quinta-feira, 2 de setembro de 2004

A corrida de Vanderlei Cordeiro de Lima

Vanderlei Cordeiro de Lima estava muito bem colocado para ganhar a maratona da Olimpíada de Atenas; depois de 36 quilômetros, corria com quase 40 segundos de vantagem.

Foi agredido, parado e derrubado pelo ex-padre Cornelius Horan, que estava ansioso por comunicar ao mundo sua mensagem. Fato incrível, Vanderlei encontrou a força e a concentração necessárias para retomar a corrida e conquistou o bronze.

Quanto a Horan, ele pagou uma fiança e, nesta altura, deve estar de volta à Inglaterra, acalmado pela breve prisão e por um antipsicótico. Se eu fosse juiz em Atenas, teria condenado o ex-padre Horan a correr uma maratona inteira movido a pontapés no traseiro. Isso, se fosse possível encontrar alguém que tivesse o fôlego para ficar atrás dele e lhe administrar a punição.

Durante dois anos de minha vida, pratiquei esporte de competição (nada de olímpico, apenas campeonatos universitários). Basta-me para ter uma idéia do que é o treino de um atleta como Vanderlei. Nada a ver com malhar para ficar bonito ou saudável. Certo, há o projeto de correr mais rápido que os outros, mas, no fundo, treinar é uma ascese que dispensa a promessa do paraíso ou da vitória. O treino é como uma obra de arte clássica; sua beleza está em sua aparente futilidade, no exercício de uma disciplina que não tem finalidade externa. O treino não transmite nenhuma mensagem urgente; ele "apenas" diz da capacidade humana de se engajar numa tarefa difícil. Por isso o treino é um exemplo moral: ensina que, para se dedicar a viver, não é preciso que a vida tenha um sentido.

Agora, imaginemos que o ex-padre Horan seja um profeta menos louco e confuso. Imaginemos que sua mensagem encontre nossa aprovação: qualquer coisa, desde o genocídio em curso no Sudão até a Aids na África ou a guerra no Iraque. Mais próximo do que ele mesmo deve pensar, imaginemos que se trate de uma espécie de segredo de Fátima que ele seria encarregado de transmitir e que poderia, se fosse escutado, tocar os corações de todos nós.

Pois é, você dirá, muito legal, seu Horan. Mas por que escolher logo aquele momento, com um maratonista brasileiro em primeira posição? Por que não foi para Nova York protestar na calçada da convenção do Partido Republicano?

Fora que, em Nova York, nestes dias, não faltam "Horans" de todo tipo, parece que o ex-padre tem um interesse específico por esporte. Já interveio numa corrida de Fórmula 1 e em jogos de rúgbi.

A competição esportiva deve ser o protótipo do que ele quer atrapalhar: "Parem de desperdiçar suas energias no esforço de correr ou bater bola; parem de torcer pelos atletas de seu coração. Acordem e façam algo mais útil para suas almas e para seus semelhantes".

Se o ex-padre Horan se dispusesse a escutar minha resposta, o que eu lhe diria?

Meus primeiros argumentos seriam uma defesa da vida concreta diante de exigências morais absolutas. É possível, eu diria ao ex-padre Horan, se importar com a guerra no Iraque e o genocídio no Sudão sem parar de viver histórias de amor, de ler romances, de tomar "capuccinos" na esquina, de cortar o cabelo, de treinar e de correr na próxima maratona.

Tentaria explicar ao ex-padre Horan que, certo, concordo: há coisas justas e coisas erradas e há coisas mais morais do que outras. Mas a vida, para nós, não é orientada por uma aspiração ou por um critério absoluto. Nossas escolhas são relativas não porque valeriam hoje e não amanhã, mas porque são concretas, relacionadas (é esse o sentido de nosso "relativismo") a realidades complexas e incertas, a do mundo e a nossa.

No entanto essas explicações conciliatórias talvez sejam enganosas. De fato, por concretas e incertas que sejam minhas escolhas morais, sei reconhecer a imoralidade. Pois acontece que a incerteza moral não é um "laissez-faire" ou uma forma de indiferença. Ao contrário, ela é para mim um valor essencial.

A meu ver, o ex-padre Horan, que não pesa na mesma balança a beleza da corrida de Vanderlei e a necessidade de conclamar sua fé, deu prova de uma inabalável certeza, que é o pecado moral supremo.

Em suma, a luta de Horan e Vanderlei é (como deve pensar Horan) a luta do bem contra o mal, só que (à diferença do que pensa Horan), nessa luta, Vanderlei é do bem, e Horan é do mal.
Nota, em clima de convenção do Partido Republicano em Nova York: é possível contrapor dezenas de razões pelas quais o governo americano devia ou não derrubar Saddam Hussein. Sempre há espaço para discutir sobre o certo e o errado. Mas o intolerável, o que é irremediavelmente errado, é a certeza moral com a qual a decisão foi argumentada.

Disse que a certeza moral é, para mim, o pecado moral supremo. Supremo, mas não por isso absoluto; a tal ponto que, justamente, posso desculpar o ex-padre Horan, porque entendo que seu gesto é o resultado da imponderável cadeia dos eventos concretos que constituem, banalmente, uma vida.

A Vanderlei, que conseguiu continuar a correr e sorrir no pódio, vão as felicitações e a glória devidas a um verdadeiro campeão.

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