Estava curioso para ver os seriados da nova TV-realidade que -vinda da Europa- seduz nestes dias os espectadores americanos. Na segunda assisti "The 1900 House", na PBS: uma família de classe média (inglesa) é instalada numa casa de 1900 perfeitamente reconstruída e deve viver -durante 90 dias- se atendo rigorosamente aos recursos e aos hábitos da época. A televisão registra tudo.
Terça é a vez de "The Real World", na MTV. Um grupo de jovens de origens étnicas e sociais variadas passa o verão num casarão de New Orleans. Entendem-se ou não, gostam-se, apaixonam-se, embebedam-se, odeiam-se etc. Na frente das câmeras.
Quarta é o dia do programa de maior sucesso hoje: "Survivor", na CBS. Sobreviventes de um hipotético naufrágio são jogados numa ilha deserta do Pacífico. São pessoas de todo tipo: brancos e pretos, jovens e velhos, legais e chatos. Divididas em duas tribos, elas devem construir abrigos, encontrar a comida que a ilha oferece (churrasco de rato, por exemplo) e competir.
A cada semana, o grupo que perde vota para expulsar um dos seus. Sobreviverá só um sujeito, que levará para casa US$ 1 milhão. Aprendi pela coluna de Anna Lee na Folha que a Globo está preparando sua versão no Ceará.
Os comentadores lamentam o fim da privacidade, o voyeurismo e o exibicionismo generalizados. Estigmatizam o narcisismo: pessoas comuns olham para pessoas comuns, ou seja, olham-se no espelho. Lembram dois filmes recentes como sábios precursores de suas críticas.
"The Truman Show - O Show da Vida", com Jim Carrey, agitava o espantalho de nossa alienação num mundo que seria um estúdio de TV sem que a gente se desse conta. "EDtv" -mais engraçado- fomentava a revolta contra a insuportável invasão de privacidade imposta pela TV-realidade.
Os mesmos críticos evocam a presença persecutória das telecâmeras no universo totalitário imaginado por Orwell em "1984". Ora, toda essa indignação é o maior argumento de marketing do "televoyeurismo". A prova disso: para o 5 de julho a CBS promete "Big Brother", com dez pessoas coabitando presas numa casa onde tudo será filmado minuciosamente.
"Big Brother" (O Grande Irmão) era o nome da agência persecutória no romance de Orwell. Maneira de dizer: "É isso mesmo, que horror! Não vão perder essa...". Enfim, o inesperado foi descobrir que os programas não são chatos. E os protagonistas são ótimos. Em todos os programas há momentos em que eles fazem apartes com a câmera.
Nestes, eles são sempre convincentes, como se estivessem escrevendo para seu "caro diário". Também em todos os programas, a presença dos técnicos filmando não altera em nada o comportamento dos protagonistas. Eles agem, pensam, falam como se a situação de serem filmados fosse-lhes indiferente.
Contrariamente ao que aconteceria com atores, eles reconhecem a presença da câmera, mas não por isso são menos espontâneos. Demonstra-se que sujeitos quaisquer conseguem viver sob o olhar constante de câmeras que gravam e transmitem suas vidas pelo mundo afora sem perder por isso sua naturalidade.
Estava passeando e ponderando esta constatação quando, numa esquina perto de casa, parei ao lado de uma mulher de meia idade. Ela estava visivelmente tomada por alguma fantasia de olhos abertos e falava animadamente com um interlocutor imaginário: "E daí? Você acha mesmo que pode me tratar deste jeito...". Não estava bêbada nem drogada. De um carro, alguém a apostrofou: "Está louca?!". A mulher, vermelha de vergonha, saiu correndo. O grito me trouxe uma lembrança de quando eu era bem moço. Eu fazia isso o tempo todo: ia pelas ruas falando em voz alta com interlocutores ausentes. De vez em quando, o mesmo grito me precipitava na vergonha -só que em italiano: "O maaattoooo!".
Na verdade, ensaiava a peça de minha vida. Às vezes eu previa e preparava um encontro: "Desculpe o atraso, mas..." ou então "Foi impossível completar o dever de casa...". Elaborava maneiras de ser convincente. Não que quisesse mentir, mas -fiel a Aristóteles- sabia que a verossimilhança importa mais do que a verdade.
Outras vezes repetia uma cena que já acontecera, mas que teria um desfecho mais satisfatório se eu agisse de outro jeito. Outras, ainda, me preparava para viver as situações que, segundo prometia o cinema, algum dia se verificariam (o cinema tinha razão, se verificaram quase todas -infelizmente nem sempre consegui me valer de meus ensaios).
Com isso, entendi por que os protagonistas da TV-realidade conseguem ser naturais e espontâneos. Na verdade, estão vivendo a vida de sempre: um triunfo do aparecer, um constante jogo cênico. Vivemos para os outros, somos a imagem que conseguimos apresentar. Que diferença faz que câmeras de televisão estejam ou não apontadas para nós?
A TV-realidade pretende ser fiel à vida. À primeira vista nada está mais longe de nossa experiência do que viver no meio duma selva de câmeras apresentando nossas gestas ao mundo.
Mas é só à primeira vista: de fato, este olhar que nunca pisca e sonda sem parar nossos charmes e nossas misérias é o âmago da vida como ela é.
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