Regulamentar está na moda.
Nos últimos tempos, 1) o governo propôs a criação de uma agência nacional que fomentaria e fiscalizaria a produção cinematográfica e audiovisual; 2) o presidente da República apoiou repetidamente o projeto de instituir um Conselho Nacional de Jornalismo que exala um perfume de censura; 3) o Conselho Federal de Psicologia apresentou um novo código de ética, segundo o qual os psicólogos teriam a obrigação de denunciar os pacientes que cometessem ou relatassem atos violentos e ilícitos; 4) tramita no Senado um projeto de lei segundo o qual qualquer diagnóstico e qualquer indicação de tratamento seriam atos reservados ao médico. Na semana passada, aliás, profissionais e estudantes de várias categorias da saúde (farmácia, fisioterapia, educação física, enfermagem, fonoaudiologia, nutrição, psicologia, odontologia, biologia, biologia médica etc.) manifestaram-se contra o projeto pelo Brasil afora.
Essas propostas, concebidas supostamente para o bem da comunidade, ferem a liberdade dos indivíduos sem que apareça com clareza a necessidade desse sacrifício.
Tomemos o caso da lei do ato médico. Imagine: estou com câncer e acredito nos poderes de uma terapia oriental pela queima de incenso ou na eficácia de operações espirituais. Você é médico e aprendeu que nada disso funciona. Você tem o direito e o dever de me informar. Pode também excluir essas práticas da lista dos procedimentos oferecidos pela assistência pública, pois é lógico que a dita lista seja estabelecida segundo o consenso majoritário em matéria de saúde. Mas pergunto: é necessário que uma lei impeça meu sábio oriental ou espírita de praticar sua arte, de se dizer terapeuta e de propor seus serviços como cura?
Alguém dirá que a lei do ato médico nos protege contra a charlatanice. Respondo: a comunidade tem o dever de tutelar seus membros, mas será que isso a autoriza a legiferar sobre as escolhas dos cidadãos como se fossem menores? Além disso, os critérios da legislação não são simples.
A história da medicina é uma longa batalha entre idéias e práticas que se acusaram mutuamente de charlatanice.
Considere o eletrochoque. Em poucas décadas, essa prática terapêutica dos transtornos mentais deixou de aparecer como uma cura milagrosa e se tornou uma prática execrada. Hoje, alguns afirmam que o choque é eficaz em casos de depressão grave e resistente; outros querem bani-lo. Se fosse preciso legislar, faria sentido decidir que qualquer prática é legítima à condição que seu defensor seja médico?
Não é melhor não legislar e deixar que o paciente e seus próximos, uma vez informados, escolham livremente a terapia e o terapeuta?
Os espaços sociais, em sua maioria, são administrados pelas interações concretas que os indivíduos inventam; por que, de repente, tantos espaços necessitariam dos cuidados do legislador? De onde vem essa epidemia de propostas que querem nosso bem e comprometem nossa autonomia?
Na "Veja" desta semana, Roberto DaMatta afirma que o governo do momento tem duas faces: uma face que acredita no indivíduo como valor e uma face pela qual a organização do coletivo (sindicatos, corporações, conselhos etc.) seria mais importante do que as pessoas concretas. Em suma, uma face que acredita nas cabeças, e outra que acredita mais nos bonés.
É uma luta que dura desde o começo da modernidade. Num canto, Adam Smith, com a idéia de que é preciso legislar pouco, pois os indivíduos encontram jeitos de conviver à força de acertos e desacertos. No outro, Rousseau, com a idéia de que é preciso estabelecer uma vontade geral, extrair regras "certas" da confusão de nossas vidas e impô-las a todos.
Atualmente, Rousseau parece prevalecer na administração de nossa vida concreta. É estranho que isso aconteça logo hoje, quando Adam Smith prevalece na hora de o governo fazer suas escolhas econômicas fundamentais.
Surge a suspeita de que se manifeste aqui um mecanismo que, no passado, transformou muitos revolucionários em burocratas: não conseguiram mudar as grandes estruturas do mundo segundo seus desejos, mas se dedicaram a regulamentar a vida cotidiana minuciosa e opressivamente. Ou seja, sonharam em vão com um mundo radicalmente feliz e passaram a instituir regras para mil casos em que seria melhor "deixar como está para ver como fica".
Eis uma constatação banal em psicopatologia. Há pessoas que regulam sua própria vida a ponto de transformá-la num pesadelo de obediências. Alguém só pode virar à esquerda se ele chegar na esquina com o pé direito; outro só pode pagar se tiver o troco exato no bolso. Em geral, os sistemas de regras são mais complexos. De qualquer forma, essas pessoas, algozes de sua própria liberdade, têm um traço em comum. Quase sempre, elas carregam consigo a lembrança ou a fantasia de uma imensa felicidade que lhes foi retirada ou com a qual sonharam e que não aconteceu. Em geral, o excesso de regras que elas impõem a suas vidas tem uma dupla função.
Serve para consolar: perdi o paraíso, mas continuo controlando o mundo. E serve para proteger: a lembrança do paraíso perdido é tão forte que minha vontade de reencontrá-lo me atropelaria se eu não regrasse cada passo de meu caminho.
Difícil não perguntar: alguma relação com a atual paixão de regulamentar a vida?
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