quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

Uma condição básica para uma polícia eficiente



Na quinta passada, participei do seminário "Violência, Desafios e Ações", organizado por José Gregori. Durante um dia, ao redor de uma mesa, sem púlpito e sem público, duas dezenas de pessoas de formação variada expuseram e discutiram propostas.

A reunião era motivada por esta constatação: a falta de segurança está entre as pragas que mais estragam nossa vida, mas, apesar disso, ela não parece ser o objeto de planos de ação orgânicos. É raro que ocupe um lugar de verdadeiro destaque nas propostas de governo.

O debate foi extremamente proveitoso, e a iniciativa dará seus frutos. Entretanto, há uma observação que levei para a mesa e que quero repetir aqui.

É banal acusar a mídia, sobretudo a televisão e o cinema, de glamourizar a violência. Embora não haja pesquisas sérias que estabeleçam uma relação direta entre os mortos nas telas e os mortos na rua, pede-se uma censura ou autocensura, com a idéia de que narrativas ou notícias menos violentas inspirariam comportamentos menos belicosos (sobretudo aos jovens).

Ora, não acredito que forma nenhuma de censura seja benéfica. Mas reconheço que os ideais sociais dependem muito de nossa cultura de massa. Então fazer o quê? Pois bem, o truque não é retirar, é acrescentar. Explico.

Quando era criança (logo depois da Segunda Guerra Mundial), havia duas grandes brincadeiras para os meninos: alemães-americanos e polícia-ladrão. No primeiro caso, a gente queria ser americano; no segundo, queria ser polícia. Quando nos tocava ser alemão ou bandido, brincávamos com uma certa resignação, pois era implícito que, no fim, alemães e bandidos seriam derrotados, presos ou mortos.

É provável que brincar de polícia-ladrão não esteja mais na moda. Mas, se nossos filhos quisessem brincar assim, com quem se identificariam?

Do lado dos bandidos, não lhes seria difícil encontrar material: fugas mirabolantes, riquezas fáceis, jovens como eles exibindo suas armas e aterrorizando os adultos, destinos trágicos muito mais interessantes que a escola e as aulas de piano ou de inglês.

E do lado da polícia? Se eles têm televisão a cabo, conhecem "Starsky e Hutch", "Maigret", "Law and Order", "The Shield" e por aí vai. Se gostam de ler, conhecem Mike Hammer, Sherlock Holmes, Hercule Poirot etc.

Você reparou? Para um menino brasileiro que queira brincar de polícia-ladrão, os bandidos podem ser brasileiros, mas a polícia é americana, inglesa, francesa, alemã, enfim, tudo salvo brasileira.

A cultura nacional propõe um vasto repertório de malfeitores. É normal: uma sociedade individualista idealiza a transgressão, por conseqüência, ela nunca deixa de ser fascinada por seus delinqüentes. Nisso, a cultura brasileira não está sozinha. Mas é estranho que ela não proponha o contraponto: um repertório de guardiões da ordem (policiais ou detetives particulares) que excitem o imaginário da gente ao menos tanto quanto os malfeitores.

Não se trata, portanto, de indignar-se porque, sei lá, "Cidade de Deus" transformaria delinqüentes em protagonistas de uma história que pode seduzir o jovem espectador. Trata-se, isso sim, de estranhar que o mesmo espectador não tenha a chance de ser seduzido pelas histórias de quem combate o crime.

Alguém observará que não poderia ser diferente, visto que, na sociedade brasileira, o policial está longe de constituir uma imagem de sucesso social. Se seu filho expressar o desejo de se tornar policial, você, pai ou mãe de classe média, como reagirá?

Mas a pobreza da remuneração não é uma causa, é um corolário. Uma cultura que não consegue romancear a polícia não tem como cuidar para que ser policial implique um status razoavelmente digno. A sociedade organizada por essa cultura, obviamente, não consegue se dotar de uma polícia à altura de sua tarefa.

As razões por essa falha cultural são conhecidas além da conta (inconsistência do pacto social, modernização sem a inclusão de todos e por aí vai), mas não justificam nenhuma resignação.
No caso, em vez de deplorar os efeitos nefastos da cultura de massa, poderíamos utilizar seu poder. Por que a TV não nos proporia um (ou vários) "Law and Order" e "Starsky e Hutch" brasileiros? Por que o cinema nacional não nos proporia as histórias de policiais da Brigada, da Civil, da Federal ou da Municipal? E de procuradores?

E, por favor, não só a denúncia das miseráveis condições das forças da ordem. Nem da corrupção que as espreita porque, excluídas da classe média, parecem ser convidadas a pagar-se saqueando. Precisamos de histórias pelas quais ser policial seja, em todos os sentidos, uma profissão "legal".

Pois isto é certo: teremos polícia no dia em que não será ridículo nem vergonhoso que um menino sonhe em ser policial brasileiro.

Até agora, na cultura nacional, só conheço um exemplo de policial que dá vontade de ser policial. É o delegado Espinosa dos romances de Luiz Alfredo Garcia-Rosa, os quais têm um único defeito: são poucos.

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