domingo, 3 de outubro de 2004

JOSÉ SERRA

ELEIÇÕES 2004

Serra detesta demagogia; responde aos apelos que ouve com calma e se despede sem promessas


CONTARDO CALLIGARIS


Na sabatina da Folha, Serra chegou com um pequeno atraso.
Sabíamos que acontecera um imprevisto e, nos bastidores, houve um momento em que chegamos a pensar que o debate não aconteceria. Enfim, a sabatina começou 15 minutos mais tarde do que a norma dos dias anteriores.

Quando voltei para casa, poucas horas depois, encontrei o e-mail de uma leitora, que acabava de assistir ao debate. Ela esculhambava o candidato, observando que ele nem pedira desculpas pelo atraso, "que parece ter achado supernormal". A seu ver, Serra, com seu silêncio, saíra mal na foto.
Ora, junto com os outros entrevistadores e os organizadores do debate, eu conhecia as razões do atraso. Eram do tipo que, se reveladas, tocariam o coração e ganhariam a simpatia imediata de todos os presentes. Serra não as mencionou.

Tampouco ele inventou uma daquelas desculpas que garantem a cumplicidade de um público paulistano (uma alusão ao trânsito, por exemplo). Pois bem, a escolha de não dizer nada, que pareceu áspera à leitora que me escreveu, é o efeito de um "parti pris", que se manteve constante nas conversas que tive com Serra e na caminhada em que pude acompanhá-lo: José Serra detesta demagogia.

O que não significa que ele não queira a simpatia e a aprovação dos outros (isso, todos queremos). Ao contrário, a recusa da demagogia, desse ponto de vista, é a expressão de um pedido especialmente rigoroso. Traduzido nos termos das relações amorosas, é parecida, por exemplo, com o pedido de uma parceira que exigiria: goste de mim descabelada, de manhã cedo, sem maquiagem e sem plástica.

Lembra? No debate ao redor da moratória da dívida externa durante o governo Sarney, por exemplo, Serra admitia a moratória, pois, de fato, o Brasil não tinha como honrar os pagamentos previstos. Mas ele se opunha à transformação desse fracasso financeiro num grito heróico de independência. Nada de dourar a pílula para acariciar o ufanismo na direção do pelo. Mais recentemente, na ocasião do aniversário do golpe de 64, Serra, com 14 anos de exílio nas costas, poderia participar da festa tocando na banda da vitória. Preferiu criticar sua própria atuação na época e apontar, no comportamento de Jango e das esquerdas, fatores que precipitaram o golpe.

A recusa obstinada da demagogia pode cortar os entusiasmos e ter um custo político. Mas seu custo maior acaba sendo subjetivo. Explico.

Sábado passado, Serra aceitou me receber. Salvo pela sessão da sabatina, dias antes, foi nosso primeiro encontro e conversamos noite adentro. Falando das campanhas, ele disse que o mais difícil não são as horas de gravação, as discussões estratégicas, os comícios, as carreatas, as caminhadas, nem mesmo os ataques.

A tarefa mais árdua é prestar ouvido à massa de queixas, lamentações e pedidos, vozes da infinita variedade da infelicidade humana, das quais talvez qualquer político ou candidato seja o destinatário.

Em cima da mesa que estava entre nós, havia um apanhado de cartas e bilhetes que os eleitores tinham depositado na mão de Serra naquele dia. Alguns pedidos permitiam uma resposta adequada e circunscrita: dificuldades em obter consultas médicas ou agendar operações, histórias de IPTU excessivo, de lentidões administrativas e por aí vai.

No Ministério da Saúde de Serra, aliás, um assessor era encarregado de resolver as dificuldades dos cidadãos que escreviam. Claro, era uma gota de água. As soluções encontradas não operavam nem prometiam as mudanças coletivas desejadas, no entanto eram um jeito de não esquecer que a política não é nada se não responde às necessidades das vidas concretas. Seja como for, a esses pedidos era fácil responder com uma ação.

Mas, em sua imensa maioria, as cartas e os bilhetes na minha frente eram folhas de caderno em que uma escrita hesitante e corajosa expressava dores cuja solução não estava ao alcance de uma ação: vidas quebradas por uma mistura de falta de emprego e de função social, dramas familiares, fugas, lutos.

As missivas não pediam nada e pediam tudo. Pareciam-se com as invocações que, em certas igrejas de minha infância, os fieis depositavam ao lado da estátua do santo ou nas dobras de seu manto, para que ele lesse e tomasse providências. Algumas nem detalhavam males e sofrimentos; confiavam na onisciência do destinatário, diziam apenas: "Serra, nos ajude".

Ora, talvez a demagogia política tenha sido inventada para isto: para que candidatos e governantes possam agüentar mais facilmente o peso da demanda que recebem, calá-la enfiando balinhas de ilusão na goela de quem se queixa e, naturalmente, em seus próprios ouvidos.
Aparentemente, Serra não sabe se dar esse luxo. E, sem o recurso da demagogia, o peso dos pedidos é violento, produz a sensação de uma responsabilidade constante por uma tarefa impossível.

Talvez por isso mesmo Serra pareça sempre procurar, na fala de quem o interpela, algum pedido concreto, algo que possa receber uma resposta efetiva.

Segunda-feira, no bairro Jova Rural, Serra visitou a casa de uma jovem senhora, Andréa Rodrigues. Escutou uma dura história de doenças e infortúnios. E disse para Andréa, que mostrava um sorriso desdentado: "Precisamos arrumar esses dentes". Brutal? Inoportuno? Acho que, para Serra, era o jeito de encontrar algo que pudesse ser feito mesmo, de não sucumbir ao marasmo do impossível. Não temos as chaves do paraíso, mas algo podemos mudar, uma coisa pequena comparada com o resto, mas uma coisa: os dentes.

Às vezes, esse anseio de fazer assusta. Numa caminhada no Tremembé/Jaçanã (conheci enfim o lugar para onde vai o trem das 11), um homem pára sua bicicleta de corrida e, do fio da calçada, grita: "Serra, vamos fazer pistas para bicicletas!".

Imagino que ele esperasse um gesto ou um sorriso de aprovação. Mas Serra foi até ele: "Vamos fazer, sim. É uma questão importante, que é preciso estudar com cuidado". Estupefação do homem; aparentemente o apego ao que pode ser feito é mais inesperado do que a vaga referência ao sol de amanhã.

E quando não há nada que possa ser feito? Na caminhada no Tremembé, Serra ouviu muitas queixas de tudo e nada, mão no ombro, com calma, como se o dia não fosse acabar. E se despediu sem promessas. Mesmo assim, o alívio de quem falara com ele era óbvio: era o alívio de ter sido escutado ou escutada. O fardo ficava com Serra.

Quase no fim da caminhada, uma mulher protestou. Disse que Serra teria seu voto, que não se preocupasse, mas que essas caminhadas atrapalhavam o trânsito na hora do rush. Fiquei a fim de lhe responder que os verdadeiros beneficiários das caminhadas às quais eu assisti éramos nós, os cidadãos.

Nelas, o que importava não eram tanto os votos ganhos ou não pelo candidato. O que importava era o encontro do candidato com o murmúrio surdo da demanda humana.

Pois, quando esse encontro não acontece ou quando a demanda é calada à força de ilusões, é difícil que um candidato adquira a estatura moral que se espera de quem governa.

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