Um pouco antes do Natal, o presidente Lula anunciou a campanha que o governo planeja para o ano que vem.
Em 2004, foi promovida a idéia de que "O Melhor do Brasil É o Brasileiro", o qual não desiste nunca.
A campanha de 2005 se propõe a corrigir a "falta de afeto" e a "desagregação da estrutura familiar".
Difícil desaprovar, não é? Quem ousaria sugerir que a gente seja mais frio, distante ou cínico, em suma, menos "afetivo"? Ou que criemos nossos filhos sem lar, num mundo celibatário desprovido de pernis e árvores de Natal?
Mas não deixa de ser curioso que logo um governo brasileiro proponha uma campanha em favor de afeto e família. Estamos quase no septuagésimo aniversário de "Raízes do Brasil". Nesse livro seminal da sociologia brasileira, Sérgio Buarque de Holanda mostra como, no Brasil, afeto e família prevaleceram sobre espírito cívico e sentimento de cidadania. Conseqüência: uma tradição política clientelar e paternalista, dominada pelo princípio "para os amigos e os parentes, tudo; para os outros, inimigos e estranhos, o rigor da lei". Com efeito, família e afeto são os valores centrais de qualquer gestão mafiosa do poder (releia ou reveja "O Poderoso Chefão").
Como fica, então? No Brasil, família e afeto fazem falta ou abundam e transbordam, invadindo o campo da vida pública?
Cuidado, não sou contra a família nem contra os afetos. Mas prefiro desconfiar das ideologias, sobretudo quando são objetos de campanhas.
As ideologias, promovidas de maneira abstrata, estabelecem parentescos desagradáveis. Por exemplo, a idéia de que afeto e família nos ajudariam a combater o cinismo do mercado é simpática, mas a mesma idéia poderia ter sido a bandeira do ruralismo moralizador e assassino que, em 1975, levou Pol Pot a exterminar os cidadãos de Phnom Penh. Ou que animou a cólera de Deus (não foi seu melhor momento) na hora de destruir Sodoma e Gomorra.
É mais prudente (um resto de marxismo não dói) considerar que as ideologias são concretas: seu valor não é absoluto (tipo: "a família é um bem em si"), mas varia segundo a conjuntura política. Ora, acontece que, hoje, o mundo ocidental vive uma época de revalorização dos afetos do lar. É possível subir nesse bonde, mas é útil lembrar-se de que, a essa altura, ele já carrega outros passageiros: Tradição-Família-Propriedade ocupa um assento no fundo e, bem na frente, estão sentados George Bush e seus fundamentalistas evangélicos.
No meu campo de trabalho constato o seguinte: nos anos 60 e 70, a psiquiatria, a psicologia e, em geral, a cultura criticavam a família como berço da loucura. Em 68, o primeiro filme de Ken Loach, "Family Life", foi um verdadeiro ato de acusação contra a família. Em 1970, Laing e Esterson publicaram "Sanity, Madness and the Family" (saúde mental, loucura e a família). A família era a grande responsável pela repetição dolorosa do mesmo e da mesmice, uma jaula em que se debatiam os anseios e os desejos de mudança, em particular os dos jovens.
Durante os anos 70, historiadores e sociólogos, inspirados no ensino de Michel Foucault, descreveram a família como um refinado instrumento de domínio: o "sistema" se reproduzia delegando a tarefa de subjugar os corpos e as almas à família, única instituição capaz de controlar a vida cotidiana ("La Politique des Familles", de Jacques Donzelot, é de 77).
Naquelas décadas, na saúde mental, vivia-se uma contradição aguda: tratava-se de fechar os asilos e, portanto, era necessário devolver os pacientes aos cuidados de suas famílias. Mas as famílias apareciam como o caldo em que se originava o sofrimento dos pacientes. O que fazer?
Hoje, a cena mudou. Na bibliografia recente, há muito pouco sobre a família como produtora de loucura. Em compensação, abundam os manuais para que a família, valorizada e devidamente instruída, possa se tornar a terapeuta de seus membros doentes.
Estávamos certos em 1970? Ou estamos certos agora? Um pouco dos dois.
A família é um sistema de controle e repressão. Como mostrou Freud, em regra, educamos nossos filhos como nossos avós teriam gostado de educar nossos pais: haja conservadorismo. Além disso, a família é um emaranhado de amores, ódios e invejas capazes de enlouquecer a muitos. Mas a família é também um amparo sem o qual seríamos indivíduos perfeitamente isolados, conformes ao figurino de nossa cultura, mas desesperados e provavelmente incapazes de viver em sociedade.
Então, família sim? Ou família não? Alternativa furada. Aliás, as palavras de ordem extremas e jacobinas seriam sempre ridículas, se não fossem perigosas. É o caso de "Morte à família!", que, nos anos 70, presidia à miséria de experiências comunitárias em que os filhos eram criados coletivamente, sem que fosse reconhecida sua ascendência paterna. E é também o caso do apelo à família como se fosse a única fonte de valores, apelo que anima os ideólogos da direita americana e agora, aparentemente, os da esquerda brasileira.
Moral da história: não discordo da campanha anunciada, mas gostaria que, na hora de pegar um bonde andando, a gente fosse menos ingênuo.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2004
quinta-feira, 23 de dezembro de 2004
Sentimentos mais ou menos natalinos
É Natal: espera-se que a gente se abarrote, festeje em família e, naturalmente, compre e ofereça presentes. Também é esperado que sejamos generosos. A onda sazonal de bons sentimentos pode parecer hipócrita: um momento anual de altruísmo para resgatar o esquecimento do resto do tempo. Tanto faz, melhor no Natal do que nunca.
Mas cuidado: para o ideal da generosidade natalina, distribuir panetones, por exemplo, é ótimo, mas não é suficiente. Confira o repertório das histórias de Natal: o espírito desta época do ano supõe que a gente enxergue os outros, ou seja, reconheça que, antes de serem necessitados, eles são nossos semelhantes.
No Natal ideal, não basta jogar dinheiro pelo vidro do carro entreaberto, olhando para a frente. No Natal ideal, quem tenta chamar a nossa atenção, do outro lado do insulfilme, deve nos aparecer como um dos nossos.
Em princípio, reconhecer que todos os outros são nossos semelhantes, por diferentes que sejam suas condições de vida, não deveria custar esforço nenhum. É um pacto fundamental de nossa cultura: pressupomos a humanidade comum de todos, não obstante a diversidade.
Esse pacto nos leva a calçar um pouco os sapatos do outro, e a compaixão evita que os únicos árbitros de nossa vida social sejam o rigor da lei ou a violência. Se o vizinho abaixa seu som antes das 22h, é porque, embora não sejamos convidados à sua festa, ele reconhece que somos tão humanos quanto ele; ou seja, ele "sabe" o que significa estar triste, cansado ou mesmo, simplesmente, a fim de ouvir uma música diferente da que está berrando pelo seu alto-falante naquele dia.
Almoço quase sempre na rua. Com freqüência, leio e escrevo numa mesa de bar, na calçada. Há os engraxates que me propõem seus serviços e, como eu recuso, pedem um pão de queijo; há o sem-teto da esquina que quer comprar cigarros; há aqueles que chegam com longas e confusas histórias de ônibus para voltar para o Norte ou de remédios para a mãe doente. Que eu possa ou não oferecer ajuda naquele dia, que acredite ou não na história que me é contada, de qualquer forma, escuto, olho, troco palavras. Nenhum mérito nisso; não é uma decisão moral, apenas o efeito de minha voracidade: não quero perder nada da variedade da vida. Gosto das pessoas, porque sempre me reconheço (ao menos em parte) na diversidade dos destinos. Nisso, sou apenas, banalmente, moderno.
Você poderia pensar que essa coluna é uma exortação natalina a enxergar os miseráveis ao redor de nós. Digo, enxergá-los nos encontros concretos, em que a pobreza e o desamparo têm rosto e revelam uma humanidade parecida com a nossa.
Agüente mais um pouco, pois não se trata exatamente disso.
No sábado passado, à noite, sentei-me a uma mesa na calçada de uma sorveteria paulistana. No meio de meu sorvete, recebi um telefonema inesperado e triste; alguém, de muito longe, me trazia notícias difíceis. Eu escutava com os ombros para a frente, como um boxeador fechando a guarda. Durante essa conversa tensa, percebi que alguém parava na minha frente e ouvi uma voz feminina: "Moooçô, me dá um trocado?". Estranhei; parecia-me impossível que minha interlocutora não percebesse meu estado. Continuei na minha. De novo: "Moooçô, me dá um trocado?". Levantei o rosto: era uma jovem mulher com uma criança no colo. Ela encontrou meu olhar, mas não me viu. E, na lengalenga mecânica de quem acha chato ter que repetir, insistiu: "Moooçô, o trocado?".
Não sei nem quero saber se sua necessidade do momento era ou não mais importante do que o desamparo em que me deixava minha conversa telefônica. De toda maneira, era intolerável constatar que ela não me enxergava. Os sinais de meu estado de espírito não a atingiam. Para ela, eu era tão abstrato quanto são abstratos os pedintes no farol para os motoristas que os ignoram e os afastam com um gesto, como se fossem moscas.
O bairro Cinco, em que eu morava nos anos 70, em Paris, era o xodó dos moradores de rua por causa da concentração de restaurantes baratos para uma clientela "progressista". Quando saía de casa, sempre havia alguém para pedir um franco. As palavras que me eram endereçadas, mesmo que fossem proferidas nas brumas do álcool, afirmavam primeiro nossa humanidade comum. Caso eu estivesse de cara fechada, diziam assim: "Quelque chose qui va pas, mon vieux? O que foi, algo que não está dando certo?".
As diferenças eram extremas. Não era raro que os moradores de rua do bairro Cinco comessem ração para gato ou para cachorro. Mas aquela pequena troca discursiva afirmava que, apesar das diferenças, a gente estava num barco comum. Eles não renunciavam à sua humanidade, porque me declaravam que reconheciam a minha.
Ora, algo em nosso tecido social deve estar mais doente do que imaginamos ou do que eu imagino. Pois parece que, nos dois extremos das diferenças sociais, se manifesta uma mesma capacidade de não enxergar a humanidade do outro.
Sem o amparo do sentimento de uma humanidade comum, não há convivência possível entre diferenças. Apenas a promessa de um extermínio recíproco.
Sem ironia, feliz Natal a todos.
Mas cuidado: para o ideal da generosidade natalina, distribuir panetones, por exemplo, é ótimo, mas não é suficiente. Confira o repertório das histórias de Natal: o espírito desta época do ano supõe que a gente enxergue os outros, ou seja, reconheça que, antes de serem necessitados, eles são nossos semelhantes.
No Natal ideal, não basta jogar dinheiro pelo vidro do carro entreaberto, olhando para a frente. No Natal ideal, quem tenta chamar a nossa atenção, do outro lado do insulfilme, deve nos aparecer como um dos nossos.
Em princípio, reconhecer que todos os outros são nossos semelhantes, por diferentes que sejam suas condições de vida, não deveria custar esforço nenhum. É um pacto fundamental de nossa cultura: pressupomos a humanidade comum de todos, não obstante a diversidade.
Esse pacto nos leva a calçar um pouco os sapatos do outro, e a compaixão evita que os únicos árbitros de nossa vida social sejam o rigor da lei ou a violência. Se o vizinho abaixa seu som antes das 22h, é porque, embora não sejamos convidados à sua festa, ele reconhece que somos tão humanos quanto ele; ou seja, ele "sabe" o que significa estar triste, cansado ou mesmo, simplesmente, a fim de ouvir uma música diferente da que está berrando pelo seu alto-falante naquele dia.
Almoço quase sempre na rua. Com freqüência, leio e escrevo numa mesa de bar, na calçada. Há os engraxates que me propõem seus serviços e, como eu recuso, pedem um pão de queijo; há o sem-teto da esquina que quer comprar cigarros; há aqueles que chegam com longas e confusas histórias de ônibus para voltar para o Norte ou de remédios para a mãe doente. Que eu possa ou não oferecer ajuda naquele dia, que acredite ou não na história que me é contada, de qualquer forma, escuto, olho, troco palavras. Nenhum mérito nisso; não é uma decisão moral, apenas o efeito de minha voracidade: não quero perder nada da variedade da vida. Gosto das pessoas, porque sempre me reconheço (ao menos em parte) na diversidade dos destinos. Nisso, sou apenas, banalmente, moderno.
Você poderia pensar que essa coluna é uma exortação natalina a enxergar os miseráveis ao redor de nós. Digo, enxergá-los nos encontros concretos, em que a pobreza e o desamparo têm rosto e revelam uma humanidade parecida com a nossa.
Agüente mais um pouco, pois não se trata exatamente disso.
No sábado passado, à noite, sentei-me a uma mesa na calçada de uma sorveteria paulistana. No meio de meu sorvete, recebi um telefonema inesperado e triste; alguém, de muito longe, me trazia notícias difíceis. Eu escutava com os ombros para a frente, como um boxeador fechando a guarda. Durante essa conversa tensa, percebi que alguém parava na minha frente e ouvi uma voz feminina: "Moooçô, me dá um trocado?". Estranhei; parecia-me impossível que minha interlocutora não percebesse meu estado. Continuei na minha. De novo: "Moooçô, me dá um trocado?". Levantei o rosto: era uma jovem mulher com uma criança no colo. Ela encontrou meu olhar, mas não me viu. E, na lengalenga mecânica de quem acha chato ter que repetir, insistiu: "Moooçô, o trocado?".
Não sei nem quero saber se sua necessidade do momento era ou não mais importante do que o desamparo em que me deixava minha conversa telefônica. De toda maneira, era intolerável constatar que ela não me enxergava. Os sinais de meu estado de espírito não a atingiam. Para ela, eu era tão abstrato quanto são abstratos os pedintes no farol para os motoristas que os ignoram e os afastam com um gesto, como se fossem moscas.
O bairro Cinco, em que eu morava nos anos 70, em Paris, era o xodó dos moradores de rua por causa da concentração de restaurantes baratos para uma clientela "progressista". Quando saía de casa, sempre havia alguém para pedir um franco. As palavras que me eram endereçadas, mesmo que fossem proferidas nas brumas do álcool, afirmavam primeiro nossa humanidade comum. Caso eu estivesse de cara fechada, diziam assim: "Quelque chose qui va pas, mon vieux? O que foi, algo que não está dando certo?".
As diferenças eram extremas. Não era raro que os moradores de rua do bairro Cinco comessem ração para gato ou para cachorro. Mas aquela pequena troca discursiva afirmava que, apesar das diferenças, a gente estava num barco comum. Eles não renunciavam à sua humanidade, porque me declaravam que reconheciam a minha.
Ora, algo em nosso tecido social deve estar mais doente do que imaginamos ou do que eu imagino. Pois parece que, nos dois extremos das diferenças sociais, se manifesta uma mesma capacidade de não enxergar a humanidade do outro.
Sem o amparo do sentimento de uma humanidade comum, não há convivência possível entre diferenças. Apenas a promessa de um extermínio recíproco.
Sem ironia, feliz Natal a todos.
quinta-feira, 16 de dezembro de 2004
Negros brasileiros
Em 1840, a fotografia chegou ao Brasil. Foi um sucesso imediato, graças, em particular, à paixão pelas inovações científicas do futuro d. Pedro 2º, que encomendou um aparelho e incentivou a nova arte.
Portanto muitos fotógrafos documentaram o Brasil do século 19. Alguns, brasileiros ou viajantes, se interessaram em retratar os negros: as imagens exóticas de escravos do campo ou de ganho vendiam bem na Europa. E houve os que fotografavam corpos africanos para pesquisas antropométricas sobre as diferenças raciais. Outros trabalhavam para a Justiça e o arquivo dos condenados. E por aí vai.
"O Negro na Fotografia Brasileira do Século 19", de George Ermakoff, é um livro cativante. Uma vez o volume fechado, a galeria de rostos não sai da memória.
As mulheres foram humilhadas tanto quanto os homens. Há, por exemplo, o retrato de uma ama-de-leite sendo cavalgada pela filha dos donos. Claro, todos fomos um dia o cavalinho de nossos filhos, mas, no caso, a cena é uma metáfora intolerável. Resta que os retratos femininos são menos consternadores que os masculinos. O olhar das escravas é vivo: em cada uma delas reconhecemos imediatamente um semelhante.
Os homens, ao contrário, olham para nós como peixes à venda no mercado. Seu olhar não nos alcança, é opaco, perdido. Nunca encontrei um zumbi, mas aposto que, se encontrasse um, seu olhar seria esse. E entendo, pela primeira vez, por que o nome do herói de Palmares é certeiro: zumbi, o cadáver que anda.
Na página 121 do livro, está o duplo retrato de um único escravo, "com e sem chapéu". Nas duas poses, o modelo se mantém idêntico, com a mesma fixidade molhada e cega dos olhos; o chapéu rígido de feltro (coisa de branco) não o transforma nem um pouco. Ele é um gancho, no qual alguém, casualmente, pendurou o chapéu ao entrar em casa.
Imaginemos que fosse o chapéu de Alberto Henschel, o fotógrafo. Em Henschel, o dito chapéu devia produzir algum efeito, designar seu usuário como senhoril, dizer sua classe social ou, no mínimo, sua obediência ou não às regras da elegância da época. No escravo, o chapéu não pega. Nele, os apetrechos que qualificam socialmente não produzem efeito nenhum, porque falta substrato: um chapéu pode valorizar e enobrecer um cidadão, mas não um cabide.
Mas por que o olhar das mulheres retratadas é mais vivo? Por que as escravas parecem ser menos devastadas pela escravidão do que os homens?
Primeiro, porque há um valor social que é indissociável do corpo feminino, quase um efeito de sua fisiologia: a capacidade de procriar e de ser mãe. As amas-de-leite podem ser escravas, mas sua função lhes atribui uma dignidade simbólica que as ampara, que impede que elas sejam só peitos. E há mais, talvez a própria concupiscência dos donos salvasse as escravas: "Perdi clã, família, tribo e nome, sou vendida e comprada, mas meu corpo não pode ser apenas uma massa de carne, deve valer algo mais se os donos se insinuam na senzala procurando meus favores".
Ora, para os homens, qual poderia ser o remédio contra a perda de clã, tribo, nome e dignidade simbólica?
Há fotografias, no livro, que falam da tentativa frustrada de dar algum valor à paródia de uma dignidade perdida. Vestidos de trajes supostamente africanos (págs. 126 e 127, por exemplo), os escravos se tornam farsantes de seu próprio passado para satisfazer o gosto dos donos pelo exotismo. Aqui o escárnio se acrescenta à perda.
Mas há um outro caminho pelo qual, de fato, os homens escravos reencontraram algum valor social. Diz assim: "Se minha dignidade é negada, se me torno apenas um corpo, sobra-me a possibilidade de encontrar uma fonte de valor justamente neste corpo, que é o que me resta".
Não é por acaso que, nos países com um passado escravagista (ou brutalmente colonial), existe e insiste a fantasia da excepcional prestança física e sexual do escravo ou do colonizado. É, por exemplo, o garanhão árabe na França ou o negro tarado e superdotado nos EUA.
Na pág. 239 do livro, está um dos raros retratos em que o olhar do escravo contém uma inesperada faísca de provocação, talvez de revolta contida. Curiosamente, a braguilha do jovem está entreaberta.
O homem que é reduzido a seu corpo pela escravidão encontra a proposta de resgatar sua dignidade social pela valorização mítica de seu corpo como força da natureza e simulacro do sexo. A apoteose desse mito está na moda hoje nos EUA: é o jogador de basquete negro processado pelo estupro de suas tietes.
A convivência racial, após a escravatura, é atravessada por uma fantasia em que "ex-escravos" atléticos e hipersexuados se cruzam com "ex-donos" que guardaram para si a dignidade simbólica, mas ficaram com corpos franzinos e um pouco "broxas". É uma espécie de versão sexy da dialética hegeliana do mestre e do escravo.
Estou exagerando? Nada disso vale para o Brasil? Pode ser, mas olhe só: na terça-feira de manhã, no bate-papo de sexo de um grande provedor nacional de internet, havia 18 salas abertas por assinantes. Entre elas, bem cheias: "Negros F... Gays" e "Brancas na Senzala".
Portanto muitos fotógrafos documentaram o Brasil do século 19. Alguns, brasileiros ou viajantes, se interessaram em retratar os negros: as imagens exóticas de escravos do campo ou de ganho vendiam bem na Europa. E houve os que fotografavam corpos africanos para pesquisas antropométricas sobre as diferenças raciais. Outros trabalhavam para a Justiça e o arquivo dos condenados. E por aí vai.
"O Negro na Fotografia Brasileira do Século 19", de George Ermakoff, é um livro cativante. Uma vez o volume fechado, a galeria de rostos não sai da memória.
As mulheres foram humilhadas tanto quanto os homens. Há, por exemplo, o retrato de uma ama-de-leite sendo cavalgada pela filha dos donos. Claro, todos fomos um dia o cavalinho de nossos filhos, mas, no caso, a cena é uma metáfora intolerável. Resta que os retratos femininos são menos consternadores que os masculinos. O olhar das escravas é vivo: em cada uma delas reconhecemos imediatamente um semelhante.
Os homens, ao contrário, olham para nós como peixes à venda no mercado. Seu olhar não nos alcança, é opaco, perdido. Nunca encontrei um zumbi, mas aposto que, se encontrasse um, seu olhar seria esse. E entendo, pela primeira vez, por que o nome do herói de Palmares é certeiro: zumbi, o cadáver que anda.
Na página 121 do livro, está o duplo retrato de um único escravo, "com e sem chapéu". Nas duas poses, o modelo se mantém idêntico, com a mesma fixidade molhada e cega dos olhos; o chapéu rígido de feltro (coisa de branco) não o transforma nem um pouco. Ele é um gancho, no qual alguém, casualmente, pendurou o chapéu ao entrar em casa.
Imaginemos que fosse o chapéu de Alberto Henschel, o fotógrafo. Em Henschel, o dito chapéu devia produzir algum efeito, designar seu usuário como senhoril, dizer sua classe social ou, no mínimo, sua obediência ou não às regras da elegância da época. No escravo, o chapéu não pega. Nele, os apetrechos que qualificam socialmente não produzem efeito nenhum, porque falta substrato: um chapéu pode valorizar e enobrecer um cidadão, mas não um cabide.
Mas por que o olhar das mulheres retratadas é mais vivo? Por que as escravas parecem ser menos devastadas pela escravidão do que os homens?
Primeiro, porque há um valor social que é indissociável do corpo feminino, quase um efeito de sua fisiologia: a capacidade de procriar e de ser mãe. As amas-de-leite podem ser escravas, mas sua função lhes atribui uma dignidade simbólica que as ampara, que impede que elas sejam só peitos. E há mais, talvez a própria concupiscência dos donos salvasse as escravas: "Perdi clã, família, tribo e nome, sou vendida e comprada, mas meu corpo não pode ser apenas uma massa de carne, deve valer algo mais se os donos se insinuam na senzala procurando meus favores".
Ora, para os homens, qual poderia ser o remédio contra a perda de clã, tribo, nome e dignidade simbólica?
Há fotografias, no livro, que falam da tentativa frustrada de dar algum valor à paródia de uma dignidade perdida. Vestidos de trajes supostamente africanos (págs. 126 e 127, por exemplo), os escravos se tornam farsantes de seu próprio passado para satisfazer o gosto dos donos pelo exotismo. Aqui o escárnio se acrescenta à perda.
Mas há um outro caminho pelo qual, de fato, os homens escravos reencontraram algum valor social. Diz assim: "Se minha dignidade é negada, se me torno apenas um corpo, sobra-me a possibilidade de encontrar uma fonte de valor justamente neste corpo, que é o que me resta".
Não é por acaso que, nos países com um passado escravagista (ou brutalmente colonial), existe e insiste a fantasia da excepcional prestança física e sexual do escravo ou do colonizado. É, por exemplo, o garanhão árabe na França ou o negro tarado e superdotado nos EUA.
Na pág. 239 do livro, está um dos raros retratos em que o olhar do escravo contém uma inesperada faísca de provocação, talvez de revolta contida. Curiosamente, a braguilha do jovem está entreaberta.
O homem que é reduzido a seu corpo pela escravidão encontra a proposta de resgatar sua dignidade social pela valorização mítica de seu corpo como força da natureza e simulacro do sexo. A apoteose desse mito está na moda hoje nos EUA: é o jogador de basquete negro processado pelo estupro de suas tietes.
A convivência racial, após a escravatura, é atravessada por uma fantasia em que "ex-escravos" atléticos e hipersexuados se cruzam com "ex-donos" que guardaram para si a dignidade simbólica, mas ficaram com corpos franzinos e um pouco "broxas". É uma espécie de versão sexy da dialética hegeliana do mestre e do escravo.
Estou exagerando? Nada disso vale para o Brasil? Pode ser, mas olhe só: na terça-feira de manhã, no bate-papo de sexo de um grande provedor nacional de internet, havia 18 salas abertas por assinantes. Entre elas, bem cheias: "Negros F... Gays" e "Brancas na Senzala".
quinta-feira, 9 de dezembro de 2004
A receita de Mario Tatini
Acaba de ser lançado "A Receita de Mario Tatini".
O livro, ágil e prazeroso, foi escrito por Teresa Cristófani Barreto a partir dos depoimentos de Mario e da família. Conta a saga dos Tatini, originários de Florença, cujo patriarca, Fabrizio, chegou ao Brasil em 1953. E, em particular, conta a história de Mario, que veio meio a contragosto, em 54, trazendo nas malas dois fogareiros. Ele ajudou o pai a lançar a cantina Don Fabrizio, em Santos; em 58, fundou o famoso Don Fabrizio, em São Paulo; cozinhou ao vivo semanalmente nas redes de televisão dos anos 60 e, desde o começo dos 80, anima o restaurante Tatini, na rua Batataes.
É claro, o leitor descobre, enfim, o segredo do "Fettuccine à Don", mas isso não é o essencial: o livro é tocante por outras razões.
Primeiro, é a história de uma imigração recente, da última onda (se é que foi uma onda), aquela dos que não vieram para substituir a mão de obra escrava e, portanto, logo puderam praticar os dons tradicionais do imigrante: a coragem e a vontade de arregaçar as mangas e de contribuir à vida do novo país.
Nestes dias, celebrando a memória de Celso Furtado, voltei a ler alguns de seus escritos. Ocorreu-me que o destino do Brasil teria sido melhor se a onda que trouxe Mario Tatini não tivesse sido a última ou quase.
A imigração é inimiga da concepção (herdada do saque colonial) pela qual a riqueza de uma nação consiste nos produtos que é possível extrair de suas vísceras e de seus campos (do pau-brasil ao café, passando pelos diamantes e pela cana). O imigrante, que traz seus braços, aposta, ao contrário, na idéia de que a riqueza de uma nação vem do trabalho de seus cidadãos.
Se essa idéia tivesse prevalecido nos últimos 50 anos, talvez o país tivesse conseguido, nas palavras de Celso Furtado, "se voltar para dentro", ou seja, crescer distribuindo a renda e fomentando a demanda interna. Por quê? Pois bem, se a riqueza é um bolo doado por Deus ou pela natureza, fechemos as fronteiras e sejamos poucos na hora de dividir. E tanto melhor para quem tem a faca na mão e decide as porções. A coisa muda se o bolo parece depender dos esforços culinários de todos e da multiplicação dos doceiros.
A história dos Tatini me toca também porque é a história de vidas dedicadas à arte de preparar os alimentos e servi-los com graça. Certo, eles contribuíram bastante para que São Paulo se tornasse um grande pólo gastronômico. Mas há mais. Durante anos, viajei muito. Passei meu tempo em lugares que permaneciam um pouco estrangeiros, por eu estar sozinho, sem minha mulher e os filhos, com quem compartilhar a alegria de sujar panelas e pratos. Ora, quando o lar nos faz falta, não tem nada que valha um restaurante onde a gente se sinta em casa. Reciprocamente, que a gente se sinta em casa talvez seja o sinal de um verdadeiro restaurante.
Ora, o livro é repleto de anedotas divertidas. Juscelino, por exemplo, tirava os sapatos embaixo da mesa na hora de comer e não usava meias. Mas considere sobretudo as histórias do casal que brigou a tapas, da mulher abandonada que queria que alguém a levasse para um hotel ou a das duas senhoras um pouco bêbadas que começaram a se beijar ardentemente. Não são casos estranhos. No restaurante, é fácil esquecer os limites entre espaço público e espaço privado, pois trata-se do lugar público que celebra o âmago da intimidade: a mesa. E sinto para quem pensa que esse âmago seja a cama: uma família acaba quando ela não se reúne mais ao redor de uma mesa, não quando marido e mulher não se deitam mais juntos.
Não sei o que anima os que dedicam a vida a "restaurar" os outros, mas uma lembrança me ajuda a pensar. Quando eu morava em Paris, um dos meus amigos mais queridos era Jean Bergès, psicanalista e psiquiatra, que, aliás, poucos meses atrás, teve a péssima idéia de me deixar aqui na Terra sem sua companhia. Quase a cada noite, Jean convidava amigos e conhecidos para jantar na sua casa. Cardápio fixo: "foie gras" de ganso, fraldinha na chapa malpassada, salada verde, um camembert bem maduro, sorvete de fruta, pão rústico e vinho de Cahors, sua região de origem.
Tanto Jean quanto Marika, sua mulher, terminavam de atender tarde e, na França, nada de empregados para pôr a mesa, preparar os alimentos e servir.
Um dia, perguntei a Jean onde ele achava a paixão necessária. Respondeu: "Nós (os psicanalistas) passamos o dia escutando queixas e oferecendo em troca palavras. Nem sonhamos em poder dar a nossos pacientes algo que os faça felizes. Oferecer uma boa comida é minha compensação. Enfim, proporciono aos outros uma verdadeira satisfação". Os convidados reagiam à altura: o prazer de receber uma boa comida talvez seja o mais antigo de todos, aquele que mais nos faz sentir amados e benquistos, ou seja, como disse, "em casa".
Agora, se você visitar o restaurante de Mario, eis um prato que não está no cardápio: berinjela à italiana (não à siciliana, que é com queijo). São fatias de berinjela ao forno, com tomate fresco, fragmentos de "alici", azeite de oliva e, obviamente, algo mais, que ele não revela.
O livro, ágil e prazeroso, foi escrito por Teresa Cristófani Barreto a partir dos depoimentos de Mario e da família. Conta a saga dos Tatini, originários de Florença, cujo patriarca, Fabrizio, chegou ao Brasil em 1953. E, em particular, conta a história de Mario, que veio meio a contragosto, em 54, trazendo nas malas dois fogareiros. Ele ajudou o pai a lançar a cantina Don Fabrizio, em Santos; em 58, fundou o famoso Don Fabrizio, em São Paulo; cozinhou ao vivo semanalmente nas redes de televisão dos anos 60 e, desde o começo dos 80, anima o restaurante Tatini, na rua Batataes.
É claro, o leitor descobre, enfim, o segredo do "Fettuccine à Don", mas isso não é o essencial: o livro é tocante por outras razões.
Primeiro, é a história de uma imigração recente, da última onda (se é que foi uma onda), aquela dos que não vieram para substituir a mão de obra escrava e, portanto, logo puderam praticar os dons tradicionais do imigrante: a coragem e a vontade de arregaçar as mangas e de contribuir à vida do novo país.
Nestes dias, celebrando a memória de Celso Furtado, voltei a ler alguns de seus escritos. Ocorreu-me que o destino do Brasil teria sido melhor se a onda que trouxe Mario Tatini não tivesse sido a última ou quase.
A imigração é inimiga da concepção (herdada do saque colonial) pela qual a riqueza de uma nação consiste nos produtos que é possível extrair de suas vísceras e de seus campos (do pau-brasil ao café, passando pelos diamantes e pela cana). O imigrante, que traz seus braços, aposta, ao contrário, na idéia de que a riqueza de uma nação vem do trabalho de seus cidadãos.
Se essa idéia tivesse prevalecido nos últimos 50 anos, talvez o país tivesse conseguido, nas palavras de Celso Furtado, "se voltar para dentro", ou seja, crescer distribuindo a renda e fomentando a demanda interna. Por quê? Pois bem, se a riqueza é um bolo doado por Deus ou pela natureza, fechemos as fronteiras e sejamos poucos na hora de dividir. E tanto melhor para quem tem a faca na mão e decide as porções. A coisa muda se o bolo parece depender dos esforços culinários de todos e da multiplicação dos doceiros.
A história dos Tatini me toca também porque é a história de vidas dedicadas à arte de preparar os alimentos e servi-los com graça. Certo, eles contribuíram bastante para que São Paulo se tornasse um grande pólo gastronômico. Mas há mais. Durante anos, viajei muito. Passei meu tempo em lugares que permaneciam um pouco estrangeiros, por eu estar sozinho, sem minha mulher e os filhos, com quem compartilhar a alegria de sujar panelas e pratos. Ora, quando o lar nos faz falta, não tem nada que valha um restaurante onde a gente se sinta em casa. Reciprocamente, que a gente se sinta em casa talvez seja o sinal de um verdadeiro restaurante.
Ora, o livro é repleto de anedotas divertidas. Juscelino, por exemplo, tirava os sapatos embaixo da mesa na hora de comer e não usava meias. Mas considere sobretudo as histórias do casal que brigou a tapas, da mulher abandonada que queria que alguém a levasse para um hotel ou a das duas senhoras um pouco bêbadas que começaram a se beijar ardentemente. Não são casos estranhos. No restaurante, é fácil esquecer os limites entre espaço público e espaço privado, pois trata-se do lugar público que celebra o âmago da intimidade: a mesa. E sinto para quem pensa que esse âmago seja a cama: uma família acaba quando ela não se reúne mais ao redor de uma mesa, não quando marido e mulher não se deitam mais juntos.
Não sei o que anima os que dedicam a vida a "restaurar" os outros, mas uma lembrança me ajuda a pensar. Quando eu morava em Paris, um dos meus amigos mais queridos era Jean Bergès, psicanalista e psiquiatra, que, aliás, poucos meses atrás, teve a péssima idéia de me deixar aqui na Terra sem sua companhia. Quase a cada noite, Jean convidava amigos e conhecidos para jantar na sua casa. Cardápio fixo: "foie gras" de ganso, fraldinha na chapa malpassada, salada verde, um camembert bem maduro, sorvete de fruta, pão rústico e vinho de Cahors, sua região de origem.
Tanto Jean quanto Marika, sua mulher, terminavam de atender tarde e, na França, nada de empregados para pôr a mesa, preparar os alimentos e servir.
Um dia, perguntei a Jean onde ele achava a paixão necessária. Respondeu: "Nós (os psicanalistas) passamos o dia escutando queixas e oferecendo em troca palavras. Nem sonhamos em poder dar a nossos pacientes algo que os faça felizes. Oferecer uma boa comida é minha compensação. Enfim, proporciono aos outros uma verdadeira satisfação". Os convidados reagiam à altura: o prazer de receber uma boa comida talvez seja o mais antigo de todos, aquele que mais nos faz sentir amados e benquistos, ou seja, como disse, "em casa".
Agora, se você visitar o restaurante de Mario, eis um prato que não está no cardápio: berinjela à italiana (não à siciliana, que é com queijo). São fatias de berinjela ao forno, com tomate fresco, fragmentos de "alici", azeite de oliva e, obviamente, algo mais, que ele não revela.
quinta-feira, 2 de dezembro de 2004
Uma condição básica para uma polícia eficiente
Na quinta passada, participei do seminário "Violência, Desafios e Ações", organizado por José Gregori. Durante um dia, ao redor de uma mesa, sem púlpito e sem público, duas dezenas de pessoas de formação variada expuseram e discutiram propostas.
A reunião era motivada por esta constatação: a falta de segurança está entre as pragas que mais estragam nossa vida, mas, apesar disso, ela não parece ser o objeto de planos de ação orgânicos. É raro que ocupe um lugar de verdadeiro destaque nas propostas de governo.
O debate foi extremamente proveitoso, e a iniciativa dará seus frutos. Entretanto, há uma observação que levei para a mesa e que quero repetir aqui.
É banal acusar a mídia, sobretudo a televisão e o cinema, de glamourizar a violência. Embora não haja pesquisas sérias que estabeleçam uma relação direta entre os mortos nas telas e os mortos na rua, pede-se uma censura ou autocensura, com a idéia de que narrativas ou notícias menos violentas inspirariam comportamentos menos belicosos (sobretudo aos jovens).
Ora, não acredito que forma nenhuma de censura seja benéfica. Mas reconheço que os ideais sociais dependem muito de nossa cultura de massa. Então fazer o quê? Pois bem, o truque não é retirar, é acrescentar. Explico.
Quando era criança (logo depois da Segunda Guerra Mundial), havia duas grandes brincadeiras para os meninos: alemães-americanos e polícia-ladrão. No primeiro caso, a gente queria ser americano; no segundo, queria ser polícia. Quando nos tocava ser alemão ou bandido, brincávamos com uma certa resignação, pois era implícito que, no fim, alemães e bandidos seriam derrotados, presos ou mortos.
É provável que brincar de polícia-ladrão não esteja mais na moda. Mas, se nossos filhos quisessem brincar assim, com quem se identificariam?
Do lado dos bandidos, não lhes seria difícil encontrar material: fugas mirabolantes, riquezas fáceis, jovens como eles exibindo suas armas e aterrorizando os adultos, destinos trágicos muito mais interessantes que a escola e as aulas de piano ou de inglês.
E do lado da polícia? Se eles têm televisão a cabo, conhecem "Starsky e Hutch", "Maigret", "Law and Order", "The Shield" e por aí vai. Se gostam de ler, conhecem Mike Hammer, Sherlock Holmes, Hercule Poirot etc.
Você reparou? Para um menino brasileiro que queira brincar de polícia-ladrão, os bandidos podem ser brasileiros, mas a polícia é americana, inglesa, francesa, alemã, enfim, tudo salvo brasileira.
A cultura nacional propõe um vasto repertório de malfeitores. É normal: uma sociedade individualista idealiza a transgressão, por conseqüência, ela nunca deixa de ser fascinada por seus delinqüentes. Nisso, a cultura brasileira não está sozinha. Mas é estranho que ela não proponha o contraponto: um repertório de guardiões da ordem (policiais ou detetives particulares) que excitem o imaginário da gente ao menos tanto quanto os malfeitores.
Não se trata, portanto, de indignar-se porque, sei lá, "Cidade de Deus" transformaria delinqüentes em protagonistas de uma história que pode seduzir o jovem espectador. Trata-se, isso sim, de estranhar que o mesmo espectador não tenha a chance de ser seduzido pelas histórias de quem combate o crime.
Alguém observará que não poderia ser diferente, visto que, na sociedade brasileira, o policial está longe de constituir uma imagem de sucesso social. Se seu filho expressar o desejo de se tornar policial, você, pai ou mãe de classe média, como reagirá?
Mas a pobreza da remuneração não é uma causa, é um corolário. Uma cultura que não consegue romancear a polícia não tem como cuidar para que ser policial implique um status razoavelmente digno. A sociedade organizada por essa cultura, obviamente, não consegue se dotar de uma polícia à altura de sua tarefa.
As razões por essa falha cultural são conhecidas além da conta (inconsistência do pacto social, modernização sem a inclusão de todos e por aí vai), mas não justificam nenhuma resignação.
No caso, em vez de deplorar os efeitos nefastos da cultura de massa, poderíamos utilizar seu poder. Por que a TV não nos proporia um (ou vários) "Law and Order" e "Starsky e Hutch" brasileiros? Por que o cinema nacional não nos proporia as histórias de policiais da Brigada, da Civil, da Federal ou da Municipal? E de procuradores?
E, por favor, não só a denúncia das miseráveis condições das forças da ordem. Nem da corrupção que as espreita porque, excluídas da classe média, parecem ser convidadas a pagar-se saqueando. Precisamos de histórias pelas quais ser policial seja, em todos os sentidos, uma profissão "legal".
Pois isto é certo: teremos polícia no dia em que não será ridículo nem vergonhoso que um menino sonhe em ser policial brasileiro.
Até agora, na cultura nacional, só conheço um exemplo de policial que dá vontade de ser policial. É o delegado Espinosa dos romances de Luiz Alfredo Garcia-Rosa, os quais têm um único defeito: são poucos.
quinta-feira, 25 de novembro de 2004
Lula e os peões
Estréiam amanhã dois documentários notáveis, "Entreatos" e "Peões".
Em "Entreatos", João Moreira Salles documenta os últimos 30 dias da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, desde pouco antes do primeiro turno até o dia da vitória.
Em "Peões", Eduardo Coutinho entrevista 21 metalúrgicos e metalúrgicas do ABC paulista que participaram das greves de 1979 e 1980, quando se afirmou a liderança de Lula.
Os filmes são formalmente diferentes: "Entreatos" é uma filmagem indiscreta, uma espécie de longo flagrante, enquanto "Peões" é um documentário ativo, em que os protagonistas são convidados a falar. Eles são unidos, obviamente, por um fio narrativo, que vai do bojo do percurso político de Lula até sua eleição à Presidência.
E há uma outra razão que reúne os dois filmes: juntos, eles constituem uma meditação comovedora sobre as relações entre o público e o privado, ou melhor, entre o cotidiano de nossas vidas e a história que lhe dá sentido, que o justifica e, eventualmente, que o atropela.
Primeiro, "Peões". As personagens escolhidas por Coutinho são trabalhadores do ABC que participaram das greves de 79 e 80, mas que não se enveredaram para a política.
Para realizar o documentário, foi necessário reconhecer e encontrar militantes "anônimos" que apareciam em filmagens e fotografias da época. O espectador assiste, aliás, a reuniões em que grupos de sindicalistas se dedicam a essa tarefa. Também é apresentado o momento em que as personagens se deparam com suas próprias imagens nas manifestações de 79 ou 80.
É possível que você tenha participado de uma daquelas manifestações de massa que, retroativamente, parecem mudar um pouco o rumo da história. Talvez você estivesse no comício das Diretas na praça da Sé, em janeiro de 1984, ou na Passeata dos Cem Mil, em 1968. Claro, nem por isso você aparece nas fotos (evitar de aparecer nas fotos podia ser uma medida razoável de prudência política), mas, ainda hoje, contemplando as imagens da multidão, você se lembra de que estava lá, em algum lugar, no meio daquele mar de povo.
Talvez você tente se enxergar na multidão. Talvez você brinque de "Onde Está Wally na História?". Afinal, seria um jeito de dar a sua vida uma significação maior do que as dores e os prazeres de sua vida amorosa, familiar e profissional.
A qualidade do filme de Coutinho e a razão da emoção que ele proporciona é essa: as entrevistas devolvem aos ex-metalúrgicos "anônimos" o orgulho de terem estado lá, de terem sido protagonistas de um grande momento coletivo de protesto e de liberdade.
O cotidiano do aposentado é resgatado por uma lembrança que confere lustre e sentido à vida.
Ora, "Entreatos" é o contraponto de "Peões". A significação coletiva do momento apresentado é evidente e invasiva: Lula se torna presidente do Brasil. Mas o filme privilegia quase exclusivamente as cenas do cotidiano, espreita as palavras e os gestos que, geralmente, seriam excluídos dos livros de história.
A questão é saber se esses gestos e essas palavras ainda são possíveis. Num momento do filme, Lula observa: "Estou começando a ficar preocupado com o que é que vai mudar na minha vida a partir de uma eleição (...) com a perda de liberdade". Ele está pensando no peso dos rituais da Presidência: "Aquela coisa toda oficial".
Essa consideração, pensativa e tocante, faz que o humor brincalhão de Lula no filme assuma, de repente, um tom nostálgico, como se fosse o resto de uma parte de seu ser condenada ao silêncio pelos rigores de sua futura função.
Os peões de Coutinho se afastaram do momento em que suas vidas fizeram história. O Lula de João Salles decidiu fazer história e sabe que, por isso, está sacrificando um pouco de sua vida.
Talvez essa nostalgia do cotidiano perdido seja o traço mais íntimo de Lula presidente. Ela se expressa, por exemplo, na obstinação em continuar sendo "ele mesmo".
A cada vez que Lula improvisa, afastando-se do texto escrito de um discurso, imagino que sua assessoria de imprensa segure a respiração. Mas, seja qual for a digressão, resta que a dificuldade em adotar a retórica abstrata do poder é uma qualidade moral.
O ditado diz que não há grandes homens para seus mordomos. Ou seja, o privado nunca seria glorioso, e o grande homem seria aquele que não luta com o nó de sua gravata, pois já está, sempre, engravatado: ele renunciou às "misérias" privadas para enaltecer sua significação pública.
Ora, sempre pensei o contrário do ditado. Parece-me que só pode haver grandes homens para seus mordomos. Não porque os mordomos conheceriam os segredos de alcova que comprovam ou não a grandeza do homem. Mas porque uma condição da grandeza está na própria incapacidade de renunciar à concretude da vida privada: se não há nada para mordomo ver, é que a função substituiu o sujeito. Ele não terá como ser grande, por falta de ser homem.
Essa condição mínima da grandeza vale sobretudo para um governante, pois sua incapacidade de renunciar à sua vida privada, nesse caso, deveria garantir que ele não esquecerá a vida concreta dos governados.
Em "Entreatos", João Moreira Salles documenta os últimos 30 dias da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, desde pouco antes do primeiro turno até o dia da vitória.
Em "Peões", Eduardo Coutinho entrevista 21 metalúrgicos e metalúrgicas do ABC paulista que participaram das greves de 1979 e 1980, quando se afirmou a liderança de Lula.
Os filmes são formalmente diferentes: "Entreatos" é uma filmagem indiscreta, uma espécie de longo flagrante, enquanto "Peões" é um documentário ativo, em que os protagonistas são convidados a falar. Eles são unidos, obviamente, por um fio narrativo, que vai do bojo do percurso político de Lula até sua eleição à Presidência.
E há uma outra razão que reúne os dois filmes: juntos, eles constituem uma meditação comovedora sobre as relações entre o público e o privado, ou melhor, entre o cotidiano de nossas vidas e a história que lhe dá sentido, que o justifica e, eventualmente, que o atropela.
Primeiro, "Peões". As personagens escolhidas por Coutinho são trabalhadores do ABC que participaram das greves de 79 e 80, mas que não se enveredaram para a política.
Para realizar o documentário, foi necessário reconhecer e encontrar militantes "anônimos" que apareciam em filmagens e fotografias da época. O espectador assiste, aliás, a reuniões em que grupos de sindicalistas se dedicam a essa tarefa. Também é apresentado o momento em que as personagens se deparam com suas próprias imagens nas manifestações de 79 ou 80.
É possível que você tenha participado de uma daquelas manifestações de massa que, retroativamente, parecem mudar um pouco o rumo da história. Talvez você estivesse no comício das Diretas na praça da Sé, em janeiro de 1984, ou na Passeata dos Cem Mil, em 1968. Claro, nem por isso você aparece nas fotos (evitar de aparecer nas fotos podia ser uma medida razoável de prudência política), mas, ainda hoje, contemplando as imagens da multidão, você se lembra de que estava lá, em algum lugar, no meio daquele mar de povo.
Talvez você tente se enxergar na multidão. Talvez você brinque de "Onde Está Wally na História?". Afinal, seria um jeito de dar a sua vida uma significação maior do que as dores e os prazeres de sua vida amorosa, familiar e profissional.
A qualidade do filme de Coutinho e a razão da emoção que ele proporciona é essa: as entrevistas devolvem aos ex-metalúrgicos "anônimos" o orgulho de terem estado lá, de terem sido protagonistas de um grande momento coletivo de protesto e de liberdade.
O cotidiano do aposentado é resgatado por uma lembrança que confere lustre e sentido à vida.
Ora, "Entreatos" é o contraponto de "Peões". A significação coletiva do momento apresentado é evidente e invasiva: Lula se torna presidente do Brasil. Mas o filme privilegia quase exclusivamente as cenas do cotidiano, espreita as palavras e os gestos que, geralmente, seriam excluídos dos livros de história.
A questão é saber se esses gestos e essas palavras ainda são possíveis. Num momento do filme, Lula observa: "Estou começando a ficar preocupado com o que é que vai mudar na minha vida a partir de uma eleição (...) com a perda de liberdade". Ele está pensando no peso dos rituais da Presidência: "Aquela coisa toda oficial".
Essa consideração, pensativa e tocante, faz que o humor brincalhão de Lula no filme assuma, de repente, um tom nostálgico, como se fosse o resto de uma parte de seu ser condenada ao silêncio pelos rigores de sua futura função.
Os peões de Coutinho se afastaram do momento em que suas vidas fizeram história. O Lula de João Salles decidiu fazer história e sabe que, por isso, está sacrificando um pouco de sua vida.
Talvez essa nostalgia do cotidiano perdido seja o traço mais íntimo de Lula presidente. Ela se expressa, por exemplo, na obstinação em continuar sendo "ele mesmo".
A cada vez que Lula improvisa, afastando-se do texto escrito de um discurso, imagino que sua assessoria de imprensa segure a respiração. Mas, seja qual for a digressão, resta que a dificuldade em adotar a retórica abstrata do poder é uma qualidade moral.
O ditado diz que não há grandes homens para seus mordomos. Ou seja, o privado nunca seria glorioso, e o grande homem seria aquele que não luta com o nó de sua gravata, pois já está, sempre, engravatado: ele renunciou às "misérias" privadas para enaltecer sua significação pública.
Ora, sempre pensei o contrário do ditado. Parece-me que só pode haver grandes homens para seus mordomos. Não porque os mordomos conheceriam os segredos de alcova que comprovam ou não a grandeza do homem. Mas porque uma condição da grandeza está na própria incapacidade de renunciar à concretude da vida privada: se não há nada para mordomo ver, é que a função substituiu o sujeito. Ele não terá como ser grande, por falta de ser homem.
Essa condição mínima da grandeza vale sobretudo para um governante, pois sua incapacidade de renunciar à sua vida privada, nesse caso, deveria garantir que ele não esquecerá a vida concreta dos governados.
domingo, 21 de novembro de 2004
"A Dona da História"
Assisti a "A Dona da História", de Daniel Filho, seguindo o conselho de amigos e pacientes, todos entusiastas. Queriam que eu visse, porque para eles tinha sido uma experiência comovedora e feliz. Pois bem, agradeço-lhes.
O filme funciona como uma maravilhosa sessão de terapia, para casais e para solteiros. Explico por quê.
Primeiro, um resumo da trama (adaptada da peça homônima de João Falcão). Nesta altura, quase todos devem conhecê-la.
Carolina e Luís Cláudio são casados há 30 anos. É aquele momento de sossego, quando "as crianças" já foram embora, e está na hora de vender o apartamento onde elas foram criadas. Quem sabe agora dê para fazer aquela famosa viagem, não é?
É também o momento de olhar para trás e fazer um balanço. Carolina se pergunta se sua cara de hoje tem algo a ver com seus sonhos adolescentes. No meio dessa tarefa impossível (ou melhor, possível, mas logicamente decepcionante), ela acaba descobrindo que a banalidade aparente de sua vida (como de qualquer vida, na verdade) constitui uma história que vale a pena. Ou seja, que valeu a pena ser vivida e vale a pena ser contada.
Disse que o filme é uma sessão de terapia para casais. Faça o teste: assista com seu companheiro ou sua companheira de muitos anos. Talvez ambos achem que estão hoje numa união um pouco chocha: uma televisão à noite, transa-se uma vez por semana e olhe lá. Esta união, durante anos, foi uma batalha com fraldas, mamadeiras, febres, choros noturnos e orientadoras pedagógicas, sem contar as corridas noturnas para apanhar "as crianças" naquelas festas malditas. Faz tempo que a dificuldade do fim de mês produz brigas inúteis. Às vezes, parece-lhes que esta união roubou os melhores anos de suas vidas. Você não foi pintor maldito em Pigalle porque não podia largar tudo e viver de expedientes. E você deixou de dançar jazz e tentar fortuna na Broadway porque, depois de duas gravidezes, o corpo não é mais o mesmo. É tudo verdade, ou quase.
Parêntese aberto. É "quase" verdade porque a lista das renúncias que o outro nos impôs serve para evitar a responsabilidade por nossas próprias escolhas. Quis ter dois filhos e, em vez de medir o custo de meu próprio desejo, prefiro achar que foi o parceiro que matou meus outros sonhos, aqueles que deixei de lado para realizar a vontade de ser pai ou mãe. Parêntese fechado.
Mas imaginemos que seja verdade, que nossas renúncias sempre aconteçam por causa do outro.
Mesmo assim, aposto que você sairá da sala de cinema pensando que esta sua vida, que parece pequena, protegida demais, distante dos arrepios do mar aberto e das emoções do começo de seu amor, esta vida, na verdade, foi uma grande aventura. A banalidade do cotidiano pode dar samba; é só saber olhar (e tocar cavaquinho ou contar) com ternura nem tanto para o parceiro que está ao seu lado, mas para você mesmo ou mesma, para a vida que foi e é a sua.
Quem operará esse milagre? O próprio filme. Pois, nele, a história de Carolina e Luís Cláudio, assim como é, com seus bate-bocas e seus sonhos perdidos, torna-se um romance.
Nossa cultura idealiza o amor romântico. Mas você deve ter constatado: filmes e contos propõem quase sempre que idealizemos amores impossíveis, separações e nostalgias arrasadoras ou primeiros encontros deslumbrantes. Pouquíssimas vezes, encontramos uma visão ideal de como é durar no amor e viver juntos. Em geral, esse é um tema para comédia ou "vaudeville". É sublime apaixonar-se, separar-se ou ser separado pela fatalidade, mas é ridículo conviver. O filme de Daniel Filho é uma exceção: ele é freqüentemente engraçado, é claro, mas não é uma versão cômica do casamento. É uma (rara) visão do amor que dura, que é parecido com os nossos amores e que, mesmo assim, pode ser idealizado.
Não pense que o filme seja terapêutico apenas para casais com dez anos de união ou mais. Como disse, ele vale também para solteiros.
No sábado passado, com um grupo de colegas, falávamos de como é importante e complicado, numa terapia, fazer que alguém dê valor à sua própria vida. Uma colega notou que muitos pais ateus criam seus filhos numa religião; querem que os jovens tenham uma boa razão de viver.
Ora, uma tarefa essencial do terapeuta poderia ser resumida assim: ajudar cada um a dar significação à sua vida, sem que, por isso, ele deva acreditar num sentido do mundo. Ou seja, permitir que cada um descubra que, mesmo que não faça parte de um grande esquema (divino ou humano), sua vida vale a pena. E por que valeria a pena? Simplesmente porque cada vida pode ser um romance que merece ser contado. Se soubermos atribuir à nossa vida a qualidade de uma história, reconheceremos sua dignidade.
Como se consegue isso? O percurso de Carolina, no filme, mostra exata e humildemente como.
Resta apenas dizer que Marieta Severo e Débora Falabella (Carolina, agora e no passado), assim como Antônio Fagundes e Rodrigo Santoro (Luís Cláudio, agora e no passado) são perfeitos. Aliás, Marieta Severo é mais que perfeita.
Obrigado a Daniel Filho e a toda a turma.
O filme funciona como uma maravilhosa sessão de terapia, para casais e para solteiros. Explico por quê.
Primeiro, um resumo da trama (adaptada da peça homônima de João Falcão). Nesta altura, quase todos devem conhecê-la.
Carolina e Luís Cláudio são casados há 30 anos. É aquele momento de sossego, quando "as crianças" já foram embora, e está na hora de vender o apartamento onde elas foram criadas. Quem sabe agora dê para fazer aquela famosa viagem, não é?
É também o momento de olhar para trás e fazer um balanço. Carolina se pergunta se sua cara de hoje tem algo a ver com seus sonhos adolescentes. No meio dessa tarefa impossível (ou melhor, possível, mas logicamente decepcionante), ela acaba descobrindo que a banalidade aparente de sua vida (como de qualquer vida, na verdade) constitui uma história que vale a pena. Ou seja, que valeu a pena ser vivida e vale a pena ser contada.
Disse que o filme é uma sessão de terapia para casais. Faça o teste: assista com seu companheiro ou sua companheira de muitos anos. Talvez ambos achem que estão hoje numa união um pouco chocha: uma televisão à noite, transa-se uma vez por semana e olhe lá. Esta união, durante anos, foi uma batalha com fraldas, mamadeiras, febres, choros noturnos e orientadoras pedagógicas, sem contar as corridas noturnas para apanhar "as crianças" naquelas festas malditas. Faz tempo que a dificuldade do fim de mês produz brigas inúteis. Às vezes, parece-lhes que esta união roubou os melhores anos de suas vidas. Você não foi pintor maldito em Pigalle porque não podia largar tudo e viver de expedientes. E você deixou de dançar jazz e tentar fortuna na Broadway porque, depois de duas gravidezes, o corpo não é mais o mesmo. É tudo verdade, ou quase.
Parêntese aberto. É "quase" verdade porque a lista das renúncias que o outro nos impôs serve para evitar a responsabilidade por nossas próprias escolhas. Quis ter dois filhos e, em vez de medir o custo de meu próprio desejo, prefiro achar que foi o parceiro que matou meus outros sonhos, aqueles que deixei de lado para realizar a vontade de ser pai ou mãe. Parêntese fechado.
Mas imaginemos que seja verdade, que nossas renúncias sempre aconteçam por causa do outro.
Mesmo assim, aposto que você sairá da sala de cinema pensando que esta sua vida, que parece pequena, protegida demais, distante dos arrepios do mar aberto e das emoções do começo de seu amor, esta vida, na verdade, foi uma grande aventura. A banalidade do cotidiano pode dar samba; é só saber olhar (e tocar cavaquinho ou contar) com ternura nem tanto para o parceiro que está ao seu lado, mas para você mesmo ou mesma, para a vida que foi e é a sua.
Quem operará esse milagre? O próprio filme. Pois, nele, a história de Carolina e Luís Cláudio, assim como é, com seus bate-bocas e seus sonhos perdidos, torna-se um romance.
Nossa cultura idealiza o amor romântico. Mas você deve ter constatado: filmes e contos propõem quase sempre que idealizemos amores impossíveis, separações e nostalgias arrasadoras ou primeiros encontros deslumbrantes. Pouquíssimas vezes, encontramos uma visão ideal de como é durar no amor e viver juntos. Em geral, esse é um tema para comédia ou "vaudeville". É sublime apaixonar-se, separar-se ou ser separado pela fatalidade, mas é ridículo conviver. O filme de Daniel Filho é uma exceção: ele é freqüentemente engraçado, é claro, mas não é uma versão cômica do casamento. É uma (rara) visão do amor que dura, que é parecido com os nossos amores e que, mesmo assim, pode ser idealizado.
Não pense que o filme seja terapêutico apenas para casais com dez anos de união ou mais. Como disse, ele vale também para solteiros.
No sábado passado, com um grupo de colegas, falávamos de como é importante e complicado, numa terapia, fazer que alguém dê valor à sua própria vida. Uma colega notou que muitos pais ateus criam seus filhos numa religião; querem que os jovens tenham uma boa razão de viver.
Ora, uma tarefa essencial do terapeuta poderia ser resumida assim: ajudar cada um a dar significação à sua vida, sem que, por isso, ele deva acreditar num sentido do mundo. Ou seja, permitir que cada um descubra que, mesmo que não faça parte de um grande esquema (divino ou humano), sua vida vale a pena. E por que valeria a pena? Simplesmente porque cada vida pode ser um romance que merece ser contado. Se soubermos atribuir à nossa vida a qualidade de uma história, reconheceremos sua dignidade.
Como se consegue isso? O percurso de Carolina, no filme, mostra exata e humildemente como.
Resta apenas dizer que Marieta Severo e Débora Falabella (Carolina, agora e no passado), assim como Antônio Fagundes e Rodrigo Santoro (Luís Cláudio, agora e no passado) são perfeitos. Aliás, Marieta Severo é mais que perfeita.
Obrigado a Daniel Filho e a toda a turma.
quinta-feira, 18 de novembro de 2004
"Transex"
Assisti (com atraso) a "Transex", de Rodolfo García Vázquez, no Espaço dos Satyros da praça Roosevelt. Na peça, além dos atores, atuam Phedra D. Córdoba e Savana Meirelles, no papel de si mesmas. Phedra é uma das transexuais mais ilustres de São Paulo. Savana (Bibi), também transexual, apareceu na mídia em 2003, ao defender a idéia de que ela é a namorada de um extraterrestre que a visita regularmente.
Um ano atrás, num café da praça Roosevelt, Phedra e Bibi (que, na época, moravam juntas) discutiam sobre o namorado de Bibi. Phedra, pé no chão, declarava que não podia ser um extraterrestre, mas se tratava, obviamente, de um exu. Rodolfo e Ivam ouviram essa conversa, que inspirou a peça.
Não sei dizer se o namorado de Bibi é um exu ou um extraterrestre. Mas sei que, em nossa cultura, quem não consegue se posicionar na alternativa entre dois gêneros (masculino ou feminino) se torna, aos olhos dos demais, um ser de outro mundo. Não me estranha, portanto, que, para ser amada, Bibi anseie encontrar alguém que a compreenda, um ser de outro mundo, extraterrestre ou exu que seja.
De qualquer forma, "Transex" é uma peça para quem não acha que as e os transexuais sejam seres de outro mundo ou para os que querem parar de pensar assim.
O sucesso nessa empreitada é possível porque as protagonistas de "Transex" (como todas as transexuais, aliás) não sofrem de estranhos desvios sexuais. Elas sofrem de uma dificuldade em estabelecer e afirmar uma identidade (feminina, por exemplo), que elas sentem ser a sua, mas que não corresponde ao corpo que lhes coube ao nascer. Se se prostituem, é por duas razões: porque a sociedade não lhes oferece muitas outras chances de ganhar a vida e porque a prostituição talvez seja um jeito de confirmar o gênero que elas vivem como seu. Se tantos homens me desejam, deve ser verdade que sou mulher.
Estatísticas de países europeus em que a cirurgia de mudança de sexo é legal dizem que um homem em cada 30 mil e uma mulher em cada 100 mil procuram essa intervenção cirúrgica. Poucos, não é? Mas resta saber quantos, sem chegar a tanto, convivem com alguma contradição entre seu corpo e sua identidade de gênero.
A sensação de pertencer a um gênero que contradiz a anatomia do sujeito é menos rara do que a gente imagina. Consideremos uma distinção (freqüentemente adotada) entre travestismo e transexualismo.
Travesti seria quem não vive propriamente um divórcio entre seu gênero e seu corpo, mas veste os apetrechos do outro gênero apenas como fetiches para alimentar desejo e fantasia sexuais.
Transexual seria quem conhece uma contradição aguda entre seu sexo anatômico e sua identidade de gênero, a ponto de agir para mudar seu corpo e ajustá-lo (à força de hormônios e cirurgias) ao gênero que ele sente ser o seu.
Essa distinção simplifica uma realidade que, de fato, é menos descontínua. Num livro recente, Helen Boyd descreve sua relação com o marido, que gosta de usar roupa feminina, "My Husband Betty: Love, Sex and Life with a Cross-Dresser" (Meu Marido Betty: O Amor, o Sexo e a Vida com um Travesti). No começo, ela parece contar um jogo sexual que não compromete nem um pouco a identidade de gênero do marido. Afinal, por que um homem não brincaria de cinta-liga sem deixar de ser e de se sentir homem? Ora, um desfile variado de casos e entrevistas mostra logo a Helen e a seu leitor que o ato de se travestir, mesmo quando serve uma "brincadeira" sexual, mal esconde uma dúvida ou uma crise de identidade.
Travestismo e transexualismo falam da mesma inquietude quanto a uma identidade de gênero que discute com a anatomia do sujeito.
Em "Transex", não há apenas homens que se tornam mulheres. Há também uma mulher que se tornou homem e proclama que, para consolidar-se em seu gênero (masculino, no caso), ele precisou de uma "castração", que lhe colocasse um pênis no lugar da vagina. Como, em geral, pensamos que a castração é uma operação que corta e retira, a expressão resulta engraçada. No entanto, ela é surpreendentemente adequada. Eis como.
A psicanálise chama de castração (esqueça por um instante qualquer associação açougueira) o ato pelo qual um gênero é atribuído ao sujeito, geralmente pelo pai: você é mulher ou você é homem. Quando o ato não funciona direito, o sujeito pode querer que essa "castração" seja perpetrada de novo e de vez, para que a designação seja enfim clara e, se possível, concorde com o que diz a anatomia de seu corpo.
Quem conversou com transexuais operados/as sabe que, com freqüência, eles/elas consideram o cirurgião como seu "novo pai".
"Transex" fica em cartaz até 19 de dezembro. Não perca.
Nota
Recentemente, ao aconselhar um casal cujo filho decidiu pedir operação de mudança de sexo, um livro atrapalhou minhas teorias pré-formadas e, portanto, me ajudou: "True Selves: Understanding Transsexualism for Families, Friends, Co-workers and Helping Professionals" (Verdadeiros "Self": Entendendo o Transexualismo, para o Uso de Famílias, Amigos, Colegas e Profissionais da Ajuda), de Brown e Rounsley.
Um ano atrás, num café da praça Roosevelt, Phedra e Bibi (que, na época, moravam juntas) discutiam sobre o namorado de Bibi. Phedra, pé no chão, declarava que não podia ser um extraterrestre, mas se tratava, obviamente, de um exu. Rodolfo e Ivam ouviram essa conversa, que inspirou a peça.
Não sei dizer se o namorado de Bibi é um exu ou um extraterrestre. Mas sei que, em nossa cultura, quem não consegue se posicionar na alternativa entre dois gêneros (masculino ou feminino) se torna, aos olhos dos demais, um ser de outro mundo. Não me estranha, portanto, que, para ser amada, Bibi anseie encontrar alguém que a compreenda, um ser de outro mundo, extraterrestre ou exu que seja.
De qualquer forma, "Transex" é uma peça para quem não acha que as e os transexuais sejam seres de outro mundo ou para os que querem parar de pensar assim.
O sucesso nessa empreitada é possível porque as protagonistas de "Transex" (como todas as transexuais, aliás) não sofrem de estranhos desvios sexuais. Elas sofrem de uma dificuldade em estabelecer e afirmar uma identidade (feminina, por exemplo), que elas sentem ser a sua, mas que não corresponde ao corpo que lhes coube ao nascer. Se se prostituem, é por duas razões: porque a sociedade não lhes oferece muitas outras chances de ganhar a vida e porque a prostituição talvez seja um jeito de confirmar o gênero que elas vivem como seu. Se tantos homens me desejam, deve ser verdade que sou mulher.
Estatísticas de países europeus em que a cirurgia de mudança de sexo é legal dizem que um homem em cada 30 mil e uma mulher em cada 100 mil procuram essa intervenção cirúrgica. Poucos, não é? Mas resta saber quantos, sem chegar a tanto, convivem com alguma contradição entre seu corpo e sua identidade de gênero.
A sensação de pertencer a um gênero que contradiz a anatomia do sujeito é menos rara do que a gente imagina. Consideremos uma distinção (freqüentemente adotada) entre travestismo e transexualismo.
Travesti seria quem não vive propriamente um divórcio entre seu gênero e seu corpo, mas veste os apetrechos do outro gênero apenas como fetiches para alimentar desejo e fantasia sexuais.
Transexual seria quem conhece uma contradição aguda entre seu sexo anatômico e sua identidade de gênero, a ponto de agir para mudar seu corpo e ajustá-lo (à força de hormônios e cirurgias) ao gênero que ele sente ser o seu.
Essa distinção simplifica uma realidade que, de fato, é menos descontínua. Num livro recente, Helen Boyd descreve sua relação com o marido, que gosta de usar roupa feminina, "My Husband Betty: Love, Sex and Life with a Cross-Dresser" (Meu Marido Betty: O Amor, o Sexo e a Vida com um Travesti). No começo, ela parece contar um jogo sexual que não compromete nem um pouco a identidade de gênero do marido. Afinal, por que um homem não brincaria de cinta-liga sem deixar de ser e de se sentir homem? Ora, um desfile variado de casos e entrevistas mostra logo a Helen e a seu leitor que o ato de se travestir, mesmo quando serve uma "brincadeira" sexual, mal esconde uma dúvida ou uma crise de identidade.
Travestismo e transexualismo falam da mesma inquietude quanto a uma identidade de gênero que discute com a anatomia do sujeito.
Em "Transex", não há apenas homens que se tornam mulheres. Há também uma mulher que se tornou homem e proclama que, para consolidar-se em seu gênero (masculino, no caso), ele precisou de uma "castração", que lhe colocasse um pênis no lugar da vagina. Como, em geral, pensamos que a castração é uma operação que corta e retira, a expressão resulta engraçada. No entanto, ela é surpreendentemente adequada. Eis como.
A psicanálise chama de castração (esqueça por um instante qualquer associação açougueira) o ato pelo qual um gênero é atribuído ao sujeito, geralmente pelo pai: você é mulher ou você é homem. Quando o ato não funciona direito, o sujeito pode querer que essa "castração" seja perpetrada de novo e de vez, para que a designação seja enfim clara e, se possível, concorde com o que diz a anatomia de seu corpo.
Quem conversou com transexuais operados/as sabe que, com freqüência, eles/elas consideram o cirurgião como seu "novo pai".
"Transex" fica em cartaz até 19 de dezembro. Não perca.
Nota
Recentemente, ao aconselhar um casal cujo filho decidiu pedir operação de mudança de sexo, um livro atrapalhou minhas teorias pré-formadas e, portanto, me ajudou: "True Selves: Understanding Transsexualism for Families, Friends, Co-workers and Helping Professionals" (Verdadeiros "Self": Entendendo o Transexualismo, para o Uso de Famílias, Amigos, Colegas e Profissionais da Ajuda), de Brown e Rounsley.
quinta-feira, 11 de novembro de 2004
Sozinho ou acompanhado?
Durante minha carreira escolar, nunca fiz um trabalho em grupo. Às vezes, a gente se reunia e juntava as forças para estudar, preparar um teste ou entender uma aula. Mas os deveres de casa e os exames (salvo cola eventual) eram absolutamente individuais. Cada um fazia o seu e ganhava sua nota.
Houve uma exceção: 1968. Na Universidade de Milão, por iniciativa de professores "progressistas" ou por pressão de estudantes mais "progressistas" ainda, surgiu a moda do exame de grupo. Lembro-me de um exame de "história das doutrinas políticas", que passamos em grupo de cinco. Ganhamos um 27. O máximo era 30, mas, naquele ano, 27 era a nota mínima que qualquer professor daria se não quisesse ser vítima de boicote político. De fato, não sabíamos bulhufas, mas achávamos que o tempo passado juntos nas assembléias do movimento estudantil valia tanto quanto a leitura de Montesquieu, Rousseau, Hobbes e Locke.
Depois disso, só reencontrei o "trabalho em grupo" no fim dos anos 80, quando meus filhos entraram no primário. Descobri então que a provocação política de minha adolescência tinha engendrado uma doutrina pedagógica. De vez em quando, eu manifestava alguma perplexidade com as orientadoras educacionais: "Mas eles não têm nem o tempo de elaborar, de pensar sozinhos".
Resposta: "Aprender a trabalhar em grupo é tão importante quanto a matéria. Não estamos só transmitindo conteúdos, estamos educando as crianças para que adquiram espírito de equipe, capacidade de liderança, confiança no outro, enfim, as qualidades intersubjetivas que preparam para a vida adulta e o mundo do trabalho".
As orientadoras tinham razão. Basta considerar a quantidade de "workshops" de dinâmica de grupo promovidos hoje pelos departamentos de recursos humanos das empresas. A arte de relacionar-se parece profissionalmente mais importante do que a competência específica exigida pelo trabalho de cada um.
Pensei nessa mudança pedagógica ao ler um livro recente: "Party of One, the Loner's Manifesto" (Grupo de Um, o Manifesto do Solitário), de Anneli Rufus. É um ensaio engraçado e pertinente em defesa da solidão.
Rufus começa contando a história de Eve, bolsista da Fundação Fulbright, em Gana. Eve era de temperamento solitário e, obviamente, numa sociedade ainda tradicional, em que a comunidade é uma valor mais importante do que o indivíduo, seus gostos anti-sociais eram considerados uma enfermidade: em Gana, as pessoas "pareciam considerar uma forma de perversão se uma pessoa não tivesse amigos, vivesse sozinha ou circulasse sozinha pelas ruas. Era como se você fosse uma pessoa má, um marginal, um possuído pelo demônio".
Pergunta: será que para nós a coisa é muito diferente? Embora, em nossa cultura, o indivíduo conte mais que a comunidade, parece que, entre nós também, o solitário se tornou uma figura patológica.
Primeiro, Rufus descreve as aventuras tragicômicas da vida solitária (em destaque: jantar sozinho num restaurante sob os olhares de comiseração das mesas vizinhas).
Logo, ela reconstrói a história da figura do solitário na cultura popular das últimas décadas. No bangue-bangue dos anos 50, os solitários eram nossos heróis (veja ou reveja "Matar ou Morrer" ou "Os Brutos Também Amam"). O caubói, aliás, era o protótipo do solitário errante, enigmático e sedutor: entre 50 e 70, um deles promoveu "sua" marca de cigarros até torná-la a mais vendida do mundo.
A partir dos anos 70, a solidão começou a mexer com a cabeça do herói solitário, que se tornou estranho e perigoso ("Taxi Driver") ou inquietante e um pouco asqueroso ("Retratos de uma Obsessão").
"Solitário" é hoje a suposição automática (e indevida) da imprensa americana na hora de definir os autores de crimes em série ou de assassinatos múltiplos nas escolas. O solitário é maluco; portanto os malucos devem ser solitários.
Enfim, um capítulo do livro examina a recente transformação do temperamento solitário em patologia: "Como os não solitários são muito mais numerosos do que a gente, sua receita para a saúde mental é proposta e vale como boa medicina". Conclusão: os solitários sofreriam de fobia social, personalidade esquizóide, depressão ou autismo. Rufus nota que o diagnóstico de síndrome de Asperger (forma leve de autismo, que implica uma dificuldade em compreender as emoções dos outros e em se relacionar) popularizou-se logo a partir dos anos 90, quando o solitário, na cultura de massa, passou definitivamente de herói para louco e deseixado.
Curioso: nossa cultura, que valoriza os indivíduos acima da comunidade, considera cada vez mais que a capacidade de se relacionar com os outros é um talento supremo e uma prova de boa saúde mental.
O paradoxo é apenas aparente: a sociabilidade se torna uma arte e uma obrigação na medida em que, para nós, ela não é nada natural, mas deve ser aprendida.
Alguém lembrará que, de qualquer forma, sem os outros não somos quase nada. Pois é, os solitários são aqueles que encaram esse incômodo vazio.
Houve uma exceção: 1968. Na Universidade de Milão, por iniciativa de professores "progressistas" ou por pressão de estudantes mais "progressistas" ainda, surgiu a moda do exame de grupo. Lembro-me de um exame de "história das doutrinas políticas", que passamos em grupo de cinco. Ganhamos um 27. O máximo era 30, mas, naquele ano, 27 era a nota mínima que qualquer professor daria se não quisesse ser vítima de boicote político. De fato, não sabíamos bulhufas, mas achávamos que o tempo passado juntos nas assembléias do movimento estudantil valia tanto quanto a leitura de Montesquieu, Rousseau, Hobbes e Locke.
Depois disso, só reencontrei o "trabalho em grupo" no fim dos anos 80, quando meus filhos entraram no primário. Descobri então que a provocação política de minha adolescência tinha engendrado uma doutrina pedagógica. De vez em quando, eu manifestava alguma perplexidade com as orientadoras educacionais: "Mas eles não têm nem o tempo de elaborar, de pensar sozinhos".
Resposta: "Aprender a trabalhar em grupo é tão importante quanto a matéria. Não estamos só transmitindo conteúdos, estamos educando as crianças para que adquiram espírito de equipe, capacidade de liderança, confiança no outro, enfim, as qualidades intersubjetivas que preparam para a vida adulta e o mundo do trabalho".
As orientadoras tinham razão. Basta considerar a quantidade de "workshops" de dinâmica de grupo promovidos hoje pelos departamentos de recursos humanos das empresas. A arte de relacionar-se parece profissionalmente mais importante do que a competência específica exigida pelo trabalho de cada um.
Pensei nessa mudança pedagógica ao ler um livro recente: "Party of One, the Loner's Manifesto" (Grupo de Um, o Manifesto do Solitário), de Anneli Rufus. É um ensaio engraçado e pertinente em defesa da solidão.
Rufus começa contando a história de Eve, bolsista da Fundação Fulbright, em Gana. Eve era de temperamento solitário e, obviamente, numa sociedade ainda tradicional, em que a comunidade é uma valor mais importante do que o indivíduo, seus gostos anti-sociais eram considerados uma enfermidade: em Gana, as pessoas "pareciam considerar uma forma de perversão se uma pessoa não tivesse amigos, vivesse sozinha ou circulasse sozinha pelas ruas. Era como se você fosse uma pessoa má, um marginal, um possuído pelo demônio".
Pergunta: será que para nós a coisa é muito diferente? Embora, em nossa cultura, o indivíduo conte mais que a comunidade, parece que, entre nós também, o solitário se tornou uma figura patológica.
Primeiro, Rufus descreve as aventuras tragicômicas da vida solitária (em destaque: jantar sozinho num restaurante sob os olhares de comiseração das mesas vizinhas).
Logo, ela reconstrói a história da figura do solitário na cultura popular das últimas décadas. No bangue-bangue dos anos 50, os solitários eram nossos heróis (veja ou reveja "Matar ou Morrer" ou "Os Brutos Também Amam"). O caubói, aliás, era o protótipo do solitário errante, enigmático e sedutor: entre 50 e 70, um deles promoveu "sua" marca de cigarros até torná-la a mais vendida do mundo.
A partir dos anos 70, a solidão começou a mexer com a cabeça do herói solitário, que se tornou estranho e perigoso ("Taxi Driver") ou inquietante e um pouco asqueroso ("Retratos de uma Obsessão").
"Solitário" é hoje a suposição automática (e indevida) da imprensa americana na hora de definir os autores de crimes em série ou de assassinatos múltiplos nas escolas. O solitário é maluco; portanto os malucos devem ser solitários.
Enfim, um capítulo do livro examina a recente transformação do temperamento solitário em patologia: "Como os não solitários são muito mais numerosos do que a gente, sua receita para a saúde mental é proposta e vale como boa medicina". Conclusão: os solitários sofreriam de fobia social, personalidade esquizóide, depressão ou autismo. Rufus nota que o diagnóstico de síndrome de Asperger (forma leve de autismo, que implica uma dificuldade em compreender as emoções dos outros e em se relacionar) popularizou-se logo a partir dos anos 90, quando o solitário, na cultura de massa, passou definitivamente de herói para louco e deseixado.
Curioso: nossa cultura, que valoriza os indivíduos acima da comunidade, considera cada vez mais que a capacidade de se relacionar com os outros é um talento supremo e uma prova de boa saúde mental.
O paradoxo é apenas aparente: a sociabilidade se torna uma arte e uma obrigação na medida em que, para nós, ela não é nada natural, mas deve ser aprendida.
Alguém lembrará que, de qualquer forma, sem os outros não somos quase nada. Pois é, os solitários são aqueles que encaram esse incômodo vazio.
quinta-feira, 4 de novembro de 2004
Eleições americanas
Na hora em que escrevo estas reflexões (segunda e terça-feira), não conheço o resultado das eleições presidenciais americanas. Mas, de qualquer forma, a batalha política do último ano impõe uma reflexão.
Décadas atrás, o poeta Robert Frost definiu assim o progressista de esquerda (que nos EUA se chama "liberal"): "Um progressista de esquerda é um sujeito de espírito tão aberto que, numa briga, ele não consegue tomar seu próprio partido". A definição é citada pelos progressistas como prova de sua generosidade esclarecida. E pelos conservadores como prova da fraqueza inepta dos progressistas.
A frase evoca um tempo mais simples (Robert Frost morreu em 1963), em que talvez houvesse só três posições: os abastados, que defendiam seus interesses, os pobres, que também defendiam seus interesses (opostos aos dos ricos), e os progressistas de esquerda, que, embora abastados, defendiam os interesses dos pobres.
Quem foi militante nos anos 60 se lembra de que nem sempre era pacífica a relação dos intelectuais ou estudantes progressistas (geralmente, de classe média) com a causa dos trabalhadores. A aliança entre operários e estudantes, proclamada no 68 francês, não dispensava alguns atritos. As direções sindicais e partidárias achavam que os estudantes não eram bem intelectuais "orgânicos" como mandava a teoria de Gramsci, ou seja, não se integravam direito nas organizações proletárias. E os estudantes descobriam com inquietude que algumas idéias de seus aliados proletários não eram necessariamente progressistas.
No entanto essas discordâncias não ameaçavam as alianças. Sindicalistas e militantes operários podiam ser contrários ao divórcio e ao aborto, podiam detestar as feministas, zombar dos gays e manifestar pontas explícitas de racismo; nem por isso os estudantes deixavam de considerá-los seus aliados. Um "patrão" podia freqüentar a mesma igreja que seus operários e manifestar as mesmas idéias tradicionais nas quais eles acreditavam; mesmo assim, ele continuava sendo, para eles, (na linguagem da época) o "inimigo de classe". Os estudantes podiam promover maluquices orgiásticas; eventualmente, os sindicalistas não os apresentariam a suas famílias, mas nem por isso eles deixariam de considerá-los como seus aliados.
Em suma, o que definia os campos opostos era a função de cada agente social na produção e na repartição do bolo. Como assinala Frost, o intelectual progressista podia escolher seu campo por razões ideais, mas isso, justamente, fazia dele uma exceção.
Ora, sobretudo nos últimos dez anos, nos EUA, acontece algo diferente. No centro do país, longe das grandes áreas urbanas, concentra-se um exército de derrotados. São fazendeiros empobrecidos ou expropriados, vítimas do fim dos subsídios agrícolas ou da concentração da agroindústria. São trabalhadores desempregados, vítimas da "liberdade" globalizada dos mercados, pois as indústrias migraram para países complacentes ou importaram ilegalmente uma mão-de-obra barata e não sindicalizada. Esse exército, em grande parte, vota hoje no Partido Republicano. Ou seja, vota a favor do agravamento das mesmas políticas econômicas que produziram sua decadência. Por quê?
Surfando habilmente na onda de repúdio que a contracultura dos anos 60 e 70 produziu na América profunda, os conservadores americanos conseguiram uma proeza: hoje, muitos pobres e derrotados atribuem sua miséria a uma degenerescência moral pela qual culpam os progressistas. Eles não entendem seu destino como conseqüência das políticas que os atropelam, mas como efeito da crise dos valores tradicionais do passado. Claro, esse passado é, para eles, a época perdida em que, no mínimo, eles conheciam a esperança de dias melhores.
Com isso, o fazendeiro expropriado e o desempregado sem subsídios e sem assistência médica podem votar para um partido que se opõe à intervenção do governo em matéria de seguro-saúde, que planejou acabar com o imposto progressivo ou que condena qualquer controle dos preços mínimos pagos aos agricultores. Votam assim porque atribuem o fim de seu mundo não às medidas econômicas que os golpearam, mas, por exemplo, à prática do aborto, à crise da família, às uniões civis entre homossexuais ou ao desrespeito pela suposta vontade de Deus.
Na história recente do Ocidente, os fascismos clássicos fornecem os melhores exemplos de uma façanha comparável, pela qual os derrotados foram transformados em milícias do conservadorismo ideológico e, portanto, em cúmplices de sua própria ruína.
É urgente entender o que acontece hoje nos EUA e, em particular, qual foi (qual é), nesse acontecimento em curso, o papel da Igreja Católica e de inúmeras denominações protestantes. Urgente, digo, não só para os americanos.
Nota: Thomas Frank acaba de publicar "What's the Matter with Kansas?" (O que Acontece com o Kansas?), que é uma excelente análise de como, no Estado de Kansas, a ideologia conservadora transformou muitas vítimas da política econômica dos últimos 20 anos em militantes do próprio partido que orquestrou o brutal empobrecimento do Estado.
quinta-feira, 28 de outubro de 2004
Achados e perdidos
O site da Polícia Civil de São Paulo (www.policia-civ.sp.gov.br) dá acesso a várias "consultas".
Além de editais, licitações e concursos, há a lista dos "Procurados da Justiça". Nela, aparecem apenas os sujeitos perigosos. Mesmo assim, vale a pena notar que duas outras listas são mais extensas: "Procura-se a família" e "Pessoas desaparecidas".
"Procura-se a família" apresenta os retratos de dezenas de adultos, homens e mulheres, quase todos internados em instituições psiquiátricas, de quem se ignora a família e o domicílio de origem. Com eles, há três crianças, que foram "encontradas". Uma delas é um menino, que olha para a gente com uma expressão atenta, mas que "não fala, não ouve, responde por gestos". Parece que estamos errando entre as estantes de um depósito de achados e perdidos, reservado aos que se tornam fardos insustentáveis para seus próximos.
Na verdade, "Procura-se a família" é a lista dos achados; os perdidos estão em "Pessoas desaparecidas". No site da Polícia Civil, são, mais ou menos, 300 crianças e adolescentes, 240 mulheres e mais de 700 homens adultos. Todos sumiram deixando saudades; há uma família que não entende e se desespera.
Cada grande cidade brasileira propõe uma lista análoga. O fenômeno não é nacional: uma procura mundial na internet ("missing persons") traz 3 milhões de páginas. Mesmo descontando as vítimas de perseguições e migrações forçadas, o número é grande.
É possível que alguns desses desaparecidos sejam vítimas de acidentes ou crimes que os deixaram incapacitados de declarar sua identidade. Mas, em regra, um acidentado carrega algum documento que permite sua identificação.
Para que alguém consiga sumir, é preciso que haja uma intenção, do próprio sujeito ou de outrem.
Se sumissem sobretudo crianças e jovens mulheres, o fenômeno pareceria mais simples. Afinal, acontece de adolescentes e crianças fugirem de casa. Às vezes, tentam evitar uma violência que os próprios familiares podem desconhecer. Outras vezes, eles tomam ao pé da letra e antes da hora o imperativo social de tornar-se autônomos e "grandes". Além disso, existe um comércio de crianças seqüestradas e vendidas para adoções ilegais. Meninas e jovens mulheres também poderiam ser vítimas de redes organizadas de prostituição.
Mas a grande maioria dos que somem sem deixar rastos são homens adultos. Melhor aceitar o óbvio: a cada ano, centenas de milhares de sujeitos pelo mundo afora escolhem sumir, abandonam lares, famílias, amigos, mudam de cidade e de nome. Tentam recomeçar a vida como se não tivessem um passado.
Ao longo de minha prática, nunca encontrei uma "pessoa desaparecida".
Mas, anos atrás, no pavilhão Pinel do hospital Sainte-Anne de Paris, conheci um sujeito que sofria de uma amnésia espetacular: suas funções intelectuais eram perfeitamente preservadas, no entanto ele apresentava um total esquecimento de sua identidade e história. Era benquisto na enfermaria, pois tinha competências preciosas: consertava tudo, relógios, rádios, televisores. Eu não conseguia me livrar da suspeita de que ele estivesse fingindo; estranhava que ele tivesse sido encontrado sem nenhum documento.
Mais tarde, entendi um pouco melhor o sentido dessa ausência de documentos, quando me ocupei de um jovem adulto que sobreviveu a uma elaborada tentativa de suicídio. Um dia, ele recortou cuidadosamente as etiquetas de suas roupas, jogou sua carteira pela janela do trem e, chegado numa cidade distante, foi para um quarto de hotel, onde tomou barbitúricos e cortou os pulsos, depois de pendurar na maçaneta da porta o sinal "por favor, não perturbe". Foi descoberto por uma camareira, que desrespeitou o pedido.
Como ele me disse em nosso primeiro encontro, queria sumir de maneira que nenhum resto de sua vida prévia o alcançasse. Comentou, com um certo humor negro, que achava intolerável a incumbência de comparecer a seu próprio funeral.
Ora, cuidado: ele amava sua família, sua namorada e seus amigos. Suas dívidas, reais ou simbólicas, não eram extraordinárias; suas ambições não eram desmedidas nem especialmente frustradas; tampouco era angustiado pela sensação de que os outros esperassem dele muito mais do que ele podia dar.
O problema era outro: um dia, pareceu-lhe que todos os afazeres que, em princípio, deviam ser frutos de sua liberdade (os gestos do amor, os empreendimentos profissionais, os interesses culturais) tinham-se transformado em encargos.
"Você gosta de música clássica?", perguntou-me. "De repente, você descobre que o prazer de escutar um concerto foi substituído pela obrigação de preencher a cadeira que você comprou para a temporada inteira. Imagine que isso aconteça com todos os seus desejos. Fazer o quê?"
Ele decidiu se abolir. Outros somem e tentam recomeçar do zero.
Recentemente, uma leitora me pediu que a ajudasse na procura de um familiar amado, que sumiu. Pois bem. Mensagem a um "desaparecido" que lesse esta coluna: para nós também, para todos nós, desejar sem transformar nossos próprios desejos em obrigações é uma tarefa para além de difícil.
Além de editais, licitações e concursos, há a lista dos "Procurados da Justiça". Nela, aparecem apenas os sujeitos perigosos. Mesmo assim, vale a pena notar que duas outras listas são mais extensas: "Procura-se a família" e "Pessoas desaparecidas".
"Procura-se a família" apresenta os retratos de dezenas de adultos, homens e mulheres, quase todos internados em instituições psiquiátricas, de quem se ignora a família e o domicílio de origem. Com eles, há três crianças, que foram "encontradas". Uma delas é um menino, que olha para a gente com uma expressão atenta, mas que "não fala, não ouve, responde por gestos". Parece que estamos errando entre as estantes de um depósito de achados e perdidos, reservado aos que se tornam fardos insustentáveis para seus próximos.
Na verdade, "Procura-se a família" é a lista dos achados; os perdidos estão em "Pessoas desaparecidas". No site da Polícia Civil, são, mais ou menos, 300 crianças e adolescentes, 240 mulheres e mais de 700 homens adultos. Todos sumiram deixando saudades; há uma família que não entende e se desespera.
Cada grande cidade brasileira propõe uma lista análoga. O fenômeno não é nacional: uma procura mundial na internet ("missing persons") traz 3 milhões de páginas. Mesmo descontando as vítimas de perseguições e migrações forçadas, o número é grande.
É possível que alguns desses desaparecidos sejam vítimas de acidentes ou crimes que os deixaram incapacitados de declarar sua identidade. Mas, em regra, um acidentado carrega algum documento que permite sua identificação.
Para que alguém consiga sumir, é preciso que haja uma intenção, do próprio sujeito ou de outrem.
Se sumissem sobretudo crianças e jovens mulheres, o fenômeno pareceria mais simples. Afinal, acontece de adolescentes e crianças fugirem de casa. Às vezes, tentam evitar uma violência que os próprios familiares podem desconhecer. Outras vezes, eles tomam ao pé da letra e antes da hora o imperativo social de tornar-se autônomos e "grandes". Além disso, existe um comércio de crianças seqüestradas e vendidas para adoções ilegais. Meninas e jovens mulheres também poderiam ser vítimas de redes organizadas de prostituição.
Mas a grande maioria dos que somem sem deixar rastos são homens adultos. Melhor aceitar o óbvio: a cada ano, centenas de milhares de sujeitos pelo mundo afora escolhem sumir, abandonam lares, famílias, amigos, mudam de cidade e de nome. Tentam recomeçar a vida como se não tivessem um passado.
Ao longo de minha prática, nunca encontrei uma "pessoa desaparecida".
Mas, anos atrás, no pavilhão Pinel do hospital Sainte-Anne de Paris, conheci um sujeito que sofria de uma amnésia espetacular: suas funções intelectuais eram perfeitamente preservadas, no entanto ele apresentava um total esquecimento de sua identidade e história. Era benquisto na enfermaria, pois tinha competências preciosas: consertava tudo, relógios, rádios, televisores. Eu não conseguia me livrar da suspeita de que ele estivesse fingindo; estranhava que ele tivesse sido encontrado sem nenhum documento.
Mais tarde, entendi um pouco melhor o sentido dessa ausência de documentos, quando me ocupei de um jovem adulto que sobreviveu a uma elaborada tentativa de suicídio. Um dia, ele recortou cuidadosamente as etiquetas de suas roupas, jogou sua carteira pela janela do trem e, chegado numa cidade distante, foi para um quarto de hotel, onde tomou barbitúricos e cortou os pulsos, depois de pendurar na maçaneta da porta o sinal "por favor, não perturbe". Foi descoberto por uma camareira, que desrespeitou o pedido.
Como ele me disse em nosso primeiro encontro, queria sumir de maneira que nenhum resto de sua vida prévia o alcançasse. Comentou, com um certo humor negro, que achava intolerável a incumbência de comparecer a seu próprio funeral.
Ora, cuidado: ele amava sua família, sua namorada e seus amigos. Suas dívidas, reais ou simbólicas, não eram extraordinárias; suas ambições não eram desmedidas nem especialmente frustradas; tampouco era angustiado pela sensação de que os outros esperassem dele muito mais do que ele podia dar.
O problema era outro: um dia, pareceu-lhe que todos os afazeres que, em princípio, deviam ser frutos de sua liberdade (os gestos do amor, os empreendimentos profissionais, os interesses culturais) tinham-se transformado em encargos.
"Você gosta de música clássica?", perguntou-me. "De repente, você descobre que o prazer de escutar um concerto foi substituído pela obrigação de preencher a cadeira que você comprou para a temporada inteira. Imagine que isso aconteça com todos os seus desejos. Fazer o quê?"
Ele decidiu se abolir. Outros somem e tentam recomeçar do zero.
Recentemente, uma leitora me pediu que a ajudasse na procura de um familiar amado, que sumiu. Pois bem. Mensagem a um "desaparecido" que lesse esta coluna: para nós também, para todos nós, desejar sem transformar nossos próprios desejos em obrigações é uma tarefa para além de difícil.
quinta-feira, 14 de outubro de 2004
De novo, sobre a cura da homossexualidade
Na semana passada, critiquei o projeto de lei que criaria, no Estado do Rio de Janeiro, um programa de auxílio às pessoas que optarem pela mudança de sua orientação sexual da homossexualidade para a heterossexualidade. O "auxílio" consistiria em alocar fundos públicos a organizações e profissionais que proponham curas da homossexualidade.
Numerosos leitores me perguntaram como poderiam manifestar sua indignação. O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro está colhendo adesões de protesto (www.clam.org.br).
Mas quero sobretudo responder àqueles leitores que me escreveram para defender o projeto.
1) Alguns acharam abusiva minha comparação do programa carioca com um hipotético Instituto Michael Jackson para converter os negros em brancos. Concordo: cor da pele, orientação sexual, opinião ou fé são coisas bem diferentes. No entanto todos esses termos designam campos em que os cidadãos não precisam se conformar a uma norma. Nesses campos, o governo democrático garante a igualdade de todos perante a lei e cuida para que a sociedade não discrimine.
Conseqüência: você é evangélico; é seu direito expressar seu convencimento e mesmo tentar me converter. Mas o dinheiro público (que pertence a todos os cidadãos, em sua diversidade) não pode ser destinado a me arregimentar para sua igreja. Essa atividade você vai ter que pagar de seu bolso.
2) Outros argumentaram: a homossexualidade não é uma diferença protegida constitucionalmente, pois é uma doença ou, como escreveu a Comissão de Saúde da Assembléia carioca, "uma distorção da natureza". E o Estado tem o dever sacrossanto de curar os enfermos.
O relator da Comissão de Saúde foi o deputado Samuel Malafaia (PMDB), engenheiro e evangélico. Votou a favor. De onde lhe viria a competência para julgar se a homossexualidade é ou não um problema de saúde pública, não sei. Talvez um dom do Espírito Santo no último Pentecostes.
Votou a favor também o deputado Paulo Melo (PMDB), sem formação específica, inspirado (imagino) pelo preconceito comum.
O terceiro membro era o deputado Paulo Pinheiro (PT), médico pediatra. E ele votou pela "baixa em diligência", ou seja, ele pediu que o relatório fosse sustado e, por exemplo, avaliado por agentes competentes. Minoritário, seu voto não surtiu efeito nenhum.
Paulo Pinheiro não tinha como votar diferente. Em 1973, a American Psychiatric Association retirou a homossexualidade da lista dos transtornos mentais ou emocionais. Sucessivamente, a decisão foi ratificada pela American Psychological Association, pela American Counseling Association, pela Associação Brasileira de Psiquiatria, pelo Conselho Federal de Medicina e pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia pede explicitamente que os psicólogos não colaborem com serviços que propõem uma "cura" da homossexualidade.
3) Outros ainda interrogaram a expressão "orientação sexual". É uma formação genética? É o resultado de traumas infantis ou da propaganda cultural hollywoodiana? Ou é uma escolha livre?
Não acredito que a homossexualidade (assim como qualquer outra orientação sexual) tenha origem propriamente genética. As melhores pesquisas com gêmeos univitelinos mostram que a homossexualidade é comum a ambos os gêmeos em 50% dos casos. Pouco, tratando-se de sujeitos com patrimônio genético idêntico.
Quanto aos fatores externos, a American Psychiatric Association concluiu há tempo que a incidência de eventos traumáticos na infância de sujeitos homossexuais é igual à da população em geral e não é especialmente relacionada à orientação sexual adulta.
Em matéria de "propaganda" hollywoodiana que glamourizaria a homossexualidade, qualquer terapeuta pode confirmar o seguinte: os produtos culturais que, com mais freqüência, são marcantes na constituição de fantasias homossexuais são estátuas de anjos e santos nas igrejas ou histórias de mártires cristãos.
Enfim, a orientação sexual é uma escolha?
Por comodidade, hoje, fala-se de três orientações sexuais: heterossexual, homossexual e bissexual. Essa distinção tripartida é aproximativa. Por exemplo, como catalogar uma mulher que gosta que seu parceiro a "force" a ser, diante dele, o objeto sexual passivo de outra mulher? Bissexual? É complicado, pois, fora do cenário mencionado, ela detestaria os amassos, os beijos e a transa com uma outra mulher. Perguntas análogas podem ser colocadas para homens.
Em suma, nossas orientações sexuais são misturas singulares e únicas de fantasias, situações, palavras e preferências quanto ao sexo dos parceiros.
Afirmar que essas orientações são "escolhas" não significa que as adotemos como um prato no cardápio (carne ou peixe?).
Certo, a orientação sexual pode mudar no decorrer de uma vida, mas, a cada instante, ela é uma parte irrenunciável do que define um sujeito. É uma "escolha" neste sentido: ela é imposta a cada um por seu corpo e por sua história, nunca pela vontade abstrata de um legislador.
Numerosos leitores me perguntaram como poderiam manifestar sua indignação. O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro está colhendo adesões de protesto (www.clam.org.br).
Mas quero sobretudo responder àqueles leitores que me escreveram para defender o projeto.
1) Alguns acharam abusiva minha comparação do programa carioca com um hipotético Instituto Michael Jackson para converter os negros em brancos. Concordo: cor da pele, orientação sexual, opinião ou fé são coisas bem diferentes. No entanto todos esses termos designam campos em que os cidadãos não precisam se conformar a uma norma. Nesses campos, o governo democrático garante a igualdade de todos perante a lei e cuida para que a sociedade não discrimine.
Conseqüência: você é evangélico; é seu direito expressar seu convencimento e mesmo tentar me converter. Mas o dinheiro público (que pertence a todos os cidadãos, em sua diversidade) não pode ser destinado a me arregimentar para sua igreja. Essa atividade você vai ter que pagar de seu bolso.
2) Outros argumentaram: a homossexualidade não é uma diferença protegida constitucionalmente, pois é uma doença ou, como escreveu a Comissão de Saúde da Assembléia carioca, "uma distorção da natureza". E o Estado tem o dever sacrossanto de curar os enfermos.
O relator da Comissão de Saúde foi o deputado Samuel Malafaia (PMDB), engenheiro e evangélico. Votou a favor. De onde lhe viria a competência para julgar se a homossexualidade é ou não um problema de saúde pública, não sei. Talvez um dom do Espírito Santo no último Pentecostes.
Votou a favor também o deputado Paulo Melo (PMDB), sem formação específica, inspirado (imagino) pelo preconceito comum.
O terceiro membro era o deputado Paulo Pinheiro (PT), médico pediatra. E ele votou pela "baixa em diligência", ou seja, ele pediu que o relatório fosse sustado e, por exemplo, avaliado por agentes competentes. Minoritário, seu voto não surtiu efeito nenhum.
Paulo Pinheiro não tinha como votar diferente. Em 1973, a American Psychiatric Association retirou a homossexualidade da lista dos transtornos mentais ou emocionais. Sucessivamente, a decisão foi ratificada pela American Psychological Association, pela American Counseling Association, pela Associação Brasileira de Psiquiatria, pelo Conselho Federal de Medicina e pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia pede explicitamente que os psicólogos não colaborem com serviços que propõem uma "cura" da homossexualidade.
3) Outros ainda interrogaram a expressão "orientação sexual". É uma formação genética? É o resultado de traumas infantis ou da propaganda cultural hollywoodiana? Ou é uma escolha livre?
Não acredito que a homossexualidade (assim como qualquer outra orientação sexual) tenha origem propriamente genética. As melhores pesquisas com gêmeos univitelinos mostram que a homossexualidade é comum a ambos os gêmeos em 50% dos casos. Pouco, tratando-se de sujeitos com patrimônio genético idêntico.
Quanto aos fatores externos, a American Psychiatric Association concluiu há tempo que a incidência de eventos traumáticos na infância de sujeitos homossexuais é igual à da população em geral e não é especialmente relacionada à orientação sexual adulta.
Em matéria de "propaganda" hollywoodiana que glamourizaria a homossexualidade, qualquer terapeuta pode confirmar o seguinte: os produtos culturais que, com mais freqüência, são marcantes na constituição de fantasias homossexuais são estátuas de anjos e santos nas igrejas ou histórias de mártires cristãos.
Enfim, a orientação sexual é uma escolha?
Por comodidade, hoje, fala-se de três orientações sexuais: heterossexual, homossexual e bissexual. Essa distinção tripartida é aproximativa. Por exemplo, como catalogar uma mulher que gosta que seu parceiro a "force" a ser, diante dele, o objeto sexual passivo de outra mulher? Bissexual? É complicado, pois, fora do cenário mencionado, ela detestaria os amassos, os beijos e a transa com uma outra mulher. Perguntas análogas podem ser colocadas para homens.
Em suma, nossas orientações sexuais são misturas singulares e únicas de fantasias, situações, palavras e preferências quanto ao sexo dos parceiros.
Afirmar que essas orientações são "escolhas" não significa que as adotemos como um prato no cardápio (carne ou peixe?).
Certo, a orientação sexual pode mudar no decorrer de uma vida, mas, a cada instante, ela é uma parte irrenunciável do que define um sujeito. É uma "escolha" neste sentido: ela é imposta a cada um por seu corpo e por sua história, nunca pela vontade abstrata de um legislador.
quinta-feira, 7 de outubro de 2004
A cura da homossexualidade
A Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro se apresta a votar um projeto de lei, do deputado Edino Fonseca, que cria o Programa de auxílio às pessoas que voluntariamente optarem pela mudança (...) de sua orientação sexual da homossexualidade para a heterossexualidade.
Para implementar o programa, "o poder público estabelecerá convênios com organizações governamentais, não governamentais, Associações Civis, religiosas, profissionais liberais e autônomos". Ou seja, o dinheiro público financiará os que se propõem a converter homossexuais em heterossexuais.
O projeto afirma que o programa não é discriminatório, pois se destina aos homossexuais que desejarem mudar de orientação. No caso dos menores, a reserva não vale. Não será preciso que os adolescentes homossexuais desejem mudar de orientação, bastará a vontade de pais ou tutores. Seu filho tem trejeitos? Chame o governo; ele dará conta das frescuras do menino.
A Comissão de Constituição e Justiça deu parecer favorável: "A proposição é de relevante cunho social e não esbarra em preceitos constitucionais".
Muito bem, vou fundar o Instituto Michael Jackson para a transformação de negros em brancos (claro, só os negros que quiserem). A idéia é de relevante cunho social e benéfica, visto que, de fato, em nossa sociedade, é melhor ser branco. Uma vez esbranquiçados, os negros ganharão mais e competirão com os brancos em pé de igualdade. OK?
A Comissão da Saúde também deu parecer favorável: "Homem e mulher foram criados e nasceram com sexos opostos para se completarem e procriarem. O homossexualismo, apesar de aceito pela sociedade, é uma distorção da natureza do ser humano normal".
Que coisa estranha; eu sabia que a sexualidade dos animais não humanos era (mais ou menos) natural, já que a fertilidade da fêmea produz os sinais que ativam o desejo do macho (o cio, por exemplo). No caso da gente, não é bem assim. Parece que desejamos por amores, fantasias e inspirações repentinas, que são coisas culturais, não naturais. Também, se homens e mulheres são feitos para "se completarem e procriarem", não entendo por que transam na cozinha, nos elevadores, nos estacionamentos, nos clubes de suingue, na zona, com cinta-liga, colares de couro ou cueca de látex furada.
Agora, se você acha que a sexualidade humana é pervertida, não hesite: promova leis para a reorientação sexual de fetichistas, masturbadores, exibicionistas, freqüentadores de saunas e cinemas pornôs, sadomasoquistas, internautas de salas de sexo virtual e leitores da revista "Private". Já está na hora de fazer o necessário para que todos os cidadãos desejem segundo a natureza.
Durante o século 20, houve governos que, apoiados numa idéia do bem ou da natureza, quiseram reorientar ideológica e sexualmente seus cidadãos. Mandaram (alguns ainda mandam) milhões para campos de reeducação. Console-se: no Rio, será possível apenas financiar a conversão sexual. Sem campos.
Admito que o programa tem um interesse: cria ótimas ocasiões de captação de fundos públicos. Paradoxo chulo, mas irresistível: um projeto para converter homossexuais parece ter sido concebido para dar vontade de mamar.
Exemplo. Eu publico, numa revista conceituada, um artigo em que conto como "converti" homossexuais com terapias intensivas de 12 meses. Logo, meus amigos pais de família cariocas declaram ao programa que eles são atormentados por tórridas fantasias homossexuais e, à noite, erram pelo aterro do Flamengo, procurando prazeres culpados, enquanto as mulheres dormem.
Eles pedem para se curar comigo. O governo do Rio me manda o dinheiro, e a gente divide o lucro. Tratando-se de heterossexuais, os tratamentos serão um sucesso.
Os amigos homossexuais também poderão se tratar comigo no mesmo esquema. Só peço que, no fim, eles se declarem curados, para não estragar a reputação do negócio.
No caso de uma igreja, é mais fácil. Não é preciso escrever nenhum texto "científico". Basta a autoridade da Bíblia. Não faltarão os fiéis para entrar no programa: "Você se molhou sonhando com uma pessoa do mesmo sexo? Cure-se desse demônio". E o dinheiro do governo não será dividido, ficará integralmente com a igreja. Felicitações.
1) Existem sujeitos que vivem sua homossexualidade de maneira dolorosa e conflitiva. Não concordam com seu próprio desejo, por mil razões (inibições, repressão, princípios morais). Qualquer "psi" sabe como é fácil produzir catástrofes subjetivas se, nesses conflitos, a gente não deixa o paciente elaborar livremente sua solução.
2) O governo carioca deveria oferecer tratamento de conversão também aos estrangeiros que, hoje, fazem do Rio de Janeiro uma rentável meca do turismo homossexual. Sugiro que o próprio deputado Fonseca distribua os panfletos do programa, em várias línguas, na Farme de Amoedo, durante o Carnaval.
3) Os pais têm razão de se preocupar ao descobrir que um filho ou uma filha são homossexuais. Afinal, esses jovens têm de enfrentar um mundo em que são propostas leis como a que está para ser votada no Estado do Rio.
Para implementar o programa, "o poder público estabelecerá convênios com organizações governamentais, não governamentais, Associações Civis, religiosas, profissionais liberais e autônomos". Ou seja, o dinheiro público financiará os que se propõem a converter homossexuais em heterossexuais.
O projeto afirma que o programa não é discriminatório, pois se destina aos homossexuais que desejarem mudar de orientação. No caso dos menores, a reserva não vale. Não será preciso que os adolescentes homossexuais desejem mudar de orientação, bastará a vontade de pais ou tutores. Seu filho tem trejeitos? Chame o governo; ele dará conta das frescuras do menino.
A Comissão de Constituição e Justiça deu parecer favorável: "A proposição é de relevante cunho social e não esbarra em preceitos constitucionais".
Muito bem, vou fundar o Instituto Michael Jackson para a transformação de negros em brancos (claro, só os negros que quiserem). A idéia é de relevante cunho social e benéfica, visto que, de fato, em nossa sociedade, é melhor ser branco. Uma vez esbranquiçados, os negros ganharão mais e competirão com os brancos em pé de igualdade. OK?
A Comissão da Saúde também deu parecer favorável: "Homem e mulher foram criados e nasceram com sexos opostos para se completarem e procriarem. O homossexualismo, apesar de aceito pela sociedade, é uma distorção da natureza do ser humano normal".
Que coisa estranha; eu sabia que a sexualidade dos animais não humanos era (mais ou menos) natural, já que a fertilidade da fêmea produz os sinais que ativam o desejo do macho (o cio, por exemplo). No caso da gente, não é bem assim. Parece que desejamos por amores, fantasias e inspirações repentinas, que são coisas culturais, não naturais. Também, se homens e mulheres são feitos para "se completarem e procriarem", não entendo por que transam na cozinha, nos elevadores, nos estacionamentos, nos clubes de suingue, na zona, com cinta-liga, colares de couro ou cueca de látex furada.
Agora, se você acha que a sexualidade humana é pervertida, não hesite: promova leis para a reorientação sexual de fetichistas, masturbadores, exibicionistas, freqüentadores de saunas e cinemas pornôs, sadomasoquistas, internautas de salas de sexo virtual e leitores da revista "Private". Já está na hora de fazer o necessário para que todos os cidadãos desejem segundo a natureza.
Durante o século 20, houve governos que, apoiados numa idéia do bem ou da natureza, quiseram reorientar ideológica e sexualmente seus cidadãos. Mandaram (alguns ainda mandam) milhões para campos de reeducação. Console-se: no Rio, será possível apenas financiar a conversão sexual. Sem campos.
Admito que o programa tem um interesse: cria ótimas ocasiões de captação de fundos públicos. Paradoxo chulo, mas irresistível: um projeto para converter homossexuais parece ter sido concebido para dar vontade de mamar.
Exemplo. Eu publico, numa revista conceituada, um artigo em que conto como "converti" homossexuais com terapias intensivas de 12 meses. Logo, meus amigos pais de família cariocas declaram ao programa que eles são atormentados por tórridas fantasias homossexuais e, à noite, erram pelo aterro do Flamengo, procurando prazeres culpados, enquanto as mulheres dormem.
Eles pedem para se curar comigo. O governo do Rio me manda o dinheiro, e a gente divide o lucro. Tratando-se de heterossexuais, os tratamentos serão um sucesso.
Os amigos homossexuais também poderão se tratar comigo no mesmo esquema. Só peço que, no fim, eles se declarem curados, para não estragar a reputação do negócio.
No caso de uma igreja, é mais fácil. Não é preciso escrever nenhum texto "científico". Basta a autoridade da Bíblia. Não faltarão os fiéis para entrar no programa: "Você se molhou sonhando com uma pessoa do mesmo sexo? Cure-se desse demônio". E o dinheiro do governo não será dividido, ficará integralmente com a igreja. Felicitações.
1) Existem sujeitos que vivem sua homossexualidade de maneira dolorosa e conflitiva. Não concordam com seu próprio desejo, por mil razões (inibições, repressão, princípios morais). Qualquer "psi" sabe como é fácil produzir catástrofes subjetivas se, nesses conflitos, a gente não deixa o paciente elaborar livremente sua solução.
2) O governo carioca deveria oferecer tratamento de conversão também aos estrangeiros que, hoje, fazem do Rio de Janeiro uma rentável meca do turismo homossexual. Sugiro que o próprio deputado Fonseca distribua os panfletos do programa, em várias línguas, na Farme de Amoedo, durante o Carnaval.
3) Os pais têm razão de se preocupar ao descobrir que um filho ou uma filha são homossexuais. Afinal, esses jovens têm de enfrentar um mundo em que são propostas leis como a que está para ser votada no Estado do Rio.
domingo, 3 de outubro de 2004
JOSÉ SERRA
ELEIÇÕES 2004
Serra detesta demagogia; responde aos apelos que ouve com calma e se despede sem promessas
CONTARDO CALLIGARIS
Na sabatina da Folha, Serra chegou com um pequeno atraso.
Sabíamos que acontecera um imprevisto e, nos bastidores, houve um momento em que chegamos a pensar que o debate não aconteceria. Enfim, a sabatina começou 15 minutos mais tarde do que a norma dos dias anteriores.
Quando voltei para casa, poucas horas depois, encontrei o e-mail de uma leitora, que acabava de assistir ao debate. Ela esculhambava o candidato, observando que ele nem pedira desculpas pelo atraso, "que parece ter achado supernormal". A seu ver, Serra, com seu silêncio, saíra mal na foto.
Ora, junto com os outros entrevistadores e os organizadores do debate, eu conhecia as razões do atraso. Eram do tipo que, se reveladas, tocariam o coração e ganhariam a simpatia imediata de todos os presentes. Serra não as mencionou.
Tampouco ele inventou uma daquelas desculpas que garantem a cumplicidade de um público paulistano (uma alusão ao trânsito, por exemplo). Pois bem, a escolha de não dizer nada, que pareceu áspera à leitora que me escreveu, é o efeito de um "parti pris", que se manteve constante nas conversas que tive com Serra e na caminhada em que pude acompanhá-lo: José Serra detesta demagogia.
O que não significa que ele não queira a simpatia e a aprovação dos outros (isso, todos queremos). Ao contrário, a recusa da demagogia, desse ponto de vista, é a expressão de um pedido especialmente rigoroso. Traduzido nos termos das relações amorosas, é parecida, por exemplo, com o pedido de uma parceira que exigiria: goste de mim descabelada, de manhã cedo, sem maquiagem e sem plástica.
Lembra? No debate ao redor da moratória da dívida externa durante o governo Sarney, por exemplo, Serra admitia a moratória, pois, de fato, o Brasil não tinha como honrar os pagamentos previstos. Mas ele se opunha à transformação desse fracasso financeiro num grito heróico de independência. Nada de dourar a pílula para acariciar o ufanismo na direção do pelo. Mais recentemente, na ocasião do aniversário do golpe de 64, Serra, com 14 anos de exílio nas costas, poderia participar da festa tocando na banda da vitória. Preferiu criticar sua própria atuação na época e apontar, no comportamento de Jango e das esquerdas, fatores que precipitaram o golpe.
A recusa obstinada da demagogia pode cortar os entusiasmos e ter um custo político. Mas seu custo maior acaba sendo subjetivo. Explico.
Sábado passado, Serra aceitou me receber. Salvo pela sessão da sabatina, dias antes, foi nosso primeiro encontro e conversamos noite adentro. Falando das campanhas, ele disse que o mais difícil não são as horas de gravação, as discussões estratégicas, os comícios, as carreatas, as caminhadas, nem mesmo os ataques.
A tarefa mais árdua é prestar ouvido à massa de queixas, lamentações e pedidos, vozes da infinita variedade da infelicidade humana, das quais talvez qualquer político ou candidato seja o destinatário.
Em cima da mesa que estava entre nós, havia um apanhado de cartas e bilhetes que os eleitores tinham depositado na mão de Serra naquele dia. Alguns pedidos permitiam uma resposta adequada e circunscrita: dificuldades em obter consultas médicas ou agendar operações, histórias de IPTU excessivo, de lentidões administrativas e por aí vai.
No Ministério da Saúde de Serra, aliás, um assessor era encarregado de resolver as dificuldades dos cidadãos que escreviam. Claro, era uma gota de água. As soluções encontradas não operavam nem prometiam as mudanças coletivas desejadas, no entanto eram um jeito de não esquecer que a política não é nada se não responde às necessidades das vidas concretas. Seja como for, a esses pedidos era fácil responder com uma ação.
Mas, em sua imensa maioria, as cartas e os bilhetes na minha frente eram folhas de caderno em que uma escrita hesitante e corajosa expressava dores cuja solução não estava ao alcance de uma ação: vidas quebradas por uma mistura de falta de emprego e de função social, dramas familiares, fugas, lutos.
As missivas não pediam nada e pediam tudo. Pareciam-se com as invocações que, em certas igrejas de minha infância, os fieis depositavam ao lado da estátua do santo ou nas dobras de seu manto, para que ele lesse e tomasse providências. Algumas nem detalhavam males e sofrimentos; confiavam na onisciência do destinatário, diziam apenas: "Serra, nos ajude".
Ora, talvez a demagogia política tenha sido inventada para isto: para que candidatos e governantes possam agüentar mais facilmente o peso da demanda que recebem, calá-la enfiando balinhas de ilusão na goela de quem se queixa e, naturalmente, em seus próprios ouvidos.
Aparentemente, Serra não sabe se dar esse luxo. E, sem o recurso da demagogia, o peso dos pedidos é violento, produz a sensação de uma responsabilidade constante por uma tarefa impossível.
Talvez por isso mesmo Serra pareça sempre procurar, na fala de quem o interpela, algum pedido concreto, algo que possa receber uma resposta efetiva.
Segunda-feira, no bairro Jova Rural, Serra visitou a casa de uma jovem senhora, Andréa Rodrigues. Escutou uma dura história de doenças e infortúnios. E disse para Andréa, que mostrava um sorriso desdentado: "Precisamos arrumar esses dentes". Brutal? Inoportuno? Acho que, para Serra, era o jeito de encontrar algo que pudesse ser feito mesmo, de não sucumbir ao marasmo do impossível. Não temos as chaves do paraíso, mas algo podemos mudar, uma coisa pequena comparada com o resto, mas uma coisa: os dentes.
Às vezes, esse anseio de fazer assusta. Numa caminhada no Tremembé/Jaçanã (conheci enfim o lugar para onde vai o trem das 11), um homem pára sua bicicleta de corrida e, do fio da calçada, grita: "Serra, vamos fazer pistas para bicicletas!".
Imagino que ele esperasse um gesto ou um sorriso de aprovação. Mas Serra foi até ele: "Vamos fazer, sim. É uma questão importante, que é preciso estudar com cuidado". Estupefação do homem; aparentemente o apego ao que pode ser feito é mais inesperado do que a vaga referência ao sol de amanhã.
E quando não há nada que possa ser feito? Na caminhada no Tremembé, Serra ouviu muitas queixas de tudo e nada, mão no ombro, com calma, como se o dia não fosse acabar. E se despediu sem promessas. Mesmo assim, o alívio de quem falara com ele era óbvio: era o alívio de ter sido escutado ou escutada. O fardo ficava com Serra.
Quase no fim da caminhada, uma mulher protestou. Disse que Serra teria seu voto, que não se preocupasse, mas que essas caminhadas atrapalhavam o trânsito na hora do rush. Fiquei a fim de lhe responder que os verdadeiros beneficiários das caminhadas às quais eu assisti éramos nós, os cidadãos.
Nelas, o que importava não eram tanto os votos ganhos ou não pelo candidato. O que importava era o encontro do candidato com o murmúrio surdo da demanda humana.
Pois, quando esse encontro não acontece ou quando a demanda é calada à força de ilusões, é difícil que um candidato adquira a estatura moral que se espera de quem governa.
Serra detesta demagogia; responde aos apelos que ouve com calma e se despede sem promessas
CONTARDO CALLIGARIS
Na sabatina da Folha, Serra chegou com um pequeno atraso.
Sabíamos que acontecera um imprevisto e, nos bastidores, houve um momento em que chegamos a pensar que o debate não aconteceria. Enfim, a sabatina começou 15 minutos mais tarde do que a norma dos dias anteriores.
Quando voltei para casa, poucas horas depois, encontrei o e-mail de uma leitora, que acabava de assistir ao debate. Ela esculhambava o candidato, observando que ele nem pedira desculpas pelo atraso, "que parece ter achado supernormal". A seu ver, Serra, com seu silêncio, saíra mal na foto.
Ora, junto com os outros entrevistadores e os organizadores do debate, eu conhecia as razões do atraso. Eram do tipo que, se reveladas, tocariam o coração e ganhariam a simpatia imediata de todos os presentes. Serra não as mencionou.
Tampouco ele inventou uma daquelas desculpas que garantem a cumplicidade de um público paulistano (uma alusão ao trânsito, por exemplo). Pois bem, a escolha de não dizer nada, que pareceu áspera à leitora que me escreveu, é o efeito de um "parti pris", que se manteve constante nas conversas que tive com Serra e na caminhada em que pude acompanhá-lo: José Serra detesta demagogia.
O que não significa que ele não queira a simpatia e a aprovação dos outros (isso, todos queremos). Ao contrário, a recusa da demagogia, desse ponto de vista, é a expressão de um pedido especialmente rigoroso. Traduzido nos termos das relações amorosas, é parecida, por exemplo, com o pedido de uma parceira que exigiria: goste de mim descabelada, de manhã cedo, sem maquiagem e sem plástica.
Lembra? No debate ao redor da moratória da dívida externa durante o governo Sarney, por exemplo, Serra admitia a moratória, pois, de fato, o Brasil não tinha como honrar os pagamentos previstos. Mas ele se opunha à transformação desse fracasso financeiro num grito heróico de independência. Nada de dourar a pílula para acariciar o ufanismo na direção do pelo. Mais recentemente, na ocasião do aniversário do golpe de 64, Serra, com 14 anos de exílio nas costas, poderia participar da festa tocando na banda da vitória. Preferiu criticar sua própria atuação na época e apontar, no comportamento de Jango e das esquerdas, fatores que precipitaram o golpe.
A recusa obstinada da demagogia pode cortar os entusiasmos e ter um custo político. Mas seu custo maior acaba sendo subjetivo. Explico.
Sábado passado, Serra aceitou me receber. Salvo pela sessão da sabatina, dias antes, foi nosso primeiro encontro e conversamos noite adentro. Falando das campanhas, ele disse que o mais difícil não são as horas de gravação, as discussões estratégicas, os comícios, as carreatas, as caminhadas, nem mesmo os ataques.
A tarefa mais árdua é prestar ouvido à massa de queixas, lamentações e pedidos, vozes da infinita variedade da infelicidade humana, das quais talvez qualquer político ou candidato seja o destinatário.
Em cima da mesa que estava entre nós, havia um apanhado de cartas e bilhetes que os eleitores tinham depositado na mão de Serra naquele dia. Alguns pedidos permitiam uma resposta adequada e circunscrita: dificuldades em obter consultas médicas ou agendar operações, histórias de IPTU excessivo, de lentidões administrativas e por aí vai.
No Ministério da Saúde de Serra, aliás, um assessor era encarregado de resolver as dificuldades dos cidadãos que escreviam. Claro, era uma gota de água. As soluções encontradas não operavam nem prometiam as mudanças coletivas desejadas, no entanto eram um jeito de não esquecer que a política não é nada se não responde às necessidades das vidas concretas. Seja como for, a esses pedidos era fácil responder com uma ação.
Mas, em sua imensa maioria, as cartas e os bilhetes na minha frente eram folhas de caderno em que uma escrita hesitante e corajosa expressava dores cuja solução não estava ao alcance de uma ação: vidas quebradas por uma mistura de falta de emprego e de função social, dramas familiares, fugas, lutos.
As missivas não pediam nada e pediam tudo. Pareciam-se com as invocações que, em certas igrejas de minha infância, os fieis depositavam ao lado da estátua do santo ou nas dobras de seu manto, para que ele lesse e tomasse providências. Algumas nem detalhavam males e sofrimentos; confiavam na onisciência do destinatário, diziam apenas: "Serra, nos ajude".
Ora, talvez a demagogia política tenha sido inventada para isto: para que candidatos e governantes possam agüentar mais facilmente o peso da demanda que recebem, calá-la enfiando balinhas de ilusão na goela de quem se queixa e, naturalmente, em seus próprios ouvidos.
Aparentemente, Serra não sabe se dar esse luxo. E, sem o recurso da demagogia, o peso dos pedidos é violento, produz a sensação de uma responsabilidade constante por uma tarefa impossível.
Talvez por isso mesmo Serra pareça sempre procurar, na fala de quem o interpela, algum pedido concreto, algo que possa receber uma resposta efetiva.
Segunda-feira, no bairro Jova Rural, Serra visitou a casa de uma jovem senhora, Andréa Rodrigues. Escutou uma dura história de doenças e infortúnios. E disse para Andréa, que mostrava um sorriso desdentado: "Precisamos arrumar esses dentes". Brutal? Inoportuno? Acho que, para Serra, era o jeito de encontrar algo que pudesse ser feito mesmo, de não sucumbir ao marasmo do impossível. Não temos as chaves do paraíso, mas algo podemos mudar, uma coisa pequena comparada com o resto, mas uma coisa: os dentes.
Às vezes, esse anseio de fazer assusta. Numa caminhada no Tremembé/Jaçanã (conheci enfim o lugar para onde vai o trem das 11), um homem pára sua bicicleta de corrida e, do fio da calçada, grita: "Serra, vamos fazer pistas para bicicletas!".
Imagino que ele esperasse um gesto ou um sorriso de aprovação. Mas Serra foi até ele: "Vamos fazer, sim. É uma questão importante, que é preciso estudar com cuidado". Estupefação do homem; aparentemente o apego ao que pode ser feito é mais inesperado do que a vaga referência ao sol de amanhã.
E quando não há nada que possa ser feito? Na caminhada no Tremembé, Serra ouviu muitas queixas de tudo e nada, mão no ombro, com calma, como se o dia não fosse acabar. E se despediu sem promessas. Mesmo assim, o alívio de quem falara com ele era óbvio: era o alívio de ter sido escutado ou escutada. O fardo ficava com Serra.
Quase no fim da caminhada, uma mulher protestou. Disse que Serra teria seu voto, que não se preocupasse, mas que essas caminhadas atrapalhavam o trânsito na hora do rush. Fiquei a fim de lhe responder que os verdadeiros beneficiários das caminhadas às quais eu assisti éramos nós, os cidadãos.
Nelas, o que importava não eram tanto os votos ganhos ou não pelo candidato. O que importava era o encontro do candidato com o murmúrio surdo da demanda humana.
Pois, quando esse encontro não acontece ou quando a demanda é calada à força de ilusões, é difícil que um candidato adquira a estatura moral que se espera de quem governa.
quinta-feira, 30 de setembro de 2004
Elogio das eleições
Em época de eleições, sempre ouço comentários sarcásticos: votar é participar de um processo idiota, em que um monte de sujeitos desinformados escolhem administradores e representantes segundo critérios que nada têm a ver com as questões e os valores em jogo.
Responder o quê? É um fato: em sua maioria, os eleitores são desinformados. Eis um exemplo americano (sem ufanismo: a situação no Brasil não deve ser melhor): o Program on International Policy Attitudes (programa que estuda as opiniões dos cidadãos sobre política internacional), da Universidade de Maryland, nos EUA, quis saber o que pensam os americanos em matéria de ajuda a países estrangeiros. Resultados: em 2002, a maioria dos americanos queria que os EUA gastassem US$ 1 em ajuda a países estrangeiros a cada US$ 3 destinados à defesa nacional. De fato, os EUA gastam US$ 1 em ajuda internacional a cada US$ 19 investidos na defesa.
Portanto você poderia imaginar que os ditos americanos quisessem gastar menos em armamentos e mais em ajuda internacional. Nada disso: em sua maioria, os ditos americanos pensavam que os EUA investiam demais em ajuda internacional. Como pode? Simples. Eles não conheciam as alocações orçamentárias: acreditavam que os EUA gastassem 24% de seu Orçamento em ajuda a países estrangeiros (um disparate; na realidade, a ajuda internacional absorve 1% do Orçamento dos EUA).
O que aconteceria na hora de esses cidadãos votarem? Aclamariam o candidato que prometesse diminuir a ajuda a países estrangeiros. No entanto, se conhecessem o tamanho real dessa ajuda, eles prefeririam aumentá-la.
Não me diga que esses sujeitos seriam informados graças ao debate entre partidos e candidatos. Sob a névoa das campanhas eleitorais, é provável que ninguém aprenda coisa alguma. Você, eleitor paulistano médio, depois de semanas de horário eleitoral, sabe mesmo quem começou as obras daquela estação de metrô que lhe interessa?
O eleitor desinformado, então, escolhe baseando-se em quê?
Nosso interlocutor desabusado dirá que o voto é efeito de marketing, de interesses privados imediatos e de simpatias irracionais. Nada a ver com a idéia do bem público. Ele concluirá: não seria melhor desistir da democracia e confiar o governo a quem sabe das coisas? (Detalhe: quem pensa assim, em geral, inclui-se na elite dos que sabem das coisas.)
Sem chegar a tanto, é banal considerar que o funcionamento democrático seria "dos males o menor". Entende-se por quê: nossa cultura valoriza a consciência crítica dos indivíduos. As decisões coletivas nos parecem fadadas ao erro por serem paixões da massa manipulada ou médias estatísticas, consensos numéricos sem argumentação e sem complexidade.
Ora, acaba de sair um livro divertido, perfeito para uma época de eleições, "The Wisdom of Crowds" (a sabedoria das multidões), de James Surowiecki. O livro é uma mina de exemplos, nos quais aparece que as coletividades chegam a decisões parecidas com as dos mais sábios. As experiências relatadas funcionam mais ou menos assim: reúne-se um grupo de sujeitos com grandes competências específicas para a solução de um problema. Para resolver o mesmo problema, reúne-se outro grupo de sujeitos com competências menores e muito menos específicas. Comparam-se os resultados. Misteriosamente, os resultados do segundo grupo (menos homogêneo e menos competente) são parecidos com os do primeiro (ou, então, são melhores). Não me pergunte por quê; o fato é que a diversidade dos sujeitos que compõem o segundo grupo parece valer tanto quanto a competência dos especialistas, se não mais. Os chutes e os palpites dos desinformados competem com as decisões argumentadas dos "experts".
A misteriosa sabedoria das multidões não é o único argumento a favor da prática democrática. Há outro, talvez mais importante. Para introduzi-lo, uma anedota. Zombei de um amigo inglês, pelo fato de a Grã-Bretanha ser "ainda" uma monarquia. Ele me respondeu que eu não entendia a beleza do sistema: a cada semana, o primeiro-ministro, homem inteligente e escolhido pelo voto popular, deve prestar conta a um rei ou a uma rainha ignaros, eventualmente arrogantes e escolhidos pela roleta genética. A humildade necessária para essa prestação de contas seria, segundo meu amigo, a suprema virtude democrática inglesa.
Adaptemos essa anedota ao funcionamento das eleições. Os que sabem das coisas (nós, não é?) devem tolerar que a escolha de representantes e governos esteja nas mãos de uma massa, da qual eles fazem parte, mas que lhes parece ser composta, em sua maioria, de sujeitos que decidem Deus sabe segundo qual critério.
O exercício democrático, nota Surowiecki em sua conclusão, é a "experiência de não ter tudo o que a gente quer. É a experiência de ver nossos opositores ganharem (...) e de aceitar essa situação". Acrescento que é também a experiência de ser apenas um entre outros.
Nisso, as eleições são terapêuticas, pois não há cura para a dor de viver que não peça justamente que desistamos de considerar que somos extraordinários, onipotentes e únicos.
Responder o quê? É um fato: em sua maioria, os eleitores são desinformados. Eis um exemplo americano (sem ufanismo: a situação no Brasil não deve ser melhor): o Program on International Policy Attitudes (programa que estuda as opiniões dos cidadãos sobre política internacional), da Universidade de Maryland, nos EUA, quis saber o que pensam os americanos em matéria de ajuda a países estrangeiros. Resultados: em 2002, a maioria dos americanos queria que os EUA gastassem US$ 1 em ajuda a países estrangeiros a cada US$ 3 destinados à defesa nacional. De fato, os EUA gastam US$ 1 em ajuda internacional a cada US$ 19 investidos na defesa.
Portanto você poderia imaginar que os ditos americanos quisessem gastar menos em armamentos e mais em ajuda internacional. Nada disso: em sua maioria, os ditos americanos pensavam que os EUA investiam demais em ajuda internacional. Como pode? Simples. Eles não conheciam as alocações orçamentárias: acreditavam que os EUA gastassem 24% de seu Orçamento em ajuda a países estrangeiros (um disparate; na realidade, a ajuda internacional absorve 1% do Orçamento dos EUA).
O que aconteceria na hora de esses cidadãos votarem? Aclamariam o candidato que prometesse diminuir a ajuda a países estrangeiros. No entanto, se conhecessem o tamanho real dessa ajuda, eles prefeririam aumentá-la.
Não me diga que esses sujeitos seriam informados graças ao debate entre partidos e candidatos. Sob a névoa das campanhas eleitorais, é provável que ninguém aprenda coisa alguma. Você, eleitor paulistano médio, depois de semanas de horário eleitoral, sabe mesmo quem começou as obras daquela estação de metrô que lhe interessa?
O eleitor desinformado, então, escolhe baseando-se em quê?
Nosso interlocutor desabusado dirá que o voto é efeito de marketing, de interesses privados imediatos e de simpatias irracionais. Nada a ver com a idéia do bem público. Ele concluirá: não seria melhor desistir da democracia e confiar o governo a quem sabe das coisas? (Detalhe: quem pensa assim, em geral, inclui-se na elite dos que sabem das coisas.)
Sem chegar a tanto, é banal considerar que o funcionamento democrático seria "dos males o menor". Entende-se por quê: nossa cultura valoriza a consciência crítica dos indivíduos. As decisões coletivas nos parecem fadadas ao erro por serem paixões da massa manipulada ou médias estatísticas, consensos numéricos sem argumentação e sem complexidade.
Ora, acaba de sair um livro divertido, perfeito para uma época de eleições, "The Wisdom of Crowds" (a sabedoria das multidões), de James Surowiecki. O livro é uma mina de exemplos, nos quais aparece que as coletividades chegam a decisões parecidas com as dos mais sábios. As experiências relatadas funcionam mais ou menos assim: reúne-se um grupo de sujeitos com grandes competências específicas para a solução de um problema. Para resolver o mesmo problema, reúne-se outro grupo de sujeitos com competências menores e muito menos específicas. Comparam-se os resultados. Misteriosamente, os resultados do segundo grupo (menos homogêneo e menos competente) são parecidos com os do primeiro (ou, então, são melhores). Não me pergunte por quê; o fato é que a diversidade dos sujeitos que compõem o segundo grupo parece valer tanto quanto a competência dos especialistas, se não mais. Os chutes e os palpites dos desinformados competem com as decisões argumentadas dos "experts".
A misteriosa sabedoria das multidões não é o único argumento a favor da prática democrática. Há outro, talvez mais importante. Para introduzi-lo, uma anedota. Zombei de um amigo inglês, pelo fato de a Grã-Bretanha ser "ainda" uma monarquia. Ele me respondeu que eu não entendia a beleza do sistema: a cada semana, o primeiro-ministro, homem inteligente e escolhido pelo voto popular, deve prestar conta a um rei ou a uma rainha ignaros, eventualmente arrogantes e escolhidos pela roleta genética. A humildade necessária para essa prestação de contas seria, segundo meu amigo, a suprema virtude democrática inglesa.
Adaptemos essa anedota ao funcionamento das eleições. Os que sabem das coisas (nós, não é?) devem tolerar que a escolha de representantes e governos esteja nas mãos de uma massa, da qual eles fazem parte, mas que lhes parece ser composta, em sua maioria, de sujeitos que decidem Deus sabe segundo qual critério.
O exercício democrático, nota Surowiecki em sua conclusão, é a "experiência de não ter tudo o que a gente quer. É a experiência de ver nossos opositores ganharem (...) e de aceitar essa situação". Acrescento que é também a experiência de ser apenas um entre outros.
Nisso, as eleições são terapêuticas, pois não há cura para a dor de viver que não peça justamente que desistamos de considerar que somos extraordinários, onipotentes e únicos.
quinta-feira, 23 de setembro de 2004
Controlar e regulamentar
Regulamentar está na moda.
Nos últimos tempos, 1) o governo propôs a criação de uma agência nacional que fomentaria e fiscalizaria a produção cinematográfica e audiovisual; 2) o presidente da República apoiou repetidamente o projeto de instituir um Conselho Nacional de Jornalismo que exala um perfume de censura; 3) o Conselho Federal de Psicologia apresentou um novo código de ética, segundo o qual os psicólogos teriam a obrigação de denunciar os pacientes que cometessem ou relatassem atos violentos e ilícitos; 4) tramita no Senado um projeto de lei segundo o qual qualquer diagnóstico e qualquer indicação de tratamento seriam atos reservados ao médico. Na semana passada, aliás, profissionais e estudantes de várias categorias da saúde (farmácia, fisioterapia, educação física, enfermagem, fonoaudiologia, nutrição, psicologia, odontologia, biologia, biologia médica etc.) manifestaram-se contra o projeto pelo Brasil afora.
Essas propostas, concebidas supostamente para o bem da comunidade, ferem a liberdade dos indivíduos sem que apareça com clareza a necessidade desse sacrifício.
Tomemos o caso da lei do ato médico. Imagine: estou com câncer e acredito nos poderes de uma terapia oriental pela queima de incenso ou na eficácia de operações espirituais. Você é médico e aprendeu que nada disso funciona. Você tem o direito e o dever de me informar. Pode também excluir essas práticas da lista dos procedimentos oferecidos pela assistência pública, pois é lógico que a dita lista seja estabelecida segundo o consenso majoritário em matéria de saúde. Mas pergunto: é necessário que uma lei impeça meu sábio oriental ou espírita de praticar sua arte, de se dizer terapeuta e de propor seus serviços como cura?
Alguém dirá que a lei do ato médico nos protege contra a charlatanice. Respondo: a comunidade tem o dever de tutelar seus membros, mas será que isso a autoriza a legiferar sobre as escolhas dos cidadãos como se fossem menores? Além disso, os critérios da legislação não são simples.
A história da medicina é uma longa batalha entre idéias e práticas que se acusaram mutuamente de charlatanice.
Considere o eletrochoque. Em poucas décadas, essa prática terapêutica dos transtornos mentais deixou de aparecer como uma cura milagrosa e se tornou uma prática execrada. Hoje, alguns afirmam que o choque é eficaz em casos de depressão grave e resistente; outros querem bani-lo. Se fosse preciso legislar, faria sentido decidir que qualquer prática é legítima à condição que seu defensor seja médico?
Não é melhor não legislar e deixar que o paciente e seus próximos, uma vez informados, escolham livremente a terapia e o terapeuta?
Os espaços sociais, em sua maioria, são administrados pelas interações concretas que os indivíduos inventam; por que, de repente, tantos espaços necessitariam dos cuidados do legislador? De onde vem essa epidemia de propostas que querem nosso bem e comprometem nossa autonomia?
Na "Veja" desta semana, Roberto DaMatta afirma que o governo do momento tem duas faces: uma face que acredita no indivíduo como valor e uma face pela qual a organização do coletivo (sindicatos, corporações, conselhos etc.) seria mais importante do que as pessoas concretas. Em suma, uma face que acredita nas cabeças, e outra que acredita mais nos bonés.
É uma luta que dura desde o começo da modernidade. Num canto, Adam Smith, com a idéia de que é preciso legislar pouco, pois os indivíduos encontram jeitos de conviver à força de acertos e desacertos. No outro, Rousseau, com a idéia de que é preciso estabelecer uma vontade geral, extrair regras "certas" da confusão de nossas vidas e impô-las a todos.
Atualmente, Rousseau parece prevalecer na administração de nossa vida concreta. É estranho que isso aconteça logo hoje, quando Adam Smith prevalece na hora de o governo fazer suas escolhas econômicas fundamentais.
Surge a suspeita de que se manifeste aqui um mecanismo que, no passado, transformou muitos revolucionários em burocratas: não conseguiram mudar as grandes estruturas do mundo segundo seus desejos, mas se dedicaram a regulamentar a vida cotidiana minuciosa e opressivamente. Ou seja, sonharam em vão com um mundo radicalmente feliz e passaram a instituir regras para mil casos em que seria melhor "deixar como está para ver como fica".
Eis uma constatação banal em psicopatologia. Há pessoas que regulam sua própria vida a ponto de transformá-la num pesadelo de obediências. Alguém só pode virar à esquerda se ele chegar na esquina com o pé direito; outro só pode pagar se tiver o troco exato no bolso. Em geral, os sistemas de regras são mais complexos. De qualquer forma, essas pessoas, algozes de sua própria liberdade, têm um traço em comum. Quase sempre, elas carregam consigo a lembrança ou a fantasia de uma imensa felicidade que lhes foi retirada ou com a qual sonharam e que não aconteceu. Em geral, o excesso de regras que elas impõem a suas vidas tem uma dupla função.
Serve para consolar: perdi o paraíso, mas continuo controlando o mundo. E serve para proteger: a lembrança do paraíso perdido é tão forte que minha vontade de reencontrá-lo me atropelaria se eu não regrasse cada passo de meu caminho.
Difícil não perguntar: alguma relação com a atual paixão de regulamentar a vida?
Nos últimos tempos, 1) o governo propôs a criação de uma agência nacional que fomentaria e fiscalizaria a produção cinematográfica e audiovisual; 2) o presidente da República apoiou repetidamente o projeto de instituir um Conselho Nacional de Jornalismo que exala um perfume de censura; 3) o Conselho Federal de Psicologia apresentou um novo código de ética, segundo o qual os psicólogos teriam a obrigação de denunciar os pacientes que cometessem ou relatassem atos violentos e ilícitos; 4) tramita no Senado um projeto de lei segundo o qual qualquer diagnóstico e qualquer indicação de tratamento seriam atos reservados ao médico. Na semana passada, aliás, profissionais e estudantes de várias categorias da saúde (farmácia, fisioterapia, educação física, enfermagem, fonoaudiologia, nutrição, psicologia, odontologia, biologia, biologia médica etc.) manifestaram-se contra o projeto pelo Brasil afora.
Essas propostas, concebidas supostamente para o bem da comunidade, ferem a liberdade dos indivíduos sem que apareça com clareza a necessidade desse sacrifício.
Tomemos o caso da lei do ato médico. Imagine: estou com câncer e acredito nos poderes de uma terapia oriental pela queima de incenso ou na eficácia de operações espirituais. Você é médico e aprendeu que nada disso funciona. Você tem o direito e o dever de me informar. Pode também excluir essas práticas da lista dos procedimentos oferecidos pela assistência pública, pois é lógico que a dita lista seja estabelecida segundo o consenso majoritário em matéria de saúde. Mas pergunto: é necessário que uma lei impeça meu sábio oriental ou espírita de praticar sua arte, de se dizer terapeuta e de propor seus serviços como cura?
Alguém dirá que a lei do ato médico nos protege contra a charlatanice. Respondo: a comunidade tem o dever de tutelar seus membros, mas será que isso a autoriza a legiferar sobre as escolhas dos cidadãos como se fossem menores? Além disso, os critérios da legislação não são simples.
A história da medicina é uma longa batalha entre idéias e práticas que se acusaram mutuamente de charlatanice.
Considere o eletrochoque. Em poucas décadas, essa prática terapêutica dos transtornos mentais deixou de aparecer como uma cura milagrosa e se tornou uma prática execrada. Hoje, alguns afirmam que o choque é eficaz em casos de depressão grave e resistente; outros querem bani-lo. Se fosse preciso legislar, faria sentido decidir que qualquer prática é legítima à condição que seu defensor seja médico?
Não é melhor não legislar e deixar que o paciente e seus próximos, uma vez informados, escolham livremente a terapia e o terapeuta?
Os espaços sociais, em sua maioria, são administrados pelas interações concretas que os indivíduos inventam; por que, de repente, tantos espaços necessitariam dos cuidados do legislador? De onde vem essa epidemia de propostas que querem nosso bem e comprometem nossa autonomia?
Na "Veja" desta semana, Roberto DaMatta afirma que o governo do momento tem duas faces: uma face que acredita no indivíduo como valor e uma face pela qual a organização do coletivo (sindicatos, corporações, conselhos etc.) seria mais importante do que as pessoas concretas. Em suma, uma face que acredita nas cabeças, e outra que acredita mais nos bonés.
É uma luta que dura desde o começo da modernidade. Num canto, Adam Smith, com a idéia de que é preciso legislar pouco, pois os indivíduos encontram jeitos de conviver à força de acertos e desacertos. No outro, Rousseau, com a idéia de que é preciso estabelecer uma vontade geral, extrair regras "certas" da confusão de nossas vidas e impô-las a todos.
Atualmente, Rousseau parece prevalecer na administração de nossa vida concreta. É estranho que isso aconteça logo hoje, quando Adam Smith prevalece na hora de o governo fazer suas escolhas econômicas fundamentais.
Surge a suspeita de que se manifeste aqui um mecanismo que, no passado, transformou muitos revolucionários em burocratas: não conseguiram mudar as grandes estruturas do mundo segundo seus desejos, mas se dedicaram a regulamentar a vida cotidiana minuciosa e opressivamente. Ou seja, sonharam em vão com um mundo radicalmente feliz e passaram a instituir regras para mil casos em que seria melhor "deixar como está para ver como fica".
Eis uma constatação banal em psicopatologia. Há pessoas que regulam sua própria vida a ponto de transformá-la num pesadelo de obediências. Alguém só pode virar à esquerda se ele chegar na esquina com o pé direito; outro só pode pagar se tiver o troco exato no bolso. Em geral, os sistemas de regras são mais complexos. De qualquer forma, essas pessoas, algozes de sua própria liberdade, têm um traço em comum. Quase sempre, elas carregam consigo a lembrança ou a fantasia de uma imensa felicidade que lhes foi retirada ou com a qual sonharam e que não aconteceu. Em geral, o excesso de regras que elas impõem a suas vidas tem uma dupla função.
Serve para consolar: perdi o paraíso, mas continuo controlando o mundo. E serve para proteger: a lembrança do paraíso perdido é tão forte que minha vontade de reencontrá-lo me atropelaria se eu não regrasse cada passo de meu caminho.
Difícil não perguntar: alguma relação com a atual paixão de regulamentar a vida?
quinta-feira, 16 de setembro de 2004
"Cama de Gato"
"Cama de Gato", de Alexandre Stockler, estréia amanhã em São Paulo, Rio e Brasília. Espero que chegue logo ao resto do país. Assisti ao filme no sábado à noite, numa pré-estréia, e desde então ele cresce na lembrança.
Conselho a adolescentes, pais, educadores e outros interessados na adolescência: não percam.
O filme chega com duas reputações.
A primeira é a de ser escabroso. Bom, se a visão de dois pintos e um momento de sexo oral forem incômodos para você, feche os olhos e agüente firme: o resto compensará seu esforço.
A segunda é a de ser uma versão brasileira e pobre de "Kids" (filme de Larry Clark, de 1995). Ora, "Cama de Gato" tem uma qualidade moral decididamente superior à do filme de Clark.
Lembra de "Kids"? A gente saía com uma sensação contraditória: o filme inspirava um tipo de horror pela vida violenta e vazia dos adolescentes retratados, mas também conferia à adolescência sem rumo dos protagonistas uma dimensão inevitavelmente glamourosa. Era difícil ser adolescente, ver "Kids" e não querer para si os espasmos desesperados dos "teens" de Washington Square.
Alguns dirão que esse é o efeito sedutor da pátina hollywoodiana. "Cama de Gato" não produziria esse efeito graças à sua filmagem áspera, em vídeo (filmagem, aliás, que eu achei particularmente feliz). E graças a uma montagem que não deixa o tempo de sonhar com identificações possíveis, pois a narração é entrecortada por rápidas entrevistas de adolescentes "reais" ou pela aparição dos três personagens assistindo a seu próprio filme num cinema. De fato, "Cama de Gato" é estilisticamente mais próximo de "Bruxa de Blair" do que de "Kids". Mas não são apenas o tom de documentário e o distanciamento "à la Brecht" que fazem a diferença.
Os três amigos do filme de Stockler são muito mais complexos que os adolescentes de "Kids". Por isso eles são mais próximos dos adolescentes de nossa classe média urbana. Como diz um dos protagonistas, eles são, socialmente, pobres demais para serem ricos e ricos demais para serem pobres. São estudiosos o suficiente para passar em seus vestibulares e decididos a conquistar com diligência um lugar ensolarado para suas vidas adultas. Preocupam-se com as injustiças do mundo no qual vivem. E sua soltura na hora da balada não impede que eles sejam "bons" filhos, que respeitam pais e mães.
É essa "normalidade" que torna escandalosa a outra face dos adolescentes "médios" de "Cama de Gato" -escandalosa não pela licenciosidade (a gente não vai se indignar com uma transa, quatro beijos de língua, um baseado ou mesmo uma linha de cocaína no banheiro), mas pelo conflito trágico que exaspera os protagonistas e os leva ao pior.
Mesmo assim, a tragédia e o conflito poderiam conferir às aventuras dos três amigos uma espécie de grandeza épica "invejável". A inquietude famélica de suas noites poderia ser glamourosa como as aventuras dos "Kids". Ora, "Cama de Gato" evita essa armadilha pela sua força cômica.
Assisti ao filme numa sessão da meia-noite. Ao nosso lado estavam sentados três adolescentes, talvez um pouco "fumados": sua hilaridade contagiante era a prova de que o filme os forçava a se enxergar de uma maneira que devia ser, ao mesmo tempo, certeira e dificilmente tragável. Ou seja, o filme, aparentemente, oferecia-lhes uma imagem na qual se reconheciam, mas com a qual não devia ser agradável identificar-se.
Para não contar o filme, direi apenas que, juntando várias cenas, saí presenteado por uma extraordinária imagem da adolescência. E vai levar um bom tempo para que eu encontre uma melhor.
A imagem é esta: três jovens amigos, errando de carro na noite, fumam raivosamente seus cigarros, talvez por medo de se acalmar; são licenciosos na fala e nos atos, mas prontos a escarnecer a prostituta ou o travesti que lhes fala de um desejo com o qual, de fato, não sabem bem como lidar; metralham considerações pernósticas sobre as mudanças das quais o mundo precisa, mas estão prontos a agredir o miserável, talvez por medo de se parecer com ele; enfim, carregam dois presuntos com os quais não sabem o que fazer. Um é, classicamente, o corpo materno, do qual é complicado se separar; o outro é o corpo de alguém que poderia ser uma companheira se, para os adolescentes, na ingrata tarefa de definir sua identidade, o grupo de amigos não fosse sempre mais importante do que as difíceis negociações de qualquer história de amor.
Também não me esquecerei tão cedo da imagem dos três amigos, perdidos no lixão como personagens de Beckett à espera de um Godot que não chega e que certamente não é o pai; pois os pais, pelo que é de encontrar o norte na hora do vamos ver, talvez sejam tão perdidos quanto seus filhos adolescentes.
Na mesma noite em que assisti a "Cama de Gato", vi (também imperdível) "Redentor", de Cláudio Torres, que, como Stockler, propõe seu primeiro longa. Os dois filmes têm um traço em comum: em ambos, o efeito cômico não é fruto de uma caricatura, não é efeito de nenhuma simplificação grotesca. Admiravelmente, em ambos os filmes, o cômico revela a diabólica complicação do mundo. Viva o cinema brasileiro.
Conselho a adolescentes, pais, educadores e outros interessados na adolescência: não percam.
O filme chega com duas reputações.
A primeira é a de ser escabroso. Bom, se a visão de dois pintos e um momento de sexo oral forem incômodos para você, feche os olhos e agüente firme: o resto compensará seu esforço.
A segunda é a de ser uma versão brasileira e pobre de "Kids" (filme de Larry Clark, de 1995). Ora, "Cama de Gato" tem uma qualidade moral decididamente superior à do filme de Clark.
Lembra de "Kids"? A gente saía com uma sensação contraditória: o filme inspirava um tipo de horror pela vida violenta e vazia dos adolescentes retratados, mas também conferia à adolescência sem rumo dos protagonistas uma dimensão inevitavelmente glamourosa. Era difícil ser adolescente, ver "Kids" e não querer para si os espasmos desesperados dos "teens" de Washington Square.
Alguns dirão que esse é o efeito sedutor da pátina hollywoodiana. "Cama de Gato" não produziria esse efeito graças à sua filmagem áspera, em vídeo (filmagem, aliás, que eu achei particularmente feliz). E graças a uma montagem que não deixa o tempo de sonhar com identificações possíveis, pois a narração é entrecortada por rápidas entrevistas de adolescentes "reais" ou pela aparição dos três personagens assistindo a seu próprio filme num cinema. De fato, "Cama de Gato" é estilisticamente mais próximo de "Bruxa de Blair" do que de "Kids". Mas não são apenas o tom de documentário e o distanciamento "à la Brecht" que fazem a diferença.
Os três amigos do filme de Stockler são muito mais complexos que os adolescentes de "Kids". Por isso eles são mais próximos dos adolescentes de nossa classe média urbana. Como diz um dos protagonistas, eles são, socialmente, pobres demais para serem ricos e ricos demais para serem pobres. São estudiosos o suficiente para passar em seus vestibulares e decididos a conquistar com diligência um lugar ensolarado para suas vidas adultas. Preocupam-se com as injustiças do mundo no qual vivem. E sua soltura na hora da balada não impede que eles sejam "bons" filhos, que respeitam pais e mães.
É essa "normalidade" que torna escandalosa a outra face dos adolescentes "médios" de "Cama de Gato" -escandalosa não pela licenciosidade (a gente não vai se indignar com uma transa, quatro beijos de língua, um baseado ou mesmo uma linha de cocaína no banheiro), mas pelo conflito trágico que exaspera os protagonistas e os leva ao pior.
Mesmo assim, a tragédia e o conflito poderiam conferir às aventuras dos três amigos uma espécie de grandeza épica "invejável". A inquietude famélica de suas noites poderia ser glamourosa como as aventuras dos "Kids". Ora, "Cama de Gato" evita essa armadilha pela sua força cômica.
Assisti ao filme numa sessão da meia-noite. Ao nosso lado estavam sentados três adolescentes, talvez um pouco "fumados": sua hilaridade contagiante era a prova de que o filme os forçava a se enxergar de uma maneira que devia ser, ao mesmo tempo, certeira e dificilmente tragável. Ou seja, o filme, aparentemente, oferecia-lhes uma imagem na qual se reconheciam, mas com a qual não devia ser agradável identificar-se.
Para não contar o filme, direi apenas que, juntando várias cenas, saí presenteado por uma extraordinária imagem da adolescência. E vai levar um bom tempo para que eu encontre uma melhor.
A imagem é esta: três jovens amigos, errando de carro na noite, fumam raivosamente seus cigarros, talvez por medo de se acalmar; são licenciosos na fala e nos atos, mas prontos a escarnecer a prostituta ou o travesti que lhes fala de um desejo com o qual, de fato, não sabem bem como lidar; metralham considerações pernósticas sobre as mudanças das quais o mundo precisa, mas estão prontos a agredir o miserável, talvez por medo de se parecer com ele; enfim, carregam dois presuntos com os quais não sabem o que fazer. Um é, classicamente, o corpo materno, do qual é complicado se separar; o outro é o corpo de alguém que poderia ser uma companheira se, para os adolescentes, na ingrata tarefa de definir sua identidade, o grupo de amigos não fosse sempre mais importante do que as difíceis negociações de qualquer história de amor.
Também não me esquecerei tão cedo da imagem dos três amigos, perdidos no lixão como personagens de Beckett à espera de um Godot que não chega e que certamente não é o pai; pois os pais, pelo que é de encontrar o norte na hora do vamos ver, talvez sejam tão perdidos quanto seus filhos adolescentes.
Na mesma noite em que assisti a "Cama de Gato", vi (também imperdível) "Redentor", de Cláudio Torres, que, como Stockler, propõe seu primeiro longa. Os dois filmes têm um traço em comum: em ambos, o efeito cômico não é fruto de uma caricatura, não é efeito de nenhuma simplificação grotesca. Admiravelmente, em ambos os filmes, o cômico revela a diabólica complicação do mundo. Viva o cinema brasileiro.
quinta-feira, 9 de setembro de 2004
Um novo código para os psicólogos
Na Folha de domingo passado, uma reportagem de Fabiane Leite apresentava e comentava o projeto de um novo código de ética profissional do psicólogo, que será votado pela categoria em dezembro. Uma novidade inquietante concerne à questão do sigilo profissional.
Segundo o código em vigor, o psicólogo tem a (angustiante) liberdade de decidir em que circunstâncias extremas sua experiência e consciência podem exigir que ele quebre o sigilo e informe as autoridades competentes.
O novo código proposto adota o modelo norte-americano, pelo qual a quebra do sigilo não é um direito, mas um DEVER do profissional. O psicólogo será obrigado a informar a autoridade judiciária não só se ele for informado de um crime, mas quando ele achar que há risco ou ameaça para a integridade física ou psicológica de alguém. Se o dito alguém for criança, adolescente ou idoso, não será preciso que haja risco e ameaça, bastará a SUSPEITA.
Então, se você for psicólogo e não quiser que sua licença seja cassada, não hesite: caso seu/sua paciente declare que para ele/ela teria sido melhor não nascer (risco de suicídio, não é?) ou que seria bom estrangular o marido, a mãe ou a professora de matemática (risco de assassinato, não é?), ligue logo para a procuradoria. Espero que sejam criadas linhas 0800. Para facilitar o encaminhamento das denúncias, sugiro que a primeira triagem seja automática: se seu paciente pensou em suicídio, disque 1; se seu paciente pensou em assassinato, disque 2. Se ele pensou em assassinar a mãe ou o pai, disque 1; se ele pensou em assassinar você, disque 2.
A nova prescrição é catastrófica para qualquer prática psicoterápica. Na primeira entrevista, o psicólogo avisará: "Saiba que, se sua palavras acarretarem um risco, uma ameaça ou uma suspeita de perigo para a incolumidade física ou psíquica sua ou de outrem, informarei as autoridades. Agora fale livremente". Legal, não é?
De fato, como acontece nos EUA, funcionará um regime duplo. O psicólogo que trabalha em serviços comunitários considerará que sua responsabilidade é diante da comunidade; portanto ele encontrará no código o respaldo necessário para quebrar o sigilo sem tormentos excessivos. O profissional liberal continuará decidindo em seu foro íntimo. Conclusão: será institucionalizada a impossibilidade de tratamentos psicoterápicos dignos para pacientes de baixa renda.
Tomemos um caso real em que o novo código forçaria a informar as autoridades.
Uma moça se queixa de que o padrasto tentou seduzi-la. Será que se trata de fantasias em que pesam a recusa do novo marido da mãe e o ciúme pelo sucesso amoroso materno? Sei que qualquer moça, para tornar-se mulher, precisa encontrar (e recusar) algum indício de desejo no olhar do pai ou de quem ocupa seu lugar. Sei também que uma sedução efetiva pelo pai ou pelo padrasto produz um desastre psíquico: a moça se torna mulher, mas uma mulher sem pai. Afinal, se o pai me deseja realmente, ele não passa de um homem qualquer.
Então, denuncio o padrasto? O casal se separará (o padrasto indo eventualmente para a cadeia, por justa causa ou não) ou então a moça irá para um internato e, eventualmente, para outra família escolhida pelo tribunal. De qualquer forma, a moça se sentirá traída e punida por seu terapeuta. Falou de um receio, de uma fantasia ou mesmo de um fato de sua vida e o céu lhe caiu sobre a cabeça.
Segundo o código antigo, o tormento da decisão está com o terapeuta. Segundo o novo código, não tenho tempo para me atormentar: se me calo, sou cúmplice.
O único benefício certo do novo código é que o psicólogo será menos angustiado na hora de decidir sua conduta. Graças a Deus, agora ela é obrigatória.
Aos psicólogos que querem adequar o código brasileiro ao código norte-americano, sugiro a leitura do livro de Cristopher Bollas, "The New Informants".
Também importa lembrar que o psicoterapeuta (psicólogo ou não) tem o dever (isso sim) de interrogar-se sobre suas próprias motivações.
Ora, para evitar o exercício de nossa liberdade, inventamos estratégias sociais (leia-se, para começar, "O Medo à Liberdade", de Erich Fromm). E existem as estratégias singulares e patológicas pelas quais gostamos de transformar os direitos em deveres. Há sujeitos que só conseguem desejar por obrigação. Funciona assim, por exemplo. Alguém é obcecado por uma fantasia homossexual, mas não quer encarar seu desejo; preferem instituir uma regra: se ele chegar no limiar da sauna com o pé esquerdo, será obrigado a entrar. Sem isso, a entrada está proibida. Que alívio, não é?
Há mais. Entrevistado por Fabiane, Marcelo Del Chiaro, advogado do conselho regional de psicologia, declarou: "Tudo o que é ilícito deve ser denunciado. O que está se querendo é nortear um princípio quanto a isso". Entendi: terapia de toxicômano acontecerá só nos presídios.
É estranho. Eu esperava que qualquer psicólogo quisesse sobretudo escapar ao veredicto de Michel Foucault, segundo o qual é inelutável que os cuidados para com o bem-estar se transformem em formas insidiosas de controle social.
Aliás, outra leitura urgente: "A Vontade de Saber", de M. Foucault.
Segundo o código em vigor, o psicólogo tem a (angustiante) liberdade de decidir em que circunstâncias extremas sua experiência e consciência podem exigir que ele quebre o sigilo e informe as autoridades competentes.
O novo código proposto adota o modelo norte-americano, pelo qual a quebra do sigilo não é um direito, mas um DEVER do profissional. O psicólogo será obrigado a informar a autoridade judiciária não só se ele for informado de um crime, mas quando ele achar que há risco ou ameaça para a integridade física ou psicológica de alguém. Se o dito alguém for criança, adolescente ou idoso, não será preciso que haja risco e ameaça, bastará a SUSPEITA.
Então, se você for psicólogo e não quiser que sua licença seja cassada, não hesite: caso seu/sua paciente declare que para ele/ela teria sido melhor não nascer (risco de suicídio, não é?) ou que seria bom estrangular o marido, a mãe ou a professora de matemática (risco de assassinato, não é?), ligue logo para a procuradoria. Espero que sejam criadas linhas 0800. Para facilitar o encaminhamento das denúncias, sugiro que a primeira triagem seja automática: se seu paciente pensou em suicídio, disque 1; se seu paciente pensou em assassinato, disque 2. Se ele pensou em assassinar a mãe ou o pai, disque 1; se ele pensou em assassinar você, disque 2.
A nova prescrição é catastrófica para qualquer prática psicoterápica. Na primeira entrevista, o psicólogo avisará: "Saiba que, se sua palavras acarretarem um risco, uma ameaça ou uma suspeita de perigo para a incolumidade física ou psíquica sua ou de outrem, informarei as autoridades. Agora fale livremente". Legal, não é?
De fato, como acontece nos EUA, funcionará um regime duplo. O psicólogo que trabalha em serviços comunitários considerará que sua responsabilidade é diante da comunidade; portanto ele encontrará no código o respaldo necessário para quebrar o sigilo sem tormentos excessivos. O profissional liberal continuará decidindo em seu foro íntimo. Conclusão: será institucionalizada a impossibilidade de tratamentos psicoterápicos dignos para pacientes de baixa renda.
Tomemos um caso real em que o novo código forçaria a informar as autoridades.
Uma moça se queixa de que o padrasto tentou seduzi-la. Será que se trata de fantasias em que pesam a recusa do novo marido da mãe e o ciúme pelo sucesso amoroso materno? Sei que qualquer moça, para tornar-se mulher, precisa encontrar (e recusar) algum indício de desejo no olhar do pai ou de quem ocupa seu lugar. Sei também que uma sedução efetiva pelo pai ou pelo padrasto produz um desastre psíquico: a moça se torna mulher, mas uma mulher sem pai. Afinal, se o pai me deseja realmente, ele não passa de um homem qualquer.
Então, denuncio o padrasto? O casal se separará (o padrasto indo eventualmente para a cadeia, por justa causa ou não) ou então a moça irá para um internato e, eventualmente, para outra família escolhida pelo tribunal. De qualquer forma, a moça se sentirá traída e punida por seu terapeuta. Falou de um receio, de uma fantasia ou mesmo de um fato de sua vida e o céu lhe caiu sobre a cabeça.
Segundo o código antigo, o tormento da decisão está com o terapeuta. Segundo o novo código, não tenho tempo para me atormentar: se me calo, sou cúmplice.
O único benefício certo do novo código é que o psicólogo será menos angustiado na hora de decidir sua conduta. Graças a Deus, agora ela é obrigatória.
Aos psicólogos que querem adequar o código brasileiro ao código norte-americano, sugiro a leitura do livro de Cristopher Bollas, "The New Informants".
Também importa lembrar que o psicoterapeuta (psicólogo ou não) tem o dever (isso sim) de interrogar-se sobre suas próprias motivações.
Ora, para evitar o exercício de nossa liberdade, inventamos estratégias sociais (leia-se, para começar, "O Medo à Liberdade", de Erich Fromm). E existem as estratégias singulares e patológicas pelas quais gostamos de transformar os direitos em deveres. Há sujeitos que só conseguem desejar por obrigação. Funciona assim, por exemplo. Alguém é obcecado por uma fantasia homossexual, mas não quer encarar seu desejo; preferem instituir uma regra: se ele chegar no limiar da sauna com o pé esquerdo, será obrigado a entrar. Sem isso, a entrada está proibida. Que alívio, não é?
Há mais. Entrevistado por Fabiane, Marcelo Del Chiaro, advogado do conselho regional de psicologia, declarou: "Tudo o que é ilícito deve ser denunciado. O que está se querendo é nortear um princípio quanto a isso". Entendi: terapia de toxicômano acontecerá só nos presídios.
É estranho. Eu esperava que qualquer psicólogo quisesse sobretudo escapar ao veredicto de Michel Foucault, segundo o qual é inelutável que os cuidados para com o bem-estar se transformem em formas insidiosas de controle social.
Aliás, outra leitura urgente: "A Vontade de Saber", de M. Foucault.
quinta-feira, 2 de setembro de 2004
A corrida de Vanderlei Cordeiro de Lima
Vanderlei Cordeiro de Lima estava muito bem colocado para ganhar a maratona da Olimpíada de Atenas; depois de 36 quilômetros, corria com quase 40 segundos de vantagem.
Foi agredido, parado e derrubado pelo ex-padre Cornelius Horan, que estava ansioso por comunicar ao mundo sua mensagem. Fato incrível, Vanderlei encontrou a força e a concentração necessárias para retomar a corrida e conquistou o bronze.
Quanto a Horan, ele pagou uma fiança e, nesta altura, deve estar de volta à Inglaterra, acalmado pela breve prisão e por um antipsicótico. Se eu fosse juiz em Atenas, teria condenado o ex-padre Horan a correr uma maratona inteira movido a pontapés no traseiro. Isso, se fosse possível encontrar alguém que tivesse o fôlego para ficar atrás dele e lhe administrar a punição.
Durante dois anos de minha vida, pratiquei esporte de competição (nada de olímpico, apenas campeonatos universitários). Basta-me para ter uma idéia do que é o treino de um atleta como Vanderlei. Nada a ver com malhar para ficar bonito ou saudável. Certo, há o projeto de correr mais rápido que os outros, mas, no fundo, treinar é uma ascese que dispensa a promessa do paraíso ou da vitória. O treino é como uma obra de arte clássica; sua beleza está em sua aparente futilidade, no exercício de uma disciplina que não tem finalidade externa. O treino não transmite nenhuma mensagem urgente; ele "apenas" diz da capacidade humana de se engajar numa tarefa difícil. Por isso o treino é um exemplo moral: ensina que, para se dedicar a viver, não é preciso que a vida tenha um sentido.
Agora, imaginemos que o ex-padre Horan seja um profeta menos louco e confuso. Imaginemos que sua mensagem encontre nossa aprovação: qualquer coisa, desde o genocídio em curso no Sudão até a Aids na África ou a guerra no Iraque. Mais próximo do que ele mesmo deve pensar, imaginemos que se trate de uma espécie de segredo de Fátima que ele seria encarregado de transmitir e que poderia, se fosse escutado, tocar os corações de todos nós.
Pois é, você dirá, muito legal, seu Horan. Mas por que escolher logo aquele momento, com um maratonista brasileiro em primeira posição? Por que não foi para Nova York protestar na calçada da convenção do Partido Republicano?
Fora que, em Nova York, nestes dias, não faltam "Horans" de todo tipo, parece que o ex-padre tem um interesse específico por esporte. Já interveio numa corrida de Fórmula 1 e em jogos de rúgbi.
A competição esportiva deve ser o protótipo do que ele quer atrapalhar: "Parem de desperdiçar suas energias no esforço de correr ou bater bola; parem de torcer pelos atletas de seu coração. Acordem e façam algo mais útil para suas almas e para seus semelhantes".
Se o ex-padre Horan se dispusesse a escutar minha resposta, o que eu lhe diria?
Meus primeiros argumentos seriam uma defesa da vida concreta diante de exigências morais absolutas. É possível, eu diria ao ex-padre Horan, se importar com a guerra no Iraque e o genocídio no Sudão sem parar de viver histórias de amor, de ler romances, de tomar "capuccinos" na esquina, de cortar o cabelo, de treinar e de correr na próxima maratona.
Tentaria explicar ao ex-padre Horan que, certo, concordo: há coisas justas e coisas erradas e há coisas mais morais do que outras. Mas a vida, para nós, não é orientada por uma aspiração ou por um critério absoluto. Nossas escolhas são relativas não porque valeriam hoje e não amanhã, mas porque são concretas, relacionadas (é esse o sentido de nosso "relativismo") a realidades complexas e incertas, a do mundo e a nossa.
No entanto essas explicações conciliatórias talvez sejam enganosas. De fato, por concretas e incertas que sejam minhas escolhas morais, sei reconhecer a imoralidade. Pois acontece que a incerteza moral não é um "laissez-faire" ou uma forma de indiferença. Ao contrário, ela é para mim um valor essencial.
A meu ver, o ex-padre Horan, que não pesa na mesma balança a beleza da corrida de Vanderlei e a necessidade de conclamar sua fé, deu prova de uma inabalável certeza, que é o pecado moral supremo.
Em suma, a luta de Horan e Vanderlei é (como deve pensar Horan) a luta do bem contra o mal, só que (à diferença do que pensa Horan), nessa luta, Vanderlei é do bem, e Horan é do mal.
Nota, em clima de convenção do Partido Republicano em Nova York: é possível contrapor dezenas de razões pelas quais o governo americano devia ou não derrubar Saddam Hussein. Sempre há espaço para discutir sobre o certo e o errado. Mas o intolerável, o que é irremediavelmente errado, é a certeza moral com a qual a decisão foi argumentada.
Disse que a certeza moral é, para mim, o pecado moral supremo. Supremo, mas não por isso absoluto; a tal ponto que, justamente, posso desculpar o ex-padre Horan, porque entendo que seu gesto é o resultado da imponderável cadeia dos eventos concretos que constituem, banalmente, uma vida.
A Vanderlei, que conseguiu continuar a correr e sorrir no pódio, vão as felicitações e a glória devidas a um verdadeiro campeão.
Foi agredido, parado e derrubado pelo ex-padre Cornelius Horan, que estava ansioso por comunicar ao mundo sua mensagem. Fato incrível, Vanderlei encontrou a força e a concentração necessárias para retomar a corrida e conquistou o bronze.
Quanto a Horan, ele pagou uma fiança e, nesta altura, deve estar de volta à Inglaterra, acalmado pela breve prisão e por um antipsicótico. Se eu fosse juiz em Atenas, teria condenado o ex-padre Horan a correr uma maratona inteira movido a pontapés no traseiro. Isso, se fosse possível encontrar alguém que tivesse o fôlego para ficar atrás dele e lhe administrar a punição.
Durante dois anos de minha vida, pratiquei esporte de competição (nada de olímpico, apenas campeonatos universitários). Basta-me para ter uma idéia do que é o treino de um atleta como Vanderlei. Nada a ver com malhar para ficar bonito ou saudável. Certo, há o projeto de correr mais rápido que os outros, mas, no fundo, treinar é uma ascese que dispensa a promessa do paraíso ou da vitória. O treino é como uma obra de arte clássica; sua beleza está em sua aparente futilidade, no exercício de uma disciplina que não tem finalidade externa. O treino não transmite nenhuma mensagem urgente; ele "apenas" diz da capacidade humana de se engajar numa tarefa difícil. Por isso o treino é um exemplo moral: ensina que, para se dedicar a viver, não é preciso que a vida tenha um sentido.
Agora, imaginemos que o ex-padre Horan seja um profeta menos louco e confuso. Imaginemos que sua mensagem encontre nossa aprovação: qualquer coisa, desde o genocídio em curso no Sudão até a Aids na África ou a guerra no Iraque. Mais próximo do que ele mesmo deve pensar, imaginemos que se trate de uma espécie de segredo de Fátima que ele seria encarregado de transmitir e que poderia, se fosse escutado, tocar os corações de todos nós.
Pois é, você dirá, muito legal, seu Horan. Mas por que escolher logo aquele momento, com um maratonista brasileiro em primeira posição? Por que não foi para Nova York protestar na calçada da convenção do Partido Republicano?
Fora que, em Nova York, nestes dias, não faltam "Horans" de todo tipo, parece que o ex-padre tem um interesse específico por esporte. Já interveio numa corrida de Fórmula 1 e em jogos de rúgbi.
A competição esportiva deve ser o protótipo do que ele quer atrapalhar: "Parem de desperdiçar suas energias no esforço de correr ou bater bola; parem de torcer pelos atletas de seu coração. Acordem e façam algo mais útil para suas almas e para seus semelhantes".
Se o ex-padre Horan se dispusesse a escutar minha resposta, o que eu lhe diria?
Meus primeiros argumentos seriam uma defesa da vida concreta diante de exigências morais absolutas. É possível, eu diria ao ex-padre Horan, se importar com a guerra no Iraque e o genocídio no Sudão sem parar de viver histórias de amor, de ler romances, de tomar "capuccinos" na esquina, de cortar o cabelo, de treinar e de correr na próxima maratona.
Tentaria explicar ao ex-padre Horan que, certo, concordo: há coisas justas e coisas erradas e há coisas mais morais do que outras. Mas a vida, para nós, não é orientada por uma aspiração ou por um critério absoluto. Nossas escolhas são relativas não porque valeriam hoje e não amanhã, mas porque são concretas, relacionadas (é esse o sentido de nosso "relativismo") a realidades complexas e incertas, a do mundo e a nossa.
No entanto essas explicações conciliatórias talvez sejam enganosas. De fato, por concretas e incertas que sejam minhas escolhas morais, sei reconhecer a imoralidade. Pois acontece que a incerteza moral não é um "laissez-faire" ou uma forma de indiferença. Ao contrário, ela é para mim um valor essencial.
A meu ver, o ex-padre Horan, que não pesa na mesma balança a beleza da corrida de Vanderlei e a necessidade de conclamar sua fé, deu prova de uma inabalável certeza, que é o pecado moral supremo.
Em suma, a luta de Horan e Vanderlei é (como deve pensar Horan) a luta do bem contra o mal, só que (à diferença do que pensa Horan), nessa luta, Vanderlei é do bem, e Horan é do mal.
Nota, em clima de convenção do Partido Republicano em Nova York: é possível contrapor dezenas de razões pelas quais o governo americano devia ou não derrubar Saddam Hussein. Sempre há espaço para discutir sobre o certo e o errado. Mas o intolerável, o que é irremediavelmente errado, é a certeza moral com a qual a decisão foi argumentada.
Disse que a certeza moral é, para mim, o pecado moral supremo. Supremo, mas não por isso absoluto; a tal ponto que, justamente, posso desculpar o ex-padre Horan, porque entendo que seu gesto é o resultado da imponderável cadeia dos eventos concretos que constituem, banalmente, uma vida.
A Vanderlei, que conseguiu continuar a correr e sorrir no pódio, vão as felicitações e a glória devidas a um verdadeiro campeão.
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