quinta-feira, 22 de junho de 2000

Ser vítima é bom e explica tudo

O barão de Munchausen ficou famoso por sua férvida imaginação. Ele exagerava e inventava ao contar suas proezas.

De maneira não muito apropriada, seu nome foi escolhido para designar uma síndrome na qual o sujeito produz intencionalmente sintomas para merecer atenção, carinho e cuidados médicos -pouco importa que isso implique investigações diagnósticas pesadas ou intervenções cirúrgicas. Estes "transtornos fictícios", como são chamados, nada têm a ver com as simulações para obter vantagens materiais (como compensações por invalidez). Também não devem ser confundidos com as preocupações do hipocondríaco, que se imagina ou presume doente. A síndrome de Munchausen se identifica pela motivação: o sujeito quer ser reconhecido e tratado como alguém que sofre.

Os pacientes-Munchausen chegam a extremos para produzir doenças dignas de interesse e compaixão. Desde automutilações até injeções de matérias fecais para gerar misteriosas infecções localizadas.

Existe também a síndrome de Munchausen por procuração. Neste caso, um dos pais (geralmente a mãe) produz uma doença em seu rebento para receber -por criança interposta- simpatia e comiseração.

Um estudo na revista "Pediatrics" de junho monitorou casos suspeitos recorrendo a câmeras escondidas em quartos de hospital. Apareceu um desfile desconcertante: mães acrescentando sua própria urina à intravenosa de seus nenês, outras se forçando a vomitar para atribuir o vômito ao bebê etc.

Há quem afirme que 1% das hospitalizações nos países do Primeiro Mundo poderiam ser Munchausen. Também a síndrome seria mais frequente nos países desenvolvidos.
De fato, esta curiosa figura patológica é filha de nossa cultura. As idéias cristãs que estão na origem do espírito moderno promovem a esperança de que as vítimas serão amadas e de que muito será perdoado a quem muito sofreu. Ser vítima deve ser bom.

Mas há algo além disso: nós, modernos, não confiamos nas virtudes do berço. Damos mais importância à experiência. Para nós, as pessoas valem segundo a qualidade e a intensidade de suas vidas. Por isso a banalidade do cotidiano é nossa inimiga permanente, pois imaginamos que nosso valor dependa do valor de nossas experiências. De fato, experiências excepcionais (viver na Antártida, atravessar um furacão, combater a Máfia) dão destaque decisivo a uma vida.
Ora, como o romantismo descobriu logo, o patético é uma forma simples e acessível de excepcionalidade. Sofrer e ser vítima pode ser incômodo, mas torna a vítima diferente e facilmente heróica.

Melhor ainda, numa cultura na qual é fácil e rentável contar vantagens, o sofrimento carrega consigo uma aura de autenticidade. Qualquer um pode contar que circunavegou a Terra num balão, mas quem se atreveria a mentir declarando: "Estou com câncer"? Pois é, o Munchausen se atreve.

Ele não é o único. Fazer-se de vítima é um esporte cultural induzido pela (mórbida) sedução que a figura da vítima exerce sobre nós.

Sandro do Nascimento, o assaltante do ônibus 174, para que suas ameaças fossem escutadas, não proclamou: "Cuidado, que sou sanguinário!". Ele disse (segundo "O Globo"): "Meu pai morreu de tiro. Perdi um irmãozinho na Candelária. Arrancaram a cabeça de minha mãe quando eu era pequeno. Eu sou maluco e não estou para bobeiras". Ou seja, ele é de verdade, deve ser levado a sério porque sofreu.

Como, ao que parece, ninguém arrancou a cabeça da mãe, o assaltante -como um paciente-Munchausen- inventou e elaborou para fazer valer seu estatuto de vítima. A coisa funcionou: a estudante Luana, que estava entre os reféns, ameaçada de morte durante horas, achou bom dizer para Sandro que, na verdade, a maior vítima era ele, o próprio assaltante. Quem sabe esta observação tenha salvo a vida da jovem, pois talvez fosse tudo o que Sandro quisesse ouvir.
Mas não deixa de ser uma estranha inversão.

Na mídia desta semana, a transformação de Sandro em vítima é tema dominante. O assaltante se tornou o "sobrevivente da Candelária".

Sandro foi vítima dos policiais que o levaram preso. Também ele teve uma infância dolorosa. Mas, enquanto assaltante, ele não foi vítima coisa nenhuma. As vítimas dessa história são Geisa Firmo Gonçalves e os outros passageiros.

Ora, acontece que preferimos explicar (justificar seria demais, não é?) seu comportamento de algoz por ele ter sofrido no passado. Aparece assim mais uma função de nosso "vitimismo": ele satisfaz nossa ingenuidade voluntária. Graças a ele, podemos evitar ter de reconhecer desejos incômodos e nojentos. Pois o mal seria apenas uma reação (compreensível, então, não é?) a traumas e dores -uma espécie de vingança das vítimas.

Quem foi bem tratado será feliz e ordeiro, quem foi maltratado sairá errado e assaltante. Você acredita que, se fôssemos um país rico, se os pais reconhecessem seus filhos e se as mães pudessem cuidar das crianças, seríamos também uma sociedade de pessoas boas e de boas pessoas? Bom, não vamos ficar ricos tão cedo. Mas, se acontecer, prepare-se para uma decepção, pois não é assim.

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