quinta-feira, 4 de novembro de 2004

Eleições americanas



Na hora em que escrevo estas reflexões (segunda e terça-feira), não conheço o resultado das eleições presidenciais americanas. Mas, de qualquer forma, a batalha política do último ano impõe uma reflexão.

Décadas atrás, o poeta Robert Frost definiu assim o progressista de esquerda (que nos EUA se chama "liberal"): "Um progressista de esquerda é um sujeito de espírito tão aberto que, numa briga, ele não consegue tomar seu próprio partido". A definição é citada pelos progressistas como prova de sua generosidade esclarecida. E pelos conservadores como prova da fraqueza inepta dos progressistas.

A frase evoca um tempo mais simples (Robert Frost morreu em 1963), em que talvez houvesse só três posições: os abastados, que defendiam seus interesses, os pobres, que também defendiam seus interesses (opostos aos dos ricos), e os progressistas de esquerda, que, embora abastados, defendiam os interesses dos pobres.

Quem foi militante nos anos 60 se lembra de que nem sempre era pacífica a relação dos intelectuais ou estudantes progressistas (geralmente, de classe média) com a causa dos trabalhadores. A aliança entre operários e estudantes, proclamada no 68 francês, não dispensava alguns atritos. As direções sindicais e partidárias achavam que os estudantes não eram bem intelectuais "orgânicos" como mandava a teoria de Gramsci, ou seja, não se integravam direito nas organizações proletárias. E os estudantes descobriam com inquietude que algumas idéias de seus aliados proletários não eram necessariamente progressistas.

No entanto essas discordâncias não ameaçavam as alianças. Sindicalistas e militantes operários podiam ser contrários ao divórcio e ao aborto, podiam detestar as feministas, zombar dos gays e manifestar pontas explícitas de racismo; nem por isso os estudantes deixavam de considerá-los seus aliados. Um "patrão" podia freqüentar a mesma igreja que seus operários e manifestar as mesmas idéias tradicionais nas quais eles acreditavam; mesmo assim, ele continuava sendo, para eles, (na linguagem da época) o "inimigo de classe". Os estudantes podiam promover maluquices orgiásticas; eventualmente, os sindicalistas não os apresentariam a suas famílias, mas nem por isso eles deixariam de considerá-los como seus aliados.

Em suma, o que definia os campos opostos era a função de cada agente social na produção e na repartição do bolo. Como assinala Frost, o intelectual progressista podia escolher seu campo por razões ideais, mas isso, justamente, fazia dele uma exceção.

Ora, sobretudo nos últimos dez anos, nos EUA, acontece algo diferente. No centro do país, longe das grandes áreas urbanas, concentra-se um exército de derrotados. São fazendeiros empobrecidos ou expropriados, vítimas do fim dos subsídios agrícolas ou da concentração da agroindústria. São trabalhadores desempregados, vítimas da "liberdade" globalizada dos mercados, pois as indústrias migraram para países complacentes ou importaram ilegalmente uma mão-de-obra barata e não sindicalizada. Esse exército, em grande parte, vota hoje no Partido Republicano. Ou seja, vota a favor do agravamento das mesmas políticas econômicas que produziram sua decadência. Por quê?

Surfando habilmente na onda de repúdio que a contracultura dos anos 60 e 70 produziu na América profunda, os conservadores americanos conseguiram uma proeza: hoje, muitos pobres e derrotados atribuem sua miséria a uma degenerescência moral pela qual culpam os progressistas. Eles não entendem seu destino como conseqüência das políticas que os atropelam, mas como efeito da crise dos valores tradicionais do passado. Claro, esse passado é, para eles, a época perdida em que, no mínimo, eles conheciam a esperança de dias melhores.

Com isso, o fazendeiro expropriado e o desempregado sem subsídios e sem assistência médica podem votar para um partido que se opõe à intervenção do governo em matéria de seguro-saúde, que planejou acabar com o imposto progressivo ou que condena qualquer controle dos preços mínimos pagos aos agricultores. Votam assim porque atribuem o fim de seu mundo não às medidas econômicas que os golpearam, mas, por exemplo, à prática do aborto, à crise da família, às uniões civis entre homossexuais ou ao desrespeito pela suposta vontade de Deus.

Na história recente do Ocidente, os fascismos clássicos fornecem os melhores exemplos de uma façanha comparável, pela qual os derrotados foram transformados em milícias do conservadorismo ideológico e, portanto, em cúmplices de sua própria ruína.

É urgente entender o que acontece hoje nos EUA e, em particular, qual foi (qual é), nesse acontecimento em curso, o papel da Igreja Católica e de inúmeras denominações protestantes. Urgente, digo, não só para os americanos.

Nota: Thomas Frank acaba de publicar "What's the Matter with Kansas?" (O que Acontece com o Kansas?), que é uma excelente análise de como, no Estado de Kansas, a ideologia conservadora transformou muitas vítimas da política econômica dos últimos 20 anos em militantes do próprio partido que orquestrou o brutal empobrecimento do Estado.

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