quinta-feira, 14 de outubro de 2004

De novo, sobre a cura da homossexualidade

Na semana passada, critiquei o projeto de lei que criaria, no Estado do Rio de Janeiro, um programa de auxílio às pessoas que optarem pela mudança de sua orientação sexual da homossexualidade para a heterossexualidade. O "auxílio" consistiria em alocar fundos públicos a organizações e profissionais que proponham curas da homossexualidade.

Numerosos leitores me perguntaram como poderiam manifestar sua indignação. O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro está colhendo adesões de protesto (www.clam.org.br).

Mas quero sobretudo responder àqueles leitores que me escreveram para defender o projeto.
1) Alguns acharam abusiva minha comparação do programa carioca com um hipotético Instituto Michael Jackson para converter os negros em brancos. Concordo: cor da pele, orientação sexual, opinião ou fé são coisas bem diferentes. No entanto todos esses termos designam campos em que os cidadãos não precisam se conformar a uma norma. Nesses campos, o governo democrático garante a igualdade de todos perante a lei e cuida para que a sociedade não discrimine.

Conseqüência: você é evangélico; é seu direito expressar seu convencimento e mesmo tentar me converter. Mas o dinheiro público (que pertence a todos os cidadãos, em sua diversidade) não pode ser destinado a me arregimentar para sua igreja. Essa atividade você vai ter que pagar de seu bolso.

2) Outros argumentaram: a homossexualidade não é uma diferença protegida constitucionalmente, pois é uma doença ou, como escreveu a Comissão de Saúde da Assembléia carioca, "uma distorção da natureza". E o Estado tem o dever sacrossanto de curar os enfermos.

O relator da Comissão de Saúde foi o deputado Samuel Malafaia (PMDB), engenheiro e evangélico. Votou a favor. De onde lhe viria a competência para julgar se a homossexualidade é ou não um problema de saúde pública, não sei. Talvez um dom do Espírito Santo no último Pentecostes.

Votou a favor também o deputado Paulo Melo (PMDB), sem formação específica, inspirado (imagino) pelo preconceito comum.

O terceiro membro era o deputado Paulo Pinheiro (PT), médico pediatra. E ele votou pela "baixa em diligência", ou seja, ele pediu que o relatório fosse sustado e, por exemplo, avaliado por agentes competentes. Minoritário, seu voto não surtiu efeito nenhum.

Paulo Pinheiro não tinha como votar diferente. Em 1973, a American Psychiatric Association retirou a homossexualidade da lista dos transtornos mentais ou emocionais. Sucessivamente, a decisão foi ratificada pela American Psychological Association, pela American Counseling Association, pela Associação Brasileira de Psiquiatria, pelo Conselho Federal de Medicina e pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia pede explicitamente que os psicólogos não colaborem com serviços que propõem uma "cura" da homossexualidade.

3) Outros ainda interrogaram a expressão "orientação sexual". É uma formação genética? É o resultado de traumas infantis ou da propaganda cultural hollywoodiana? Ou é uma escolha livre?
Não acredito que a homossexualidade (assim como qualquer outra orientação sexual) tenha origem propriamente genética. As melhores pesquisas com gêmeos univitelinos mostram que a homossexualidade é comum a ambos os gêmeos em 50% dos casos. Pouco, tratando-se de sujeitos com patrimônio genético idêntico.

Quanto aos fatores externos, a American Psychiatric Association concluiu há tempo que a incidência de eventos traumáticos na infância de sujeitos homossexuais é igual à da população em geral e não é especialmente relacionada à orientação sexual adulta.

Em matéria de "propaganda" hollywoodiana que glamourizaria a homossexualidade, qualquer terapeuta pode confirmar o seguinte: os produtos culturais que, com mais freqüência, são marcantes na constituição de fantasias homossexuais são estátuas de anjos e santos nas igrejas ou histórias de mártires cristãos.

Enfim, a orientação sexual é uma escolha?

Por comodidade, hoje, fala-se de três orientações sexuais: heterossexual, homossexual e bissexual. Essa distinção tripartida é aproximativa. Por exemplo, como catalogar uma mulher que gosta que seu parceiro a "force" a ser, diante dele, o objeto sexual passivo de outra mulher? Bissexual? É complicado, pois, fora do cenário mencionado, ela detestaria os amassos, os beijos e a transa com uma outra mulher. Perguntas análogas podem ser colocadas para homens.

Em suma, nossas orientações sexuais são misturas singulares e únicas de fantasias, situações, palavras e preferências quanto ao sexo dos parceiros.

Afirmar que essas orientações são "escolhas" não significa que as adotemos como um prato no cardápio (carne ou peixe?).

Certo, a orientação sexual pode mudar no decorrer de uma vida, mas, a cada instante, ela é uma parte irrenunciável do que define um sujeito. É uma "escolha" neste sentido: ela é imposta a cada um por seu corpo e por sua história, nunca pela vontade abstrata de um legislador.

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