, segundo prometia o cinema, algum dia se verificariam (o cinema tinha razão, se verificaram quase todas -infelizmente nem sempre consegui me valer de meus ensaios).
Com isso, entendi por que os protagonistas da TV-realidade conseguem ser naturais e espontâneos. Na verdade, estão vivendo a vida de sempre: um triunfo do aparecer, um constante jogo cênico. Vivemos para os outros, somos a imagem que conseguimos apresentar. Que diferença faz que câmeras de televisão estejam ou não apontadas para nós?
A TV-realidade pretende ser fiel à vida. À primeira vista nada está mais longe de nossa experiência do que viver no meio duma selva de câmeras apresentando nossas gestas ao mundo.
Mas é só à primeira vista: de fato, este olhar que nunca pisca e sonda sem parar nossos charmes e nossas misérias é o âmago da vida como ela é.
quinta-feira, 22 de junho de 2000
Ser vítima é bom e explica tudo
De maneira não muito apropriada, seu nome foi escolhido para designar uma síndrome na qual o sujeito produz intencionalmente sintomas para merecer atenção, carinho e cuidados médicos -pouco importa que isso implique investigações diagnósticas pesadas ou intervenções cirúrgicas. Estes "transtornos fictícios", como são chamados, nada têm a ver com as simulações para obter vantagens materiais (como compensações por invalidez). Também não devem ser confundidos com as preocupações do hipocondríaco, que se imagina ou presume doente. A síndrome de Munchausen se identifica pela motivação: o sujeito quer ser reconhecido e tratado como alguém que sofre.
Os pacientes-Munchausen chegam a extremos para produzir doenças dignas de interesse e compaixão. Desde automutilações até injeções de matérias fecais para gerar misteriosas infecções localizadas.
Existe também a síndrome de Munchausen por procuração. Neste caso, um dos pais (geralmente a mãe) produz uma doença em seu rebento para receber -por criança interposta- simpatia e comiseração.
Um estudo na revista "Pediatrics" de junho monitorou casos suspeitos recorrendo a câmeras escondidas em quartos de hospital. Apareceu um desfile desconcertante: mães acrescentando sua própria urina à intravenosa de seus nenês, outras se forçando a vomitar para atribuir o vômito ao bebê etc.
Há quem afirme que 1% das hospitalizações nos países do Primeiro Mundo poderiam ser Munchausen. Também a síndrome seria mais frequente nos países desenvolvidos.
De fato, esta curiosa figura patológica é filha de nossa cultura. As idéias cristãs que estão na origem do espírito moderno promovem a esperança de que as vítimas serão amadas e de que muito será perdoado a quem muito sofreu. Ser vítima deve ser bom.
Mas há algo além disso: nós, modernos, não confiamos nas virtudes do berço. Damos mais importância à experiência. Para nós, as pessoas valem segundo a qualidade e a intensidade de suas vidas. Por isso a banalidade do cotidiano é nossa inimiga permanente, pois imaginamos que nosso valor dependa do valor de nossas experiências. De fato, experiências excepcionais (viver na Antártida, atravessar um furacão, combater a Máfia) dão destaque decisivo a uma vida.
Ora, como o romantismo descobriu logo, o patético é uma forma simples e acessível de excepcionalidade. Sofrer e ser vítima pode ser incômodo, mas torna a vítima diferente e facilmente heróica.
Melhor ainda, numa cultura na qual é fácil e rentável contar vantagens, o sofrimento carrega consigo uma aura de autenticidade. Qualquer um pode contar que circunavegou a Terra num balão, mas quem se atreveria a mentir declarando: "Estou com câncer"? Pois é, o Munchausen se atreve.
Ele não é o único. Fazer-se de vítima é um esporte cultural induzido pela (mórbida) sedução que a figura da vítima exerce sobre nós.
Sandro do Nascimento, o assaltante do ônibus 174, para que suas ameaças fossem escutadas, não proclamou: "Cuidado, que sou sanguinário!". Ele disse (segundo "O Globo"): "Meu pai morreu de tiro. Perdi um irmãozinho na Candelária. Arrancaram a cabeça de minha mãe quando eu era pequeno. Eu sou maluco e não estou para bobeiras". Ou seja, ele é de verdade, deve ser levado a sério porque sofreu.
Como, ao que parece, ninguém arrancou a cabeça da mãe, o assaltante -como um paciente-Munchausen- inventou e elaborou para fazer valer seu estatuto de vítima. A coisa funcionou: a estudante Luana, que estava entre os reféns, ameaçada de morte durante horas, achou bom dizer para Sandro que, na verdade, a maior vítima era ele, o próprio assaltante. Quem sabe esta observação tenha salvo a vida da jovem, pois talvez fosse tudo o que Sandro quisesse ouvir.
Mas não deixa de ser uma estranha inversão.
Na mídia desta semana, a transformação de Sandro em vítima é tema dominante. O assaltante se tornou o "sobrevivente da Candelária".
Sandro foi vítima dos policiais que o levaram preso. Também ele teve uma infância dolorosa. Mas, enquanto assaltante, ele não foi vítima coisa nenhuma. As vítimas dessa história são Geisa Firmo Gonçalves e os outros passageiros.
Ora, acontece que preferimos explicar (justificar seria demais, não é?) seu comportamento de algoz por ele ter sofrido no passado. Aparece assim mais uma função de nosso "vitimismo": ele satisfaz nossa ingenuidade voluntária. Graças a ele, podemos evitar ter de reconhecer desejos incômodos e nojentos. Pois o mal seria apenas uma reação (compreensível, então, não é?) a traumas e dores -uma espécie de vingança das vítimas.
Quem foi bem tratado será feliz e ordeiro, quem foi maltratado sairá errado e assaltante. Você acredita que, se fôssemos um país rico, se os pais reconhecessem seus filhos e se as mães pudessem cuidar das crianças, seríamos também uma sociedade de pessoas boas e de boas pessoas? Bom, não vamos ficar ricos tão cedo. Mas, se acontecer, prepare-se para uma decepção, pois não é assim.
quinta-feira, 15 de junho de 2000
O insustentável peso das palavras e das imagens
Em outubro de 1997, em Cambridge, um menino de 10 anos, Jeffrey Curley, foi estuprado e assassinado por dois homens. Ambos estão hoje condenados e presos. Espera-se que a chave seja esquecida de vez.
O caso volta para a crônica porque os pais de Jeffrey entraram na Justiça com uma ação civil contra a Nambla (traduzindo: Associação Norte-Americana para o Amor entre Homens e Meninos) e seus animadores.
A queixa dos pais de Jeffrey obriga a pensar seriamente numa questão hoje crucial: qual é a responsabilidade das palavras e das imagens públicas que parecem inspirar um crime?
Numa manhã chuvosa, que condizia com a tétrica lembrança dos fatos, fui até a corte federal de Boston para ler o texto da queixa da família Curley.
Ela alega que Charles Jaynes, o principal algoz de Jeffrey, "se tornou obcecado pela idéia de fazer sexo com meninos e de estuprá-los, como resultado direto e próximo da instigação e da promoção da atividade pedófila pela Nambla".
Foi como resultado da mesma instigação que Jaynes abordou o menino e "torturou, assassinou e mutilou o corpo de Jeffrey Curley". Tanto Jaynes quanto seu cúmplice possuíam material da Nambla. Jaynes tinha recentemente se inscrito na associação.
Detalhe sinistro: "Imediatamente antes do ato, Charles Jaynes teve acesso ao site da Nambla na Internet a partir da Biblioteca Pública de Boston". Como se procurasse uma última confirmação.
A queixa apresenta algumas publicações da Nambla para mostrar que esta encoraja seus membros "a estuprar meninos".
A associação pretende oficialmente promover o amor "consensual" entre homens e meninos. Mas os documentos exalam mesmo uma hipocrisia irrespirável.
Se você tiver estômago, considere esta citação que planeja uma expedição nos bosques com os meninos -se não tiver, pule este fim de parágrafo: "Aí queremos levá-los para a barraca e beijá-los e abraçá-los e acariciá-los e fodê-los e sentir seus pequenos corpos quentes fremir de prazer sexual".
A Nambla não inspira simpatia. Isso me ajuda a evitar a facilidade. Em geral, nas discussões sobre a responsabilidade criminal de imagens e de idéias que circulam na cultura e na mídia, é fácil defender a liberdade de expressão.
No caso, os animadores da Nambla não são necessariamente estupradores. Mesmo que eles façam a apologia do estupro e que sua vida sexual seja feita de masturbações com fantasias de estupro, a apologia do crime não é o próprio crime.
Além disso, agita-se como um espantalho a idéia de que estender a responsabilidade até os hipotéticos instigadores seria um pretexto para o exercício ilimitado da censura.
Por esse caminho, por exemplo, por que, junto com o Unabomber, não seriam perseguidos os professores de Harvard que, nos anos 60, formaram a ideologia antitecnológica radical do terrorista americano?
Ou, então, se de repente nas praças brasileiras chover não só ovos, mas tiros, será que quem hoje defende a necessidade da luta armada seria perseguido ao mesmo título do que o atirador? Queremos esse tipo de repressão? Claro que não.
Mas importa, enfim, admitir que as palavras e as imagens da mídia e da cultura influenciam pesadamente nossos atos.
Jaynes, até descobrir a Nambla, não manifestara nenhuma de suas fantasias. O encontro com essa associação lhe permitiu transformar fantasias até então silenciosas em planos e atos. De alguma forma, autorizou desejos que talvez ele nem admitisse para si mesmo.
Mas como? Pois bem, contrariamente ao que aparece em nossas frequentes lamentações, nós, modernos, dispomos de uma moral comum bem compartilhada. Concordamos facilmente sobre o que é certo ou errado. E o fundamento desta moral comum somos nós mesmos, nosso diálogo, nossa comunidade.
Por exemplo, estuprar meninos é errado porque concordamos que é. Não porque assim diria alguma autoridade acima da gente.
Nesta situação, em que a comunidade é a fonte da autoridade moral, é suficiente que uma opção ou uma conduta tenha destaque público para que ganhe alguma forma de legitimidade com isso.
Se algo está no cinema, na televisão, na Internet ou na imprensa, se está entre nós, se faz parte de nosso diálogo público, então tem algum direito de cidadania.
Que uma fantasia, uma conduta ou um desejo possam ser ditos, narrados ou defendidos publicamente, é suficiente para autorizá-los. Na cara perplexa de cada menor preso por homicídio, por exemplo, leio esta pergunta: "Mas não era isso que vocês gostavam de olhar na TV ou no cinema?".
E Jaynes, naquela última visita ao site da Nambla, pode ter pensado: "Pois é, se a Nambla está na Net, então dá para estuprar meninos, pois estuprar meninos é do nosso mundo".
Eu gostaria de um mundo onde todos, até os sinistros membros da Nambla, pudessem, no respeito da lei, trocar suas fantasias como figurinhas.
Mas também onde Jeffrey ainda pedalasse sua bicicleta tranquilo, porque nada encorajaria dois desgraçados a realizar suas fantasias até então inconfessáveis.
É uma contradição difícil. Talvez sem solução.
domingo, 11 de junho de 2000
Uma elite funcional
Se fecho os olhos e penso nas elites americanas, duas caricaturas me afligem imediatamente. A primeira é a cara de J.P. Morgan, com suas suíças e seu nariz excessivo. Mas poderia ser um Vanderbilt ou um Rockefeller: qualquer um dos plutocratas que, na virada do século 19, constituíram-se em uma verdadeira aristocracia do dinheiro. São os protagonistas da "Idade da Inocência", de Edith Wharton, que competiam à força de "cottages" monstruosos e suntuosos em Newport ou nas colinas ao norte de Nova York. É neles que pensava Thorstein Veblen, descrevendo uma elite que afirmava e mantinha seu poder pela ostentação de sua (incrível) riqueza.
Os colarinhos afrouxaram, surgiram novos nomes, alguns se mataram em 1929, a ostentação se acalmou um pouco, mas, até três décadas atrás, substancialmente, a elite americana continuava a mesma. Nesse período, seu traço mais notável foi a disposição para dividir um pouco o bolo, inventando um capitalismo que, para garantir o crescimento, aposta no consumo de todos.
Caricatura apavorante
De repente, chega uma segunda caricatura, apavorante. Poderia ser o protagonista de "American Psycho" ou qualquer yuppie dos anos 80. Não é um plutocrata. É muito pior: trata-se de alguém que tenta desesperadamente compor a imagem de um plutocrata.
Sua vida e seu consumo têm, como única finalidade, a demonstração e confirmação de seu status. Veblen teria gostado do yuppie ainda mais do que de J.P. Morgan. Como então, no espaço de dez anos, foi possível passar de uma elite aristocrática constituída e fechada à cafonice arrivista do yuppismo dos anos da Presidência Reagan? Uma explicação consiste em pensar que tudo aconteceu por causa de uma brincadeira dos intelectuais e acadêmicos que, a partir dos anos 60, decidiram se vingar do proverbial antiintelectualismo dos plutocratas americanos. Um belo dia, eles mudaram os critérios de admissão das grandes universidades. Estas, até então, eram internatos onde os rebentos das "boas famílias" passavam o tempo necessário para selar as amizades e os contatos que lhes seriam úteis mais tarde. Eram, em suma, clubes mirins.
De repente, tornaram-se instituições meritocráticas, oferecendo uma educação de verdade a estudantes selecionados não por via hereditária, mas por sérios e complexos exames de admissão. Os yuppies foram uma consequência imediata, temporária e pouco interessante dessa mudança. E foram apenas um parêntese. Inseguros por serem a primeira leva de elites meritocráticas, eles não souberam inventar nada, mas ficaram com a estúpida ambição de se parecerem com os plutocratas precedentes. Ou de emulá-los. Levaram um tempo debatendo qual seria o relógio, o carro, a camisa e o restaurante certos para isso. E já quase não existem mais.
Agora, chega a terceira e mais recente versão das elites americanas: uma elite culta, descontraída, "cool". É essa que David Brooks descreve com muito brilho em seu livro. São os "bobos", que realizam o projeto meritocrático do qual os yuppies foram apenas um percalço. Os "bobos" eram esperados e indispensáveis. Esperados por quê? Afinal, é difícil acreditar que a mudança nas elites americanas seja apenas o fruto da frustração de acadêmicos que, para se fazer de importantes, se deram o direito de selecionar candidatos aos estudos superiores. O pós-guerra enriqueceu os americanos de todas as classes, criando um consumo de massa inédito.
Muito cedo, já nos anos 50, o marketing americano desconfiou dessa massificação, antevendo que dificilmente ela poderia sustentar para sempre os desejos dos consumidores. Com a ajuda da contracultura, Madison Avenue produziu e promoveu então um ideal de consumo oposto à massificação. Por isso, a partir dos anos 60, consumir não é mais nem tanto uma maneira de ser como os outros, de integrar uma classe social ou de adquirir status. Consumir, ao contrário, é apresentado como uma tarefa mais nobre, autêntica e quase espiritual: é o processo de invenção e produção de nossa singularidade, de nossa diferença.
A busca de auto-realização
Ora, para que essa visão do consumo triunfasse e viesse garantir um crescimento econômico que está hoje em seu auge era necessário uma elite que propusesse ideais mais complexos e variados do que festas à la "Great Gatsby" ou ternos sob medida de Paul Stuart. Os "bobos" respondem a essa exigência: eles se apresentam como uma elite que persegue não simplesmente riqueza ou status, mas sobretudo auto-realização.
O termo inventado por Brooks para descrevê-los -contração de burguês e boêmio- indica que eles pretendem resolver de vez o antigo dilema da alienação, conciliando sucesso financeiro e social com os valores existenciais mais sublimes (o português frustra um pouco essa aspiração dando a "bobo" um sentido provavelmente merecido, mas ausente em inglês).
Já nos séculos 16 e 17 as elites européias começam a se perguntar se no fundo os índios (brasileiros, por exemplo) não teriam o segredo da vida boa. No século 19, com os românticos, aos índios acrescentam-se os pobres. Wordsworth afirmava corajosamente que "os homens mal vestidos são suscetíveis a profundos sentimentos". De lá a perguntar se os maltrapilhos não vivem uma vida melhor do que os ricos há apenas um passo.
Em suma, a elite capitalista, mesmo em suas versões mais sinistras, sempre se perguntou se, acumulando dinheiro e riqueza, ela não estava perdendo algo essencial: algum prazer, algum saber ou mesmo algum sentido recôndito da existência.
Aliás, essa dúvida é responsável pela simpatia que ainda inspiramos ao olhar exótico das elites dos países ditos desenvolvidos. Por sermos índios e pobres, aparecemos facilmente como maltrapilhos dançarinos e primitivos que poderiam conhecer segredos essenciais da existência. Segundo o caso: o segredo do gozo da vida -escondido no fundo dos copos de carnavalescas caipirinhas- ou então o segredo do perfeito acordo com a natureza -escondido no saber iniciático de curandeiros amazônicos.
Seja como for, os "bobos" resolvem essa dúvida professando que o trabalho é para eles expressão íntima, vocação, arte. Em todo caso, ele é parte integrante de uma vida concebida como eterno esforço de aprender, conhecer, melhorar. Com isso e com o conjunto de sua ideologia social ecologista, higienista, progressista e tolerante, os "bobos" são a elite responsável pelo extraordinário sucesso da economia americana nesta última década. E o "bobismo" é a filosofia de "management" do momento -a mais bem adaptada à nova economia.
Por isso, é normal que os "bobos" sejam fundamentalmente americanos, eventualmente um pouco europeus e certamente não-brasileiros. Traços de ideologia "boba" circulam entre nós como modismos. Mas nosso capitalismo não está pronto para os "bobos". Ainda não negociamos o acesso a um consumo de massa e podemos, portanto, nos contentar com elites plutocráticas.
Estas podem eventualmente ser metidas a "bobos". Mais frequentemente, pelo atraso que sempre se dá na dinâmica do estrangeirismo, elas são hoje compostas por plutocratas metidos a yuppies. O que as torna especialmente caricaturais.
quinta-feira, 30 de março de 2000
O álibi do mar de lama
As notícias se sucedem e mal conseguem se organizar em um parágrafo com pé e cabeça.
Enfim, a metáfora do mar de lama segue atual e quase perfeita.
A lama é enganadora: quem se ilude achando poder pisá-la como se nada fosse logo perde os sapatos, chupados pela viscosidade melequenta; no segundo passo, lá se vão as meias, e, no terceiro, o sujeito começa a afundar. Para flutuar e se salvar, é necessário se deitar, se esticar numa espécie de abraço impossível de se preservar limpo. Ou seja, a moral é: "te enlameia ou afoga". A única outra possibilidade consiste em manter-se afastado de qualquer pântano. Ou seja, "esqueça a vida pública e fique rigorosamente na tua".
Pela virtude de sua consistência líquida, o mar de lama extravasa, transborda e acaba preenchendo a maior parte do globo, tornando-se assim um espaço privilegiado de trocas e contatos mundiais: a lama é cosmopolita e globalizada.
Por mais que eu viaje, esse mar é uma presença inevitável, banha todos os países. A lama estava por todo lado na Itália do pós-guerra. Mais ou menos vistosa, estava também na Suíça, na França e nos Estados Unidos.
Qualquer americano sabe que os custos astronômicos das campanhas eleitorais constituem um dos ambientes no qual a lama vive e se reproduz melhor. Ora, embora ele tenha perdido, a campanha de John McCain para ser escolhido como candidato republicano à Presidência foi surpreendentemente forte e significativa. Mas essa façanha foi possível graças ao caráter de McCain, ao seu passado heróico e à sua moderação: o cavalo-de-batalha de sua campanha -o projeto de reforma do financiamento das campanhas eleitorais- ficou na sombra. Ou seja, todos os eleitores democratas e republicanos parecem achar que é uma necessidade absoluta, uma questão de saneamento básico da vida pública. Mas não se entusiasmaram com isso. Reagiram, simplesmente, como se não acreditassem.
Talvez seja melhor ceder ao cansaço, devolver as armas e, sem vãs indignações e agitações, aceitar enfim que no mundo ocidental inteiro a lama tornou-se parte da paisagem. Ela está naturalizada, um apêndice mais ou menos inflamado, mas sempre inoperável da modernidade democrática. Ninguém acredita que seja possível moralizar a vida pública.
Na semana retrasada em São Paulo, peguei quatro táxis numa mesma tarde. Logicamente, conversamos sobre lama e enchentes. Todos os motoristas se declararam antimalufistas. Coisa impensável três anos atrás.
Mas as quatro conversas acabaram todas numa forma de ceticismo resignado do qual eu mesmo participei. Não era o antigo cinismo de "deixa ele, pois rouba, mas faz". Era assim: "Se ele rouba, então afasta ele, tenta até prender. Mas não esquenta: fica sem ilusões que não tem jeito". A lama é como a bolha assassina, não há como pará-la.
No fim de cada uma das quatro conversas, resultava o seguinte: a lama sufocou nossas esperanças, enterrou nossas ingenuidades corajosas. De decepção em decepção, perdemos a confiança. Agora só não entramos na dança (tipo: "olha, eu vou roubar, pois quem não rouba é trouxa") porque somos do bem. Então pegamos nossa bola e voltamos para casa: aqui não jogo não, está sujo demais, vou cuidar do meu jardim.
Em suma, a lama justifica nosso particularismo, a fraqueza de nossos engajamentos políticos e mesmo a mediocridade de nosso sentimento cívico.
A lama é uma desculpa moral, um álibi perfeito -uma verdadeira racionalização chamada a justificar nossa desistência cívica. Se a lama não existisse, precisaria inventá-la. Pitta, Maluf, os vereadores etc. não nos tornaram inertes e egoístas por excitar nosso ceticismo. Ao contrário: somos inertes e egoístas e -graças a Pitta, Maluf e companhia- podemos acusar a lama.
Suspeito que ainda não tenhamos conseguido assimilar completamente a virada dos anos 70, quando começou a ficar claro (permita a ironia) que os ideais sociais e políticos eram critérios incertos demais para orientar nossas vidas. Aliás, eles alimentavam discussões e discórdias intermináveis. Agora as coisas estão bem melhor: todos concordamos facilmente que nosso bem-estar individual físico, psíquico e financeiro merece ser o farol de nossas existências. É o sonho de Adam Smith realizado: cada um pensa em si mesmo, e, oh, milagre!, todos concordam (que é ótimo pensar em si mesmos)
Mas essa é uma novidade de duas ou três décadas apenas. De vez em quando, alguma nostalgia das quimeras do bem comum ainda deve trotar por nossos cérebros. Quando isso acontece, é bom matar logo qualquer veleidade política, pensando em Maluf, em Pitta ou na Câmara de vereadores. E concluir que é melhor mesmo ficar em casa, pois a lama respinga.