quinta-feira, 27 de dezembro de 2001
Balanços, casais e um propósito para o ano novo
"O que conseguimos neste último ano? Quanto falta para a meta? De quanto desviamos? Quais foram os erros? Era isso mesmo que a gente queria da vida?" Os balanços prosperam no fim de ano.
O problema é que, muitas vezes, eles se apresentam como listas de frustrações: algumas coisas não deram certo, algo eludiu nossos esforços, fracassamos. E qual é o problema? Não seria bom dispor do catálogo de nossos desacertos? Afinal, com ele na mão, deveria ser mais fácil inventar um futuro que corrija o passado. Faz sentido. Mas não é bem isso o que acontece: de regra, a lista das frustrações transforma-se numa cantilena não de emendas e projetos, mas de acusações. A coisa é particularmente sensível quando os membros de um casal fazem seu balanço: nesse caso, as frustrações de um são sempre culpa do outro.
"Não escrevi o grande romance brasileiro deste século porque você não soube me proteger do choro das crianças." "Deixei de formar-me em biologia porque você quis ter filhos logo." "Não fui para a Antártida porque você se esqueceria de tomar seu remédio contra a pressão alta." O extraordinário é que, mesmo enunciadas na frente de um terceiro, essas frases não suscitam o riso. Ao contrário, elas solidificam o ressentimento.
Recentemente, um homem de meia-idade, bem casado, recitou, em minha presença, o rosário de seus fracassos. Era uma mistura de algumas escolhas infelizes com um pouco de azar e uma certa timidez em seguir seu desejo: os ingredientes banais de todas as vidas. Nada na lista colocava em questão sua opção amorosa. Certo, casamento e família eram fatores que ele levava sempre em conta em suas decisões. E isso foi suficiente para que, em conclusão, ele evocasse assim sua relação conjugal: "Eu não estou dormindo com o inimigo, mas com minha própria derrota".
Melanie Klein, uma das grandes figuras da psicanálise depois de Freud, mostrou que cada um pendura nas costas alheias alguns elementos (mais ou menos incômodos) de sua própria personalidade. Pensamos lidar com os outros e com suas exigências, enquanto lidamos, de fato, com exigências que são nossas e que preferimos atribuir aos outros. No caso: "Eu mesmo me impeço de escrever o grande romance do século. Ao sentar de caneta ou mouse na mão, já tenho cãibras. Manifesto uma preferência resignada por meu sólido salário e não estou nada a fim de pular no escuro, apostando na inspiração. Mas não lido bem com essas inibições -ou covardias que sejam. É mais prático acreditar que você, minha mulher, me obrigou a vender meu "Aurélio" e meu notebook para comprar fraldas descartáveis".
Também recentemente, outro marido, mais jovem, tentava convencer-me da triste contabilidade de seu casamento. Parecia-lhe que a relação, os filhos e as responsabilidades constituíam uma espécie de invalidez, limitando a liberdade de seus movimentos. No final das contas, a mulher erguia-se como o obstáculo mestre entre ele e o mundo infinito dos possíveis. "Tudo que não fui foi por causa dela."
É óbvio que, a cada escolha, deixamos para trás um mundo de possibilidades que não serão mais: tomando qualquer caminho, renunciamos a todos os outros. Mas é curioso que, nessa matemática inevitável de escolhas e perdas, logo os cônjuges se acusem reciprocamente com a maior frequência. Aparentemente, o milagre de conseguir conviver, de inventar a cada dia compromissos viáveis entre desejos diferentes não vale nada. Na hora de fazer as contas, só importa o sacrifício imposto à liberdade absoluta e triste que seria a nossa, se pudéssemos viver sem concessões ou seja, sem fazer caso de nenhum semelhante.
Na coluna das perdas, em suma, desfilam sempre as renúncias exigidas pela presença de um parceiro (e, eventualmente, de filhos e filhas). É verdade que essas exigências diminuem drasticamente nossos futuros possíveis. Os sonhos, de repente, devem ser pensados a dois ou mais. Quer viajar? As passagens são duas, quando não são três ou quatro. Quer mudar para outro país ou outro Estado? E as crianças, que estão acostumadas e felizes na escola? E o emprego do parceiro? Quer sair para jantar? E a pizza com a qual o outro volta triunfalmente de seu dia de trabalho?
Convenhamos: a série das perdas pode ser longa. Mas por que será que, na coluna dos lucros, nunca aparece o que ganhamos na troca? Não penso nos benefícios imediatos de amizade, companhia etc. Mas nas próprias mudanças pelas quais passamos para e por conviver com os outros. Por que não são nunca contadas como aquisições?
Somos obcecados por um teimoso ideal de autonomia. Parecemos reconhecer como ganho só o que corresponde a nossos anseios de Robinson na ilha deserta.
Propósito para o ano novo: gostaria que não festejássemos apenas os êxitos de nossas aspirações mais solitárias. E que conseguíssemos contar como lucros as mudanças que a convivência com os outros nos impõe. Sejam eles próximos ou longínquos. Feliz Ano Novo.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2001
O espírito de Natal
Sou facilmente contaminado pelo espírito desta época do ano. Gosto de escutar corais que entoam cantos de Natal. Escolho e empacoto mimos e presentes. Chego a pegar uma ou duas crianças pequenas emprestadas para que faça mais sentido montar a árvore e decorar a casa.
Dou provas inusitadas de gentileza e generosidade. Para mostrar concretamente minha disposição, tento me engajar em serviços comunitários. Com pouco esforço, posso ser convencido a assistir pela quinta ou sexta vez a "Milagre na Rua 42" ou a mais uma produção do "Quebra-Nozes".
Ora, apesar dessa vulnerabilidade complacente, também considero o Natal com o olhar irritado do Grinch. Pergunto: mas o que é esta palhaçada? Por qual hipocrisia oferecemos picolés às crianças pobres só uma vez por ano? O que a generosidade ou a bondade têm a ver com uma orgia de comida e de compras inúteis? Quem inventou essa festa? Não foram os shopping centers?
Em suma, nesta época do ano, entro em contradição. Não sou o único. Ao contrário, parece que estamos quase todos dispostos a viver paixões natalinas que logo nos parecem infantis, do tipo: "Toquem "Jingle Bells" e "Noite Feliz", é quase meia-noite, quem distribui os presentes? Cadê o chapéu de Papai Noel?". Assim como somos quase todos capazes de desconfianças altivas que parecem decididamente adolescentes: "Olha só, esses adultos babacas esbanjam presentes, vinhos e jóias, com a convicção de merecer o paraíso".
Essa ambivalência é a experiência moderna do Natal. Temos entusiasmos festivos, geralmente nostálgicos: "Ah, os brancos Natais do passado!". E temos sarcasmo para sacudir a pieguice: "Brancos Natais? No Brasil?". Então que perda alimenta nossa nostalgia? E qual é a ilusão que é alvo de nosso sarcasmo?
Por ter um irmão mais velho, soube cedo que não eram o Papai Noel e o menino Jesus que traziam presentes. Mas essa descoberta não fez vacilar minha fé no Natal. O abalo veio mais tarde, aos 13 anos, quando, na noite do 24 de dezembro, o pai de Alessandro, meu melhor amigo daqueles tempos, morreu de repente.
Meu próprio pai, cardiologista, acorreu para encontrá-lo já morto -deitado, acredito, como um presente diabólico, embaixo da árvore de Natal. Por contraste, os Natais antes dos meus 13 anos aparecem, na lembrança, como momentos de absoluta certeza do amor e da proteção dos adultos.
Natal é uma festa da infância porque celebra a idéia de que deve haver alguém que nos ama e nos protege: o Papai Noel, o menino Jesus, os pais ou, simplesmente, os amigos que nos mandam seus votos. No Natal, somos generosos com o próximo, para tornar plausível a idéia de que alguém esteja cuidando de nós do mesmo jeito.
Lá no céu, alguém deve amar a gente, assim como nós (nesta semana) amamos os nossos rebentos e até outros quaisquer: essa é a esperança -ou a ilusão- do Natal. Ela inspira nostalgia porque é a síntese de uma fé que nossa cultura teve de descartar. Somos (quisemos ser) livres. Por isso Papai Noel só pode voltar escondido, uma vez por ano, lutando contra o sarcasmo pelo qual reiteramos e protegemos nossa autonomia. Este é nosso orgulho: não precisamos de pais e papais descidos do céu. Agora (aqui, a nostalgia), como seria bom se eles circulassem (ainda) entre nós...
A "Veja" desta semana apresenta uma pesquisa segundo a qual 99% dos brasileiros declaram acreditar em Deus. Não é nenhum triunfo de não sei qual irracionalismo coletivo. Tampouco significa que 99% dos brasileiros sejam propriamente religiosos.
Acontece apenas que a nostalgia da fé é um elemento inevitável de nossa subjetividade. Por isso a experiência do Natal -mistura complexa dessa nostalgia com uma dose de sarcasmo pretensamente libertador- é uma perfeita expressão da modernidade.
No avião que me trazia para São Paulo na quinta-feira passada, duas crianças americanas estavam sentadas na fileira atrás da minha -um menino e uma menina entre sete e nove anos. Já de pijama, a pedido da mãe, ajoelharam-se na frente de seus assentos para recitar a oração da boa noite. A prece foi além dos agradecimentos de praxe. Estendeu-se até incluir os pedidos de presentes, as lembranças de tios e primos e cada tipo de desejo e de propósito, virando quase um jogo que não acabava nunca.
Enquanto era ninado por essas vozes infantis, lembrei-me de uma reza que era recitada coletivamente nos Natais de minha infância. Tinha sido inventada por um avô ateu, mas que, verdadeiro sujeito moderno, acreditava no Natal. A oração pedia que todas as crianças recebessem um carinho, que todos, os ricos e os pobres, tivessem, ao menos, um pouco de descanso e que a noite passasse rápido para os doentes e para todos os que sofrem.
Acrescentei, já quase dormindo, que deveria ter uma cláusula para aqueles que viajam de avião: que para eles também a noite passasse rápido. E, naturalmente, que os aviões, todos, não só o meu, se sustentassem no céu.
Feliz Natal.
Dou provas inusitadas de gentileza e generosidade. Para mostrar concretamente minha disposição, tento me engajar em serviços comunitários. Com pouco esforço, posso ser convencido a assistir pela quinta ou sexta vez a "Milagre na Rua 42" ou a mais uma produção do "Quebra-Nozes".
Ora, apesar dessa vulnerabilidade complacente, também considero o Natal com o olhar irritado do Grinch. Pergunto: mas o que é esta palhaçada? Por qual hipocrisia oferecemos picolés às crianças pobres só uma vez por ano? O que a generosidade ou a bondade têm a ver com uma orgia de comida e de compras inúteis? Quem inventou essa festa? Não foram os shopping centers?
Em suma, nesta época do ano, entro em contradição. Não sou o único. Ao contrário, parece que estamos quase todos dispostos a viver paixões natalinas que logo nos parecem infantis, do tipo: "Toquem "Jingle Bells" e "Noite Feliz", é quase meia-noite, quem distribui os presentes? Cadê o chapéu de Papai Noel?". Assim como somos quase todos capazes de desconfianças altivas que parecem decididamente adolescentes: "Olha só, esses adultos babacas esbanjam presentes, vinhos e jóias, com a convicção de merecer o paraíso".
Essa ambivalência é a experiência moderna do Natal. Temos entusiasmos festivos, geralmente nostálgicos: "Ah, os brancos Natais do passado!". E temos sarcasmo para sacudir a pieguice: "Brancos Natais? No Brasil?". Então que perda alimenta nossa nostalgia? E qual é a ilusão que é alvo de nosso sarcasmo?
Por ter um irmão mais velho, soube cedo que não eram o Papai Noel e o menino Jesus que traziam presentes. Mas essa descoberta não fez vacilar minha fé no Natal. O abalo veio mais tarde, aos 13 anos, quando, na noite do 24 de dezembro, o pai de Alessandro, meu melhor amigo daqueles tempos, morreu de repente.
Meu próprio pai, cardiologista, acorreu para encontrá-lo já morto -deitado, acredito, como um presente diabólico, embaixo da árvore de Natal. Por contraste, os Natais antes dos meus 13 anos aparecem, na lembrança, como momentos de absoluta certeza do amor e da proteção dos adultos.
Natal é uma festa da infância porque celebra a idéia de que deve haver alguém que nos ama e nos protege: o Papai Noel, o menino Jesus, os pais ou, simplesmente, os amigos que nos mandam seus votos. No Natal, somos generosos com o próximo, para tornar plausível a idéia de que alguém esteja cuidando de nós do mesmo jeito.
Lá no céu, alguém deve amar a gente, assim como nós (nesta semana) amamos os nossos rebentos e até outros quaisquer: essa é a esperança -ou a ilusão- do Natal. Ela inspira nostalgia porque é a síntese de uma fé que nossa cultura teve de descartar. Somos (quisemos ser) livres. Por isso Papai Noel só pode voltar escondido, uma vez por ano, lutando contra o sarcasmo pelo qual reiteramos e protegemos nossa autonomia. Este é nosso orgulho: não precisamos de pais e papais descidos do céu. Agora (aqui, a nostalgia), como seria bom se eles circulassem (ainda) entre nós...
A "Veja" desta semana apresenta uma pesquisa segundo a qual 99% dos brasileiros declaram acreditar em Deus. Não é nenhum triunfo de não sei qual irracionalismo coletivo. Tampouco significa que 99% dos brasileiros sejam propriamente religiosos.
Acontece apenas que a nostalgia da fé é um elemento inevitável de nossa subjetividade. Por isso a experiência do Natal -mistura complexa dessa nostalgia com uma dose de sarcasmo pretensamente libertador- é uma perfeita expressão da modernidade.
No avião que me trazia para São Paulo na quinta-feira passada, duas crianças americanas estavam sentadas na fileira atrás da minha -um menino e uma menina entre sete e nove anos. Já de pijama, a pedido da mãe, ajoelharam-se na frente de seus assentos para recitar a oração da boa noite. A prece foi além dos agradecimentos de praxe. Estendeu-se até incluir os pedidos de presentes, as lembranças de tios e primos e cada tipo de desejo e de propósito, virando quase um jogo que não acabava nunca.
Enquanto era ninado por essas vozes infantis, lembrei-me de uma reza que era recitada coletivamente nos Natais de minha infância. Tinha sido inventada por um avô ateu, mas que, verdadeiro sujeito moderno, acreditava no Natal. A oração pedia que todas as crianças recebessem um carinho, que todos, os ricos e os pobres, tivessem, ao menos, um pouco de descanso e que a noite passasse rápido para os doentes e para todos os que sofrem.
Acrescentei, já quase dormindo, que deveria ter uma cláusula para aqueles que viajam de avião: que para eles também a noite passasse rápido. E, naturalmente, que os aviões, todos, não só o meu, se sustentassem no céu.
Feliz Natal.
quinta-feira, 13 de dezembro de 2001
Assanhados ou toxicômanos
Sábado passado, em Nova York, parei no meio da Times Square -o templo do outdoor. Algo parecia inusitado. Com a exceção de uma cueca da Calvin Klein que moldava a protuberância esperada e delimitava abdominais de estátua renascentista, não apareciam corpos (nem fragmentos de corpos).
Fui folhear revistas. Claro, encontrei uma propaganda da Air France em que um avião corta as costas sinuosas de uma mulher -no estilo do atentado contra as torres gêmeas. E havia Água Brava perfumando cenas de praia que estavam entre James-Bond-pegando-a-moça e as fotos que tiramos nas últimas férias, com o jet-ski alugado. Mas eram exceções -pareciam coisas de um outro tempo. A maioria dos anúncios apresentava objetos, produtos e serviços sem conúbios eróticos: os carros na estrada, os aparelhos eletrônicos em cima de mesas quase abstratas.
Quinze dias atrás, nesta coluna, fiz algumas considerações sobre o uso assíduo dos corpos nas imagens com as quais a publicidade colore nosso dia-a-dia. Mas eis que a Times Square e as páginas das revistas parecem indicar uma tendência diferente. Aparentemente, a propaganda que me surpreendeu não está querendo excitar nossa insatisfação e estimular nosso desejo. Nem está nos prometendo que os objetos nos tornarão mais desejáveis do que nossos semelhantes.
Essa "nova" propaganda não cultiva o desejo. Com isso, nas revistas, o mundo do desejo passa a coincidir com o universo tragicômico e vulgar das notícias. Lá imperam as paixões assassinas que decidem os assaltos, os atentados e as guerras. Lá reinam a cobiça dos corruptos e o cabritismo ao redor da gravidez de Gloria Trevi. O desejo é o carburante da feiúra do mundo. Por isso, nas revistas, tantas matérias sobre bem-estar, paz e saúde substituem a sujeira do noticiário -para oferecer aos leitores um pouco do mesmo mundo que se afirma nas páginas da "nova" propaganda: um mundo tranquilo e equilibrado, desinfetado de desejo.
Nesse mundo, o carro, por exemplo, não é mais um instrumento de sedução nem de competição. Ele traz sonhos de segurança mais do que de potência. Ou, então, aparece como o símbolo de uma precisão e de uma harmonia mecânicas que gostaríamos de transferir para nossas vidas e para nossos cérebros. Ou, ainda, ele é o veículo para uma viagem propriamente espiritual. Achei uma única propaganda de carro em que aparecem corpos: a da Peugeot 208, com três jovens nadadoras preparando-se para a largada. Ou seja, nada de sexo: uma imagem de concentração, graça e autocontrole.
O novo tom publicitário triunfa nas propagandas das instituições financeiras. A Investa mostra um esqueleto humano (raios X de perfil), para lembrar que é bom "estar em forma por dentro", e não só por fora. O cliente do cartão Bradesco mantém o poste de sua agência bancária sobre a palma da mão. Juntando os dois, chega-se à formula do momento: o que importa é encontrar o equilíbrio mais íntimo. Uma propaganda do Itaú resume essa exigência: o que o cliente pode querer de uma boa estratégia de investimento não é (como num passado vulgar) o acesso a mais bens, mas uma forma muito especial de felicidade -um momento de meditação, de olhos fechados, na posição do Buda.
A promessa clássica da propaganda dizia que, se soubéssemos desejar coisas sem parar, conseguiríamos ser nós mesmos desejáveis e competitivos. Hoje, ouço uma promessa diferente: vocês não precisam continuar nessa procura insaciável. Encontrem os objetos ou os serviços certos e descansarão em harmonia consigo mesmos e com o mundo.
Se fosse otimista, festejaria. Em vez de venerar os objetos que excitam nossos desejos, procuraremos aqueles que nos apaziguam. Não é uma maneira mais sábia de correr atrás da felicidade?
Pois bem, não sou otimista. Não sei se estamos mudando para melhor. Certo, nossa cultura funciona, mas tem um custo muito alto. Ela exige, por exemplo, a insatisfação crônica de todos nós. Não seria mau, portanto, se nos encaminhássemos para uma época em que estaria na moda acalmar o desejo, suspender a insatisfação. Mas duvido de que o modelo de acalmia proposto pela propaganda destes dias seja mesmo o da meditação zen-budista.
É mais provável que a mudança seja esta: o modelo de nosso consumo está passando do erotismo para a toxicomania. Deixamos de ser consumidores assanhados para nos tornar consumidores toxicômanos. Nosso objeto por excelência não seria mais o corpo desejado em mil fantasias fracassadas e sempre insatisfeitas, mas a droga, em todas as suas formas, legais e ilegais. Ou seja, não um objeto que alimenta (incômodos) anseios, mas um objeto que promete, no mínimo, trégua.
Infelizmente, como acontece com a droga, a trégua é aparente. E o ideal de contentamento e equilíbrio é mais uma maneira de alimentar (e piorar) a frustração de sempre -uma maneira provavelmente menos interessante do que os atrapalhos do desejo.
P.S.: Na semana passada, por um acidente técnico, muitos e-mails de leitores foram perdidos. Peço vênia.
Fui folhear revistas. Claro, encontrei uma propaganda da Air France em que um avião corta as costas sinuosas de uma mulher -no estilo do atentado contra as torres gêmeas. E havia Água Brava perfumando cenas de praia que estavam entre James-Bond-pegando-a-moça e as fotos que tiramos nas últimas férias, com o jet-ski alugado. Mas eram exceções -pareciam coisas de um outro tempo. A maioria dos anúncios apresentava objetos, produtos e serviços sem conúbios eróticos: os carros na estrada, os aparelhos eletrônicos em cima de mesas quase abstratas.
Quinze dias atrás, nesta coluna, fiz algumas considerações sobre o uso assíduo dos corpos nas imagens com as quais a publicidade colore nosso dia-a-dia. Mas eis que a Times Square e as páginas das revistas parecem indicar uma tendência diferente. Aparentemente, a propaganda que me surpreendeu não está querendo excitar nossa insatisfação e estimular nosso desejo. Nem está nos prometendo que os objetos nos tornarão mais desejáveis do que nossos semelhantes.
Essa "nova" propaganda não cultiva o desejo. Com isso, nas revistas, o mundo do desejo passa a coincidir com o universo tragicômico e vulgar das notícias. Lá imperam as paixões assassinas que decidem os assaltos, os atentados e as guerras. Lá reinam a cobiça dos corruptos e o cabritismo ao redor da gravidez de Gloria Trevi. O desejo é o carburante da feiúra do mundo. Por isso, nas revistas, tantas matérias sobre bem-estar, paz e saúde substituem a sujeira do noticiário -para oferecer aos leitores um pouco do mesmo mundo que se afirma nas páginas da "nova" propaganda: um mundo tranquilo e equilibrado, desinfetado de desejo.
Nesse mundo, o carro, por exemplo, não é mais um instrumento de sedução nem de competição. Ele traz sonhos de segurança mais do que de potência. Ou, então, aparece como o símbolo de uma precisão e de uma harmonia mecânicas que gostaríamos de transferir para nossas vidas e para nossos cérebros. Ou, ainda, ele é o veículo para uma viagem propriamente espiritual. Achei uma única propaganda de carro em que aparecem corpos: a da Peugeot 208, com três jovens nadadoras preparando-se para a largada. Ou seja, nada de sexo: uma imagem de concentração, graça e autocontrole.
O novo tom publicitário triunfa nas propagandas das instituições financeiras. A Investa mostra um esqueleto humano (raios X de perfil), para lembrar que é bom "estar em forma por dentro", e não só por fora. O cliente do cartão Bradesco mantém o poste de sua agência bancária sobre a palma da mão. Juntando os dois, chega-se à formula do momento: o que importa é encontrar o equilíbrio mais íntimo. Uma propaganda do Itaú resume essa exigência: o que o cliente pode querer de uma boa estratégia de investimento não é (como num passado vulgar) o acesso a mais bens, mas uma forma muito especial de felicidade -um momento de meditação, de olhos fechados, na posição do Buda.
A promessa clássica da propaganda dizia que, se soubéssemos desejar coisas sem parar, conseguiríamos ser nós mesmos desejáveis e competitivos. Hoje, ouço uma promessa diferente: vocês não precisam continuar nessa procura insaciável. Encontrem os objetos ou os serviços certos e descansarão em harmonia consigo mesmos e com o mundo.
Se fosse otimista, festejaria. Em vez de venerar os objetos que excitam nossos desejos, procuraremos aqueles que nos apaziguam. Não é uma maneira mais sábia de correr atrás da felicidade?
Pois bem, não sou otimista. Não sei se estamos mudando para melhor. Certo, nossa cultura funciona, mas tem um custo muito alto. Ela exige, por exemplo, a insatisfação crônica de todos nós. Não seria mau, portanto, se nos encaminhássemos para uma época em que estaria na moda acalmar o desejo, suspender a insatisfação. Mas duvido de que o modelo de acalmia proposto pela propaganda destes dias seja mesmo o da meditação zen-budista.
É mais provável que a mudança seja esta: o modelo de nosso consumo está passando do erotismo para a toxicomania. Deixamos de ser consumidores assanhados para nos tornar consumidores toxicômanos. Nosso objeto por excelência não seria mais o corpo desejado em mil fantasias fracassadas e sempre insatisfeitas, mas a droga, em todas as suas formas, legais e ilegais. Ou seja, não um objeto que alimenta (incômodos) anseios, mas um objeto que promete, no mínimo, trégua.
Infelizmente, como acontece com a droga, a trégua é aparente. E o ideal de contentamento e equilíbrio é mais uma maneira de alimentar (e piorar) a frustração de sempre -uma maneira provavelmente menos interessante do que os atrapalhos do desejo.
P.S.: Na semana passada, por um acidente técnico, muitos e-mails de leitores foram perdidos. Peço vênia.
quinta-feira, 6 de dezembro de 2001
Um amigo na Alemanha
Na semana passada, capitularam as tropas do Taleban que defendiam Cunduz, no norte do Afeganistão. A reportagem do "The New York Times" (26/11) narrou que, ao penetrar na cidade, os homens da Aliança do Norte encontraram cadáveres e feridos pelas ruas, à-toa.
Um desses soldados do Taleban, Abdul Hadid, estava sentado na calçada, baleado, tremendo de choque, de febre e talvez de medo, com as roupas encharcadas de sangue e urina. Foi circundado pelos vencedores e interrogado aos gritos: "Cadê os outros? De onde você é? (certamente para identificar um eventual voluntário paquistanês, que seria tratado pior) Cadê sua arma?".
No pequeno grupo hostil e vociferante que se adensava ao redor dele, Abdul Hadid percebeu que havia dois jornalistas ocidentais as únicas caras, provavelmente, que mostravam compaixão. Endereçou-se a eles, expressando seu único (e último?) pedido de ajuda da seguinte maneira: "Tenho um amigo na Alemanha". Depois disso, foi levado embora -oficialmente, para um hospital.
É como se Abdul, na hora de perder a vida por fidelidade tribal, dissesse aos que podiam entendê-lo, ou seja, aos ocidentais presentes: não sou "todo" daqui, minha tribo não resume inteiramente minha humanidade. Na hora de morrer por causa de uma diferença étnica, ele invocou um mundo onde, em princípio, tribos e crenças não seriam condições de cidadania.
Não acredito que a frase de Abdul fosse uma artimanha oportunista. É mais provável que ela manifestasse uma dolorosa contradição de fundo. Por um lado, há a vontade de defender o que, desde sempre, constitui uma espécie de essência: a devoção, os costumes, a fidelidade exclusiva à tribo. Por outro lado, há a sedução da Alemanha, para onde já foi o amigo. Qual é a força dessa sedução? Será que está apenas na abundância da bugiganga?
Vários comentadores levantam, ultimamente, o espectro da retomada do conflito entre o Islã e a cristandade. Mas o conflito de hoje não pode ser o mesmo que assolou os primeiros 600 anos do século 20. Pois a cristandade diluiu-se na modernidade. Consequência disso: o conflito de hoje não é entre duas culturas, cada uma exclusiva. Mas entre uma cultura tradicional, que se sustenta na exclusão (dos infiéis, por exemplo), e a modernidade, que idealiza a inclusão de todos. A modernidade é um inimigo excepcionalmente sedutor. Ela facilita a traição por admitir qualquer um como sócio.
Abdul Hadid, dividido entre a fidelidade a sua tribo e a sedução de uma cultura outra, mas que poderia incluí-lo, já é nosso semelhante. Sua contradição não é muito diferente da nossa, cotidiana, entre a nostalgia de algum tipo de pátria e a ambição de reconhecer a humanidade como nossa única tribo.
O Taleban, que receia a contradição de Abdul e sua traição, oferece US$ 50 mil para cada cabeça de jornalista "pró-ocidental" no Afeganistão.
2. Os imigrantes estão numa posição privilegiada para detectar atividades insólitas em suas comunidades. Sobretudo os imigrantes ilegais, que tendem a viver em comunidades étnicas fechadas. Portanto John Ashcroft, o ministro da Justiça dos EUA, anunciou o seguinte: os estrangeiros que fornecessem informações sobre atividades terroristas receberiam estatuto de imigrantes legais e poderiam tornar-se cidadãos dos Estados Unidos num prazo de três anos.
Ashcroft deve apostar que essa recompensa tenha mais valor do que dinheiro. Abdul, na hora da verdade, talvez topasse. Pois, na (astuta) proposta americana, ele encontraria confirmação de seu sonho: lá, naquele Ocidente, seria recebido e reconhecido na base de seus atos. Nada de etnia.
3. Quando ruíram as torres gêmeas, foi banal comentar que elas eram símbolos da potência econômica -americana ou ocidental.
Alguns dizem que a idéia moderna de arranhar o céu surgiu na Itália, na pequena cidade de San Gimignano, perto de Siena, onde, na Renascença, as famílias mais poderosas e abastadas competiam entre si elevando torres mais altas do que as dos vizinhos. Em suma, a coisa teria começado como uma competição em que cada um queria sobrepujar o outro, mostrar e comparar seu tamanho.
Mas, uma vez erguida, uma torre não é só isso. Viver, trabalhar ou simplesmente subir, de vez em quando, nos andares mais altos significa ampliar o horizonte. É uma maneira de constatar, inevitavelmente, que o mundo continua além do bairro e da aldeia. Quem sabe, de lá, Abdul enxergasse a sua Alemanha.
4. O Ocidente declarará vitória quando tiver desarraigado Al-Qaeda e outros grupos ou governos que promovem o terror. Mas será só a conclusão de uma batalha.
O único jeito de conseguir uma vitória final consistiria em fazer que o Ocidente fosse parecido com a Alemanha sonhada por Abdul: um mundo onde as diferenças convivessem em paridade de direitos. E onde as disparidades econômicas não chegassem a substituir as antigas diferenças de tribo ou de casta.
Esse Ocidente seria mesmo irresistível.
Um desses soldados do Taleban, Abdul Hadid, estava sentado na calçada, baleado, tremendo de choque, de febre e talvez de medo, com as roupas encharcadas de sangue e urina. Foi circundado pelos vencedores e interrogado aos gritos: "Cadê os outros? De onde você é? (certamente para identificar um eventual voluntário paquistanês, que seria tratado pior) Cadê sua arma?".
No pequeno grupo hostil e vociferante que se adensava ao redor dele, Abdul Hadid percebeu que havia dois jornalistas ocidentais as únicas caras, provavelmente, que mostravam compaixão. Endereçou-se a eles, expressando seu único (e último?) pedido de ajuda da seguinte maneira: "Tenho um amigo na Alemanha". Depois disso, foi levado embora -oficialmente, para um hospital.
É como se Abdul, na hora de perder a vida por fidelidade tribal, dissesse aos que podiam entendê-lo, ou seja, aos ocidentais presentes: não sou "todo" daqui, minha tribo não resume inteiramente minha humanidade. Na hora de morrer por causa de uma diferença étnica, ele invocou um mundo onde, em princípio, tribos e crenças não seriam condições de cidadania.
Não acredito que a frase de Abdul fosse uma artimanha oportunista. É mais provável que ela manifestasse uma dolorosa contradição de fundo. Por um lado, há a vontade de defender o que, desde sempre, constitui uma espécie de essência: a devoção, os costumes, a fidelidade exclusiva à tribo. Por outro lado, há a sedução da Alemanha, para onde já foi o amigo. Qual é a força dessa sedução? Será que está apenas na abundância da bugiganga?
Vários comentadores levantam, ultimamente, o espectro da retomada do conflito entre o Islã e a cristandade. Mas o conflito de hoje não pode ser o mesmo que assolou os primeiros 600 anos do século 20. Pois a cristandade diluiu-se na modernidade. Consequência disso: o conflito de hoje não é entre duas culturas, cada uma exclusiva. Mas entre uma cultura tradicional, que se sustenta na exclusão (dos infiéis, por exemplo), e a modernidade, que idealiza a inclusão de todos. A modernidade é um inimigo excepcionalmente sedutor. Ela facilita a traição por admitir qualquer um como sócio.
Abdul Hadid, dividido entre a fidelidade a sua tribo e a sedução de uma cultura outra, mas que poderia incluí-lo, já é nosso semelhante. Sua contradição não é muito diferente da nossa, cotidiana, entre a nostalgia de algum tipo de pátria e a ambição de reconhecer a humanidade como nossa única tribo.
O Taleban, que receia a contradição de Abdul e sua traição, oferece US$ 50 mil para cada cabeça de jornalista "pró-ocidental" no Afeganistão.
2. Os imigrantes estão numa posição privilegiada para detectar atividades insólitas em suas comunidades. Sobretudo os imigrantes ilegais, que tendem a viver em comunidades étnicas fechadas. Portanto John Ashcroft, o ministro da Justiça dos EUA, anunciou o seguinte: os estrangeiros que fornecessem informações sobre atividades terroristas receberiam estatuto de imigrantes legais e poderiam tornar-se cidadãos dos Estados Unidos num prazo de três anos.
Ashcroft deve apostar que essa recompensa tenha mais valor do que dinheiro. Abdul, na hora da verdade, talvez topasse. Pois, na (astuta) proposta americana, ele encontraria confirmação de seu sonho: lá, naquele Ocidente, seria recebido e reconhecido na base de seus atos. Nada de etnia.
3. Quando ruíram as torres gêmeas, foi banal comentar que elas eram símbolos da potência econômica -americana ou ocidental.
Alguns dizem que a idéia moderna de arranhar o céu surgiu na Itália, na pequena cidade de San Gimignano, perto de Siena, onde, na Renascença, as famílias mais poderosas e abastadas competiam entre si elevando torres mais altas do que as dos vizinhos. Em suma, a coisa teria começado como uma competição em que cada um queria sobrepujar o outro, mostrar e comparar seu tamanho.
Mas, uma vez erguida, uma torre não é só isso. Viver, trabalhar ou simplesmente subir, de vez em quando, nos andares mais altos significa ampliar o horizonte. É uma maneira de constatar, inevitavelmente, que o mundo continua além do bairro e da aldeia. Quem sabe, de lá, Abdul enxergasse a sua Alemanha.
4. O Ocidente declarará vitória quando tiver desarraigado Al-Qaeda e outros grupos ou governos que promovem o terror. Mas será só a conclusão de uma batalha.
O único jeito de conseguir uma vitória final consistiria em fazer que o Ocidente fosse parecido com a Alemanha sonhada por Abdul: um mundo onde as diferenças convivessem em paridade de direitos. E onde as disparidades econômicas não chegassem a substituir as antigas diferenças de tribo ou de casta.
Esse Ocidente seria mesmo irresistível.
quinta-feira, 29 de novembro de 2001
A guerra entre os corpos e as burgas
O Taleban tentou inventar uma sociedade em que as mulheres fossem invisíveis. Nós, ao contrário, vivemos numa sociedade que escancara as mulheres. Como notou Boris Fausto em sua coluna de segunda-feira na Folha, entre a burga e o fio-dental abre-se um abismo.
Nas últimas décadas, nós, ocidentais, descobrimos que, para tornar visíveis (e apetitosos) os objetos de nosso mundo, basta mostrá-los na vizinhança de um rosto sedutor ou de um corpo de mulher. Vivemos circundados por imagens que, em conúbios surrealistas, reúnem os objetos do consumo com fragmentos da beleza feminina: sei lá, um grampeador ao lado de costas sinuosas.
Talvez, no começo, o recurso às formas femininas na propaganda tenha sido justificado como um argumento de venda, do tipo: "Se usar este sabão ou esta motocicleta, você, segundo o caso, será ou terá a mulher sedutora que aqui aparece". Mas os corpos e os rostos femininos assíduos e incongruentes nas imagens publicitárias são mais do que a promessa de um brinde. Eles compõem uma espécie de mensagem. Explico. Se você visse a imagem de uma latrina ao lado do anfiteatro do Congresso, entenderia algo desta ordem: a política não é flor que se cheire. Do mesmo jeito, aparecendo ao lado dos objetos de consumo, os rostos e os corpos femininos não prometem um paraíso erótico: sua presença serve para significar que os objetos mostrados são desejáveis.
O corpo e o rosto femininos, em suma, são, para nós, os representantes genéricos do que é desejável. Funcionam, nas mensagens publicitárias, como predicados. As costas sinuosas que acompanham o grampeador não nos garantem uma tórrida noite de paixão. Mas elas afirmam que um grampeador pode ser desejável por contaminação.
O Taleban seguia à risca os preceitos da lei islâmica (ao menos, sua interpretação desses preceitos). E devia querer também construir e defender uma sociedade verdadeiramente antinômica à nossa. As duas intenções eram perfeitamente compatíveis. O Ministério para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício reprimia e punia qualquer manifestação de desejo erótico que se afastasse do exercício regrado da poligamia islâmica entre as quatro paredes de casa. As mulheres sumiram de qualquer lugar social (trabalho, educação etc.), foram sequestradas para que não inspirassem desejos desviados, ou seja, para que nenhum desejo circulasse fora dos trilhos da estreita privacidade familiar. Com isso, de maneira deliberada ou não, foi estancada a fonte do carburante básico que alimenta nosso tipo de sociedade. Pois, sem a pressão e sem a volubilidade de um desejo sempre desviado, não há modernidade possível: murcha o sonho de mobilidade social, murcham a insatisfação e a vontade de mudar, murcha o anseio de consumo.
O Taleban quis proteger-se contra as seduções de nossa cultura: proibiu a televisão, a música, que leva a fantasiar, o cinema etc. Mas tudo isso seria apenas um paliativo sem a supressão dos corpos que representam o desejo.
Alguém observará que o corpo feminino não é mais o único que pode valer como sinônimo do predicado "desejável". O corpo masculino goza, cada vez mais, da mesma prerrogativa. Abdominais e peitorais "sarados", ao enquadrar um objeto, decretam que ele é desejável.
O Taleban sabia disso. Se as mulheres sumiram da circulação social -a ponto de serem propriamente ameaçadas de extermínio-, o corpo masculino também foi escondido. O código do vestuário, a proibição de praticar esportes e as regras sobre barba, cabelos e turbante tinham essa função. Tudo foi tentado para que nenhum corpo, masculino ou feminino, suscitasse desejos inoportunos. Por exemplo, foram fechados os banhos públicos -tanto pelo que poderia acontecer entre os banhistas reunidos e nus quanto pelo que aconteceria eventualmente na cabeça de quem, caminhando na rua, imaginasse os corpos atrás do muro.
O Taleban reprimiu o erotismo dos corpos, como se quisesse evitar uma contaminação. Com razão. A modernidade ocidental é mesmo uma doença eroticamente transmissível: uma febre agitada de ter, de vir a ser e de seduzir, que começou como uma espécie de epidemia venérea. Pois ela foi contraída quando os humanos decidiram se juntar só por amor e por paixão. Nada de respeitar tradições, castas, etnias etc. Desde então, a atrapalhada primazia do desejo instalou-se em nosso mundo.
Certo, todos reconhecemos que a guerra entre os corpos e as burgas é um episódio da guerra entre as luzes e o obscurantismo -e estamos, imagino, do lado das luzes. Mas, nessa ocasião, é bom lembrar que, para resistir às luzes, o Taleban lutou contra o erotismo dos corpos e contra o desejo. A estratégia era adequada, pois as luzes da razão ocidental são indissociáveis da desordem do nosso querer.
Hoje, as mulheres de Cabul tiram as burgas timidamente. Também timidamente aparecem antenas parabólicas improvisadas, feitas com latas de refrigerante achatadas. Os afegãos poderão extraviar-se na pluralidade do desejável.
quinta-feira, 22 de novembro de 2001
Os fiéis a Harry Potter
A manhã estréia no Brasil "Harry Potter e a Pedra Filosofal". A primeira sessão, nos cinemas americanos, foi na meia-noite de quinta passada -para os adultos. No dia seguinte, de manhã, era a vez das crianças: classes inteiras com seus professores. No vestíbulo de um cinema de Boston, conversei com alguns alunos da sexta série, que estavam na fila da pipoca. Manifestavam suas expectativas prometendo desforras: "É melhor que seja tudo como no livro. Se não for assim, eles vão ver".
De tarde, escutei no rádio algumas entrevistas com adultos que acabavam de assistir ao filme. Constatavam, felizes, que o filme tinha sido exatamente como o livro. "Perfeito. Ainda bem. Eu estava com medo de que fosse diferente." Na verdade, eu também esperava que o filme fosse fiel ao primeiro livro. E saí do cinema satisfeito: o filme era como eu queria.
Entre os entrevistados radiofônicos, uma mulher, depois de manifestar seu contentamento com a fidelidade do filme, declarou que nunca tinha lido os livros. Então, para ela, o filme era fiel a quê? Aparentemente, a história contada por J.K. Rowling entrou no repertório de nossa cultura. Durante um bom tempo, até para quem nunca leu os livros e nunca verá os filmes, Harry Potter constituirá um dos cenários graças aos quais nos familiarizamos (agradavelmente) com desejos e fantasias que temos em comum por sermos, simplesmente, modernos e ocidentais.
No caldeirão de nosso patrimônio cultural, há quase exclusivamente aspirações, sonhos e devaneios. Nos best-sellers vulgares, encontramos os mais banais, do tipo: mato impunemente todos os que me incomodam e traço aqueles e aquelas que eu quero. Outras aspirações, menos óbvias, são reveladoras do que há de mais interessante em nós. As histórias de Harry Potter são um bom compêndio destas últimas. Por exemplo, o leitor (ou o espectador) reconhecerá facilmente nosso sonho de uma orfandade ideal em que seríamos, ao mesmo tempo, herdeiros de nossos pais e completamente livres de inventar nossas vidas sem ter de lidar com eles. Ou então o sonho individualista de que nossa excepcionalidade seja reconhecida por todos -legível como uma cicatriz na testa. Ou ainda a esperança de que a desobediência às regras, quando ela persegue algum bem, não seja punida, mas recompensada -ou seja, a esperança de que um juízo moral independente se situe sempre acima das leis. A lista é longa. E um dos prazeres da leitura consiste justamente em percorrer a variedade dos sonhos de nossa cultura.
Ora, por mais que os sonhos de fundo sejam um patrimônio cultural compartilhado, cada leitor de uma história imagina o universo do romance de maneira singular. A descrição oferecida pelo autor mistura-se com o mundo do leitor, com suas lembranças de outras leituras e com sua vida real. A cara de Harry Potter seria, para cada um de nós, um compromisso, por exemplo, entre a descrição proposta pela autora e a lembrança de tal camarada de nosso passado escolar. Por isso, na adaptação cinematográfica de um romance, é delicado escolher os atores -parece que sempre se chamam Tom Cruise, enquanto esperávamos as rugas de Robert Redford.
Ora, nada disso aconteceu no caso de Harry Potter. Os espectadores entrevistados no rádio queriam um filme fiel, ou seja, um filme que brincasse com o mesmo repertório de sonhos do livro. Mas, sobretudo, pareciam exigir (tarefa complicada) um filme que fosse conforme o universo romanesco que eles tinham imaginado durante a leitura. O milagre é que todos se declararam satisfeitos. Chris Columbus, o diretor, conseguiu não contrariar a fantasia de ninguém.
Não é pouca coisa. Certo, os livros de Rowling têm uma grande força descritiva e, portanto, devem inspirar nos leitores fantasias homogêneas. Mesmo assim, para realizar um filme que satisfaça às visões de todos os leitores da história adaptada, é necessária uma humildade admirável. No mínimo, Columbus soube renunciar à tentação de impor ou sugerir sua própria fantasia do romance.
À diferença dos espectadores, a crítica americana ficou em cima do muro. Gostou, mas achou que faltava mágica. O filme, queixaram-se os críticos, é "apenas" o livro. Ora, essa é justamente a grande qualidade do filme, ser "apenas" o livro. A humildade do filme confirma e fortalece a presença da história de Harry Potter no repertório coletivo de nossos cenários.
Por que seria uma coisa boa? É que nós, modernos, precisamos sempre de boas histórias, pois temos pouco em comum. As aspirações que compartilhamos (e que compõem nossa cultura) não constituem um código nem valem um livro de normas. Elas vivem e se transmitem pelas histórias das quais gostamos -especialmente por aquelas que são contadas para e por todos.
Aliás, ultimamente, temos sido chamados, com uma certa frequência, de infiéis. É porque não somos fiéis a um único livro. E daí? Somos fiéis a Harry Potter, a Julien Sorel, a Machado, a Homero e, naturalmente, a John Huston, Frank Capra e por aí vai.
De tarde, escutei no rádio algumas entrevistas com adultos que acabavam de assistir ao filme. Constatavam, felizes, que o filme tinha sido exatamente como o livro. "Perfeito. Ainda bem. Eu estava com medo de que fosse diferente." Na verdade, eu também esperava que o filme fosse fiel ao primeiro livro. E saí do cinema satisfeito: o filme era como eu queria.
Entre os entrevistados radiofônicos, uma mulher, depois de manifestar seu contentamento com a fidelidade do filme, declarou que nunca tinha lido os livros. Então, para ela, o filme era fiel a quê? Aparentemente, a história contada por J.K. Rowling entrou no repertório de nossa cultura. Durante um bom tempo, até para quem nunca leu os livros e nunca verá os filmes, Harry Potter constituirá um dos cenários graças aos quais nos familiarizamos (agradavelmente) com desejos e fantasias que temos em comum por sermos, simplesmente, modernos e ocidentais.
No caldeirão de nosso patrimônio cultural, há quase exclusivamente aspirações, sonhos e devaneios. Nos best-sellers vulgares, encontramos os mais banais, do tipo: mato impunemente todos os que me incomodam e traço aqueles e aquelas que eu quero. Outras aspirações, menos óbvias, são reveladoras do que há de mais interessante em nós. As histórias de Harry Potter são um bom compêndio destas últimas. Por exemplo, o leitor (ou o espectador) reconhecerá facilmente nosso sonho de uma orfandade ideal em que seríamos, ao mesmo tempo, herdeiros de nossos pais e completamente livres de inventar nossas vidas sem ter de lidar com eles. Ou então o sonho individualista de que nossa excepcionalidade seja reconhecida por todos -legível como uma cicatriz na testa. Ou ainda a esperança de que a desobediência às regras, quando ela persegue algum bem, não seja punida, mas recompensada -ou seja, a esperança de que um juízo moral independente se situe sempre acima das leis. A lista é longa. E um dos prazeres da leitura consiste justamente em percorrer a variedade dos sonhos de nossa cultura.
Ora, por mais que os sonhos de fundo sejam um patrimônio cultural compartilhado, cada leitor de uma história imagina o universo do romance de maneira singular. A descrição oferecida pelo autor mistura-se com o mundo do leitor, com suas lembranças de outras leituras e com sua vida real. A cara de Harry Potter seria, para cada um de nós, um compromisso, por exemplo, entre a descrição proposta pela autora e a lembrança de tal camarada de nosso passado escolar. Por isso, na adaptação cinematográfica de um romance, é delicado escolher os atores -parece que sempre se chamam Tom Cruise, enquanto esperávamos as rugas de Robert Redford.
Ora, nada disso aconteceu no caso de Harry Potter. Os espectadores entrevistados no rádio queriam um filme fiel, ou seja, um filme que brincasse com o mesmo repertório de sonhos do livro. Mas, sobretudo, pareciam exigir (tarefa complicada) um filme que fosse conforme o universo romanesco que eles tinham imaginado durante a leitura. O milagre é que todos se declararam satisfeitos. Chris Columbus, o diretor, conseguiu não contrariar a fantasia de ninguém.
Não é pouca coisa. Certo, os livros de Rowling têm uma grande força descritiva e, portanto, devem inspirar nos leitores fantasias homogêneas. Mesmo assim, para realizar um filme que satisfaça às visões de todos os leitores da história adaptada, é necessária uma humildade admirável. No mínimo, Columbus soube renunciar à tentação de impor ou sugerir sua própria fantasia do romance.
À diferença dos espectadores, a crítica americana ficou em cima do muro. Gostou, mas achou que faltava mágica. O filme, queixaram-se os críticos, é "apenas" o livro. Ora, essa é justamente a grande qualidade do filme, ser "apenas" o livro. A humildade do filme confirma e fortalece a presença da história de Harry Potter no repertório coletivo de nossos cenários.
Por que seria uma coisa boa? É que nós, modernos, precisamos sempre de boas histórias, pois temos pouco em comum. As aspirações que compartilhamos (e que compõem nossa cultura) não constituem um código nem valem um livro de normas. Elas vivem e se transmitem pelas histórias das quais gostamos -especialmente por aquelas que são contadas para e por todos.
Aliás, ultimamente, temos sido chamados, com uma certa frequência, de infiéis. É porque não somos fiéis a um único livro. E daí? Somos fiéis a Harry Potter, a Julien Sorel, a Machado, a Homero e, naturalmente, a John Huston, Frank Capra e por aí vai.
quinta-feira, 15 de novembro de 2001
Somos violentos e democráticos, mas posudos
Há jovens brasileiros de classe média e alta estudando em universidades americanas. Desde o 11 de setembro, muitas famílias, preocupadas, pedem que eles voltem para casa.
Esses jovens, contrariamente aos imigrantes, não viajaram para fazer um pé-de-meia. Os pais quiseram que eles estudassem nos EUA sobretudo para que vivessem num lugar mais seguro.
Hoje, as famílias descobrem que nos EUA também é possível morrer de bala (ou de bomba) perdida. Mas não é só isso: a violência urbana -que, alguns anos atrás, foi a razão para que os filhos fossem mantidos longe do Brasil- tornou-se, para todos nós, uma espécie de fenômeno natural. Ela faz parte da paisagem. Parece completar a descrição de nosso dia-a-dia, como a seca integra a definição do Nordeste. Claro, há planos de irrigação e há regularmente iniciativas contra a violência. Mas são lamentações cujo pano de fundo não deixa de ser uma espécie de aceitação resignada. Como isso é possível?
Acredito que nossa capacidade de revolta contra a violência se esgote facilmente, porque sabemos que, no fundo, a violência é o corolário "natural" de nossa cultura. Somos os rebentos de um divórcio radical entre a função social dos cidadãos e sua eminência na sociedade.
Sem retroceder muito no tempo, no vilarejo, por exemplo, podia existir uma relação entre a função e o lugar social de cada um. Havia o bombeiro, o barbeiro, o médico, o professor, o alfaiate, o comerciante, o marceneiro: um desfile de funções às quais correspondiam prestígios diferentes (nem sempre organizados em hierarquias estúpidas). A modernidade urbana propõe um paradigma mais adequado à complexidade da sociedade citadina: o prestígio depende abstratamente da riqueza. Faça dinheiro e, seja qual for sua função social (ou sua eventual inutilidade), você será eminente. Não é mais simples?
Esse cinismo torna difícil a subsistência de qualquer moral comunitária. Afinal, se a riqueza é o critério da relevância social de cada um, melhor procurá-la da maneira mais direta possível, sem passar pelo exercício de fastidiosas funções sociais. A cidade moderna torna-se, então, uma selva. Se for bem policiada, seus predadores serão especuladores engravatados. Se for mal policiada, serão assaltantes. Em suma, nós nos resignamos com a violência, pois ela é autorizada por nosso modo de organizar as diferenças sociais.
Estava no meio dessas (desagradáveis) reflexões quando visitei, no Museum of Fine Arts de Boston, a exposição (aberta até janeiro) "The Look" -imagens de glamour e estilo. É uma excelente seleção de fotografias de George Hoyningen-Huene e de seu pupilo Horst P. Horst -fotógrafos que, entre as duas guerras mundiais, inventaram o formato hodierno da revista de moda.
A "Vogue", em 1930, gastava US$ 100 mil em desenhos e US$ 40 mil em fotografias. Dez anos mais tarde, a proporção era invertida. Nessa época, a moda cessou de vender roupas e passou a vender imagens. O leitor da "Vogue" ainda compra exatamente o que aparece nessa extraordinária exposição: uma galeria de posudos e, portanto, um repertório de poses. Saí da exposição com a convicção de que a revista de moda é essencial para entender o funcionamento da sociedade urbana moderna. Pois não basta dizer que, na distribuição de méritos e prestígios, o dinheiro substituiu hoje a função social. Isso, de certa forma, seria libertador. Para subir na consideração de todos, bastaria fazer dinheiro. Seríamos violentos -nos negócios, na exploração ou nos assaltos. Mas todos, em princípio, poderíamos chegar lá. Violentos e democráticos, não é?
Ora, não é bem assim. Para ter prestígio, ainda é necessário encontrar um "look", uma pose. E a pose é o ideal inatingível que alimenta nossa insatisfação (movimentando desejos e carteiras).
Podemos ganhar ou roubar o necessário para ter uma casa com piscina ou tirar férias em Montecarlo. Nós nos sentaremos no trampolim com um calção de marca. Mas nunca seremos as figuras de banhistas sublimes que, numa foto famosa de Huene, estão sentados de costas para a gente, olhando para um horizonte marinho perfeito e misterioso.
Até porque -aprendi na exposição- a foto em questão foi tirada no último andar do prédio da "Vogue", em Nova York. O misterioso horizonte era, de fato, um parapeito de concreto.
P.S.
1) Resumi para um amigo o tema desta coluna. Ele estranhou que não estivesse comentando as manifestações de liberdade pelas ruas de Cabul: música tocando, homens cortando a barba e mulheres levantando o véu. Pois é, estou mais que disposto a festejar, com o povo do Afeganistão, a derrota do Taleban. Espero que seja definitiva. Com isso, é difícil que o Afeganistão não se abra, aos poucos, para a nossa modernidade. É tempo, então, de pensar não só na liberdade que eles estão ganhando mas também nos pepinos que estão comprando: os nossos.
2) Não há catálogo da exposição, mas existe o livro: "The Photographic Art of Hoyningen-Huene" (Thames & Hudson).
quinta-feira, 1 de novembro de 2001
O que pensam os afegãos?
Sábado, caminhando pelo dédalo de antigas casas normandas que é o centro de Rouen, na França, esbarrei no restaurante Cabul, perto da catedral, na rue de la Chaîne. Prometia cozinha tradicional afegã, que se revelou ótima. O proprietário, Qassim Azimi, afegão, 46, saiu de Cabul em 92 e desde então mantém relações estreitas com o Afeganistão. Ultimamente, fala com seu irmão, em Cabul, quase a cada dia.
Pergunto se, segundo o irmão, os bombardeios americanos estão mesmo errando o alvo e matando muitos civis. "Estão, muitos", ele responde. Os mortos se contam em centenas.
Imagino que Qassim queira que os bombardeios parem. Imagino que ele tenha raiva dessa intervenção cruenta. Mesmo assim, indago: em Cabul, o que eles pensam dos bombardeios americanos? A resposta me surpreende: "Estão decepcionados. Não tanto pelos erros -isso é uma decepção, mas a gente entende. O problema é a incapacidade de enfraquecer o Taleban. Se tivessem bombardeado imediatamente depois do ataque de Nova York, teria sido diferente. Os EUA quiseram reunir uma coalizão. O Taleban e o Exército de Bin Laden tiveram tempo de esconder-se".
Qassim fala como se o Afeganistão fosse uma terra invadida e ele fizesse parte de uma força de resistência que não tem os meios suficientes para liberar o país e, portanto, conta com uma ajuda externa. Comunico-lhe essa minha impressão. Ele confirma e comenta que essa deve ser a visão de "90% dos Afegãos".
O país, a seu ver, libertou-se da invasão soviética para cair nas mãos de dois Exércitos estrangeiros. O Exército do Taleban não só recebia, até ontem, fundos e armas do Paquistão, mas é em grande parte composto por paquistaneses (que continuam chegando). Segundo Qassim, o Paquistão achou assim um jeito (útil) de libertar-se de uma pressão revolucionária interna. Os extremistas que catalisavam a insatisfação popular foram mandados tomar conta do vizinho Afeganistão. Agora, o governo paquistanês receia a perspectiva de que esse pessoal traga seus anseios de volta para casa. Melhor seria que eles fossem exterminados por uma derrota em território afegão. Daí a aliança atual com os EUA.
Ao lado do Taleban, que seria uma espécie de Exército paquistanês, há as forças de Bin Laden. Segundo Qassim, são 25 mil homens -uma tropa duplamente estrangeira, inteiramente composta de árabes-, quase todos de tradição wahabista, ou seja, adeptos do integrismo ensinado na Arábia Saudita. Ora, os afegãos não são árabes e, em sua maioria, são islâmicos de tradição sunita, como os sauditas, mas mais moderados. As elites sauditas mantêm, com esse Exército de fundamentalistas por elas produzido, a mesma relação dos paquistaneses com o Taleban. O fundamentalismo foi uma boa válvula de escape para a insatisfação popular. Agora atrapalha.
Ao escutar Qassim, descubro que, desde o 11 de setembro, eu não tinha escutado a posição de um afegão que não fosse porta-voz oficial do Taleban ou da Aliança do Norte. Será que Qassim expressa mesmo um sentimento difuso no Afeganistão ou em suas classes médias? Algumas entrevistas na imprensa francesa da última semana sugerem que sim.
De qualquer forma, nos restaurantes de Cambridge, de São Paulo ou de Paris, no fundo, poucos se importam com o Afeganistão. É mais interessante ser contra ou a favor dos EUA. A preocupação são nossas escolhas ideológicas e suas consequências políticas em nossos quintais. O drama concreto do país que é teatro da guerra e de seu povo torna-se apenas um pretexto para cada um de nós agitar suas bandeiras. Nos ditos restaurantes, ouço amigos ilustrados afirmarem, por exemplo, que a intervenção ocidental eternizará o círculo do ódio: vítimas inocentes afegãs, dizem, produzirão novas levas de terroristas. Mas, no restaurante de Rouen, ouço outra coisa: os afegãos choram, sem dúvida, as bombas e os mortos, mas não se esquecem de onde vem a opressão.
Difícil de entender? Nem tanto. Milão, onde a minha família morava, foi bombardeada horrivelmente em agosto de 1943 e, assiduamente, até a liberação, em 1945. As bombas nem tentavam ser precisas. Pensava-se, na época, que bombardear as populações civis desmoralizasse os governos oficiais. Em 1944, quando o norte da Itália era, de fato, zona de ocupação alemã, era duvidoso que as bombas, destruindo casas italianas, induzissem os alemães a retirar-se. Apesar disso, os bombardeios continuaram. Conclusão: nos anos 50, brinquei nos escombros.
Mais tarde, perguntei ao meu pai como era receber bombardeios que pareciam ser portadores, ao mesmo tempo, de morte e de esperança. Respondeu que, como era médico, no inverno de 43, quando permaneceram na cidade, saía dos abrigos e da clandestinidade para cuidar dos feridos -era claro que as bombas caíam e machucavam no lugar errado. Mas, quando tocava o alarme no meio da noite, eles rezavam para que os aviões viessem cada vez mais. Pois não esqueciam quem era responsável pelo horror e quem podia, àquela altura, ajudá-los a voltar a viver.
Pergunto se, segundo o irmão, os bombardeios americanos estão mesmo errando o alvo e matando muitos civis. "Estão, muitos", ele responde. Os mortos se contam em centenas.
Imagino que Qassim queira que os bombardeios parem. Imagino que ele tenha raiva dessa intervenção cruenta. Mesmo assim, indago: em Cabul, o que eles pensam dos bombardeios americanos? A resposta me surpreende: "Estão decepcionados. Não tanto pelos erros -isso é uma decepção, mas a gente entende. O problema é a incapacidade de enfraquecer o Taleban. Se tivessem bombardeado imediatamente depois do ataque de Nova York, teria sido diferente. Os EUA quiseram reunir uma coalizão. O Taleban e o Exército de Bin Laden tiveram tempo de esconder-se".
Qassim fala como se o Afeganistão fosse uma terra invadida e ele fizesse parte de uma força de resistência que não tem os meios suficientes para liberar o país e, portanto, conta com uma ajuda externa. Comunico-lhe essa minha impressão. Ele confirma e comenta que essa deve ser a visão de "90% dos Afegãos".
O país, a seu ver, libertou-se da invasão soviética para cair nas mãos de dois Exércitos estrangeiros. O Exército do Taleban não só recebia, até ontem, fundos e armas do Paquistão, mas é em grande parte composto por paquistaneses (que continuam chegando). Segundo Qassim, o Paquistão achou assim um jeito (útil) de libertar-se de uma pressão revolucionária interna. Os extremistas que catalisavam a insatisfação popular foram mandados tomar conta do vizinho Afeganistão. Agora, o governo paquistanês receia a perspectiva de que esse pessoal traga seus anseios de volta para casa. Melhor seria que eles fossem exterminados por uma derrota em território afegão. Daí a aliança atual com os EUA.
Ao lado do Taleban, que seria uma espécie de Exército paquistanês, há as forças de Bin Laden. Segundo Qassim, são 25 mil homens -uma tropa duplamente estrangeira, inteiramente composta de árabes-, quase todos de tradição wahabista, ou seja, adeptos do integrismo ensinado na Arábia Saudita. Ora, os afegãos não são árabes e, em sua maioria, são islâmicos de tradição sunita, como os sauditas, mas mais moderados. As elites sauditas mantêm, com esse Exército de fundamentalistas por elas produzido, a mesma relação dos paquistaneses com o Taleban. O fundamentalismo foi uma boa válvula de escape para a insatisfação popular. Agora atrapalha.
Ao escutar Qassim, descubro que, desde o 11 de setembro, eu não tinha escutado a posição de um afegão que não fosse porta-voz oficial do Taleban ou da Aliança do Norte. Será que Qassim expressa mesmo um sentimento difuso no Afeganistão ou em suas classes médias? Algumas entrevistas na imprensa francesa da última semana sugerem que sim.
De qualquer forma, nos restaurantes de Cambridge, de São Paulo ou de Paris, no fundo, poucos se importam com o Afeganistão. É mais interessante ser contra ou a favor dos EUA. A preocupação são nossas escolhas ideológicas e suas consequências políticas em nossos quintais. O drama concreto do país que é teatro da guerra e de seu povo torna-se apenas um pretexto para cada um de nós agitar suas bandeiras. Nos ditos restaurantes, ouço amigos ilustrados afirmarem, por exemplo, que a intervenção ocidental eternizará o círculo do ódio: vítimas inocentes afegãs, dizem, produzirão novas levas de terroristas. Mas, no restaurante de Rouen, ouço outra coisa: os afegãos choram, sem dúvida, as bombas e os mortos, mas não se esquecem de onde vem a opressão.
Difícil de entender? Nem tanto. Milão, onde a minha família morava, foi bombardeada horrivelmente em agosto de 1943 e, assiduamente, até a liberação, em 1945. As bombas nem tentavam ser precisas. Pensava-se, na época, que bombardear as populações civis desmoralizasse os governos oficiais. Em 1944, quando o norte da Itália era, de fato, zona de ocupação alemã, era duvidoso que as bombas, destruindo casas italianas, induzissem os alemães a retirar-se. Apesar disso, os bombardeios continuaram. Conclusão: nos anos 50, brinquei nos escombros.
Mais tarde, perguntei ao meu pai como era receber bombardeios que pareciam ser portadores, ao mesmo tempo, de morte e de esperança. Respondeu que, como era médico, no inverno de 43, quando permaneceram na cidade, saía dos abrigos e da clandestinidade para cuidar dos feridos -era claro que as bombas caíam e machucavam no lugar errado. Mas, quando tocava o alarme no meio da noite, eles rezavam para que os aviões viessem cada vez mais. Pois não esqueciam quem era responsável pelo horror e quem podia, àquela altura, ajudá-los a voltar a viver.
quinta-feira, 25 de outubro de 2001
A importância da vida concreta
Desde o ataque terrorista do 11 de setembro, recebo regularmente e-mails que dizem, em síntese: "Lamento os mortos, mas o que aconteceu é a retribuição de políticas americanas iníquas contra o Terceiro Mundo". Alguns declaram, cinematograficamente, que, ao verem as torres caindo, eles enxergaram, em transparência, os rostos aflitos de crianças famintas pelo mundo afora.
Um amigo, comentando essa substituição de vítima por vítima, evocou suas emoções depois do massacre do Carandiru. Eram parecidas com as minhas: na época, contemplando aqueles cadáveres costurados sumariamente depois da autópsia, não quis pensar nos rostos dos sujeitos assassinados que tinham sido as vítimas diretas de muitos detentos mortos. Preferi pensar no desespero dos últimos instantes dos presos e, sobretudo, imaginar os momentos banais de suas vidas: peladas de vila, amigos, namoradas, brigas de bar, sinucas, esperanças. Por isso pude lamentar suas mortes. Por que fazer menos pelas vítimas de Nova York?
Os e-mails que resumi acima sugerem também que os mortos das torres gêmeas sejam responsáveis pelas injustiças cometidas pelos EUA ou pelo Ocidente nos últimos 50 anos.
Pensei em responder que não via como lava-pratos brasileiros, lava-vidros mexicanos, homens da manutenção, telefonistas, recepcionistas, garçons, garçonetes, secretárias, turistas e tradutores seriam responsáveis pelas culpas do capital financeiro mundial.
Mas logo achei essa resposta abominável. Pois, ao diferenciar os trabalhadores manuais e subordinados, era como se eu aceitasse que os outros, de corretor para cima, tivessem morrido expiando uma culpa. Não quero discutir o fundamento dessa culpa. Espanta-me mais o seguinte: para que a morte desses sujeitos seja, de alguma forma, justificada pelos malfeitos do capital, eles devem ser identificados perfeitamente com suas funções na economia global. Como se diz nos EUA, eles devem ser vistos apenas como "suits", ternos vazios.
Um de meus correspondentes acrescenta que, de qualquer forma, os funcionários do World Trade Center eram "todos alienados", ou seja, eles tinham, num pacto diabólico, entregado suas vidas em troca dos ditos ternos.
Cada vez mais, parece-me que, quando denunciamos a alienação dos outros, quase sempre operamos uma extraordinária violência: negamos suas vidas concretas. É por esse caminho que o terrorista transforma qualquer um em alvo: ele não enxerga nunca as existências, só a funcionalidade de todos no sistema que ele combate. Há uma criança no avião? É apenas mais um expoente do mundo inimigo: quem sabe, um futuro dirigente do FMI. Essa redução é fácil para o terrorista, pois ele já fez o mesmo com sua própria vida: renunciou à existência para se tornar puro instrumento (de destruição).
Tomemos duas frases: "Os marajás do capital financeiro do World Trade Center eram responsáveis pela fome na África". Ou então: "Os fundamentalistas bombardeados no Afeganistão são responsáveis pelo horror repressivo de sua sociedade e pelo terrorismo". Pouco importa aqui que essas implicações de responsabilidade sejam demonstradas ou não. De qualquer forma, as frases desumanizam os sujeitos dos quais elas falam. Para dizermos que foram devorados pela ganância ou pelo extremismo de sua fé, anulamos a lembrança de sua humanidade concreta. Ora, é essa que não quero esquecer.
Não me importa pensar nos corretores das torres gêmeas comprando e vendendo ações e, quem sabe, cinicamente decretando fome e desemprego. Mas me importa lembrar as glórias e misérias de suas vidas cotidianas, as fantasias sexuais frustradas ou não, os pequenos segredos, as indulgências, os prazeres, os ciúmes, as raivas, os gestos banais do dia-a-dia. Do mesmo jeito, estou farto de ver os fundamentalistas rezando ou lendo o Alcorão. Quero pensar neles em casa, quando as mulheres enfim tiram seus véus. Quero imaginar o segredo de suas transgressões inconfessáveis e de suas vergonhas. Ou simplesmente a preparação do chá, enquanto batem papo na frente de casa.
Muito mais do que a fisiologia comum dos corpos, é a lembrança da vida concreta que nos permite obedecer ao primeiro preceito da cultura ocidental, pelo qual todos os humanos são nossos semelhantes.
Nestes dias de guerra, posso acreditar que haja diferenças e oposições que sejam insolúveis sem um conflito. Escolho meu campo e tomo posição, mas não quero esquecer a vida cotidiana de todos (aliás, escolho meu campo por ser aquele que, a meu ver, menos esquece a vida concreta de seus inimigos).
Por isso também privilegio a interpretação psicológica das motivações. Porque a psicologia acredita na relevância dos percalços da vida concreta. Ou seja, dá importância ao terreno comum, onde imagino que todos os humanos se encontrem -aquela parte da experiência cotidiana que talvez se situe aquém das diferenças: tomar a febre do filho com a mão, preparar a comida do cachorro, desejar aquele ou aquela que não deveríamos, chorar os defuntos.
Um amigo, comentando essa substituição de vítima por vítima, evocou suas emoções depois do massacre do Carandiru. Eram parecidas com as minhas: na época, contemplando aqueles cadáveres costurados sumariamente depois da autópsia, não quis pensar nos rostos dos sujeitos assassinados que tinham sido as vítimas diretas de muitos detentos mortos. Preferi pensar no desespero dos últimos instantes dos presos e, sobretudo, imaginar os momentos banais de suas vidas: peladas de vila, amigos, namoradas, brigas de bar, sinucas, esperanças. Por isso pude lamentar suas mortes. Por que fazer menos pelas vítimas de Nova York?
Os e-mails que resumi acima sugerem também que os mortos das torres gêmeas sejam responsáveis pelas injustiças cometidas pelos EUA ou pelo Ocidente nos últimos 50 anos.
Pensei em responder que não via como lava-pratos brasileiros, lava-vidros mexicanos, homens da manutenção, telefonistas, recepcionistas, garçons, garçonetes, secretárias, turistas e tradutores seriam responsáveis pelas culpas do capital financeiro mundial.
Mas logo achei essa resposta abominável. Pois, ao diferenciar os trabalhadores manuais e subordinados, era como se eu aceitasse que os outros, de corretor para cima, tivessem morrido expiando uma culpa. Não quero discutir o fundamento dessa culpa. Espanta-me mais o seguinte: para que a morte desses sujeitos seja, de alguma forma, justificada pelos malfeitos do capital, eles devem ser identificados perfeitamente com suas funções na economia global. Como se diz nos EUA, eles devem ser vistos apenas como "suits", ternos vazios.
Um de meus correspondentes acrescenta que, de qualquer forma, os funcionários do World Trade Center eram "todos alienados", ou seja, eles tinham, num pacto diabólico, entregado suas vidas em troca dos ditos ternos.
Cada vez mais, parece-me que, quando denunciamos a alienação dos outros, quase sempre operamos uma extraordinária violência: negamos suas vidas concretas. É por esse caminho que o terrorista transforma qualquer um em alvo: ele não enxerga nunca as existências, só a funcionalidade de todos no sistema que ele combate. Há uma criança no avião? É apenas mais um expoente do mundo inimigo: quem sabe, um futuro dirigente do FMI. Essa redução é fácil para o terrorista, pois ele já fez o mesmo com sua própria vida: renunciou à existência para se tornar puro instrumento (de destruição).
Tomemos duas frases: "Os marajás do capital financeiro do World Trade Center eram responsáveis pela fome na África". Ou então: "Os fundamentalistas bombardeados no Afeganistão são responsáveis pelo horror repressivo de sua sociedade e pelo terrorismo". Pouco importa aqui que essas implicações de responsabilidade sejam demonstradas ou não. De qualquer forma, as frases desumanizam os sujeitos dos quais elas falam. Para dizermos que foram devorados pela ganância ou pelo extremismo de sua fé, anulamos a lembrança de sua humanidade concreta. Ora, é essa que não quero esquecer.
Não me importa pensar nos corretores das torres gêmeas comprando e vendendo ações e, quem sabe, cinicamente decretando fome e desemprego. Mas me importa lembrar as glórias e misérias de suas vidas cotidianas, as fantasias sexuais frustradas ou não, os pequenos segredos, as indulgências, os prazeres, os ciúmes, as raivas, os gestos banais do dia-a-dia. Do mesmo jeito, estou farto de ver os fundamentalistas rezando ou lendo o Alcorão. Quero pensar neles em casa, quando as mulheres enfim tiram seus véus. Quero imaginar o segredo de suas transgressões inconfessáveis e de suas vergonhas. Ou simplesmente a preparação do chá, enquanto batem papo na frente de casa.
Muito mais do que a fisiologia comum dos corpos, é a lembrança da vida concreta que nos permite obedecer ao primeiro preceito da cultura ocidental, pelo qual todos os humanos são nossos semelhantes.
Nestes dias de guerra, posso acreditar que haja diferenças e oposições que sejam insolúveis sem um conflito. Escolho meu campo e tomo posição, mas não quero esquecer a vida cotidiana de todos (aliás, escolho meu campo por ser aquele que, a meu ver, menos esquece a vida concreta de seus inimigos).
Por isso também privilegio a interpretação psicológica das motivações. Porque a psicologia acredita na relevância dos percalços da vida concreta. Ou seja, dá importância ao terreno comum, onde imagino que todos os humanos se encontrem -aquela parte da experiência cotidiana que talvez se situe aquém das diferenças: tomar a febre do filho com a mão, preparar a comida do cachorro, desejar aquele ou aquela que não deveríamos, chorar os defuntos.
quinta-feira, 18 de outubro de 2001
Al Qaeda conta com o pacifismo incondicional
Na quinta-feira passada, Suleiman Abou-Gheit, porta-voz da organização terrorista Al Qaeda, declarou que, "nas nações islâmicas, há milhares de jovens ansiosos por morrer, enquanto os americanos estão ansiosos por viver".
Se for assim, o terror ganhará a guerra. Como os americanos e, por extensão, nós, ocidentais, resistiríamos a um Exército que deseja sua própria morte, enquanto, mesquinhos, queremos preservar nossas vidas? Os que encararem a morte com desenvoltura serão mestres, os que preferirem minimizar os riscos serão escravos.
É certo que houve, vindos de várias nações islâmicas, muitos jovens ansiosos por morrer. No começo, pensamos que eles fossem animados por uma fé absoluta nas recompensas do além. O espírito crítico de nossa cultura nos torna desconfiados e céticos. Por contraste, a convicção maluca dos assassinos era exótica e podia nos parecer quase invejável, como se fosse uma qualidade moral perdida pela modernidade.
Essa explicação inicial encontrou um paradoxo: os pilotos assassinos não eram homens religiosos. A reconstituição de seus últimos dias incluía bebida e clubes de "go-go girls". Com essa descoberta, a coisa ficou mais familiar. A força de uma fé absoluta constituía para nós um mistério. Mas sabemos do que é capaz o esforço para reprimir desejos que são fortes dentro de nós e, apesar disso, inaceitáveis. Conheci anos atrás um jovem que, perseguido por paixões masturbatórias proibidas, se automutilou. O vôo dos pilotos assassinos podia ser algo parecido: uma maneira de cortar brutalmente seu próprio desejo de "go-go girls", matando, com uma cacetada só, o desejo (ou seja, a si mesmos) e as "go-go girls".
Em suma, milhares (?) de jovens querem morrer matando outros que querem viver e que bebem e se permitem "go-go girls". Para os assassinos suicidas, a matança é um remédio contra sua própria vontade de ser como aqueles que querem viver -vontade de álcool e de "go-go girls". A fé seria uma racionalização. A repressão seria a verdadeira motivação.
Apareceu mais um elemento para explicar a determinação dos terroristas. Na última semana, três mulheres (duas delas americanas) me confessaram que, ao assistirem às falas de Osama bin Laden, sentiram-se atraídas quase fisicamente sem saber por que característica. Nos jornais, as fotografias de paquistaneses e de palestinos acariciando a imagem do terrorista não dizem outra coisa: independentemente de seus planos geopolíticos (obscuros), Osama bin Laden fascina e seduz.
Como? Prometendo uma morte bela. Aliás, é sempre com essa promessa que o terror e os fascismos recrutam: quem morrer por nós e conosco morrerá bonito. As elites quase sempre tentam convencer seus oprimidos de que a miséria é bonita (o Brasil conhece bem essa tática). Ora, o rebento mais famoso da elite saudita melhorou o esquema: achou o jeito de acalmar os oprimidos do islã, prometendo-lhes que sua morte seria bonita. A morte é o mestre absoluto, que ganha de nós todos -sempre. Morrer é a prova de nossos limites. Desagradável, não é? Bom, transformar nossa morte numa apoteose narcisista, numa imagem de grande beleza, é o melhor jeito de negar nossos limites. A nossa morte será o próprio monumento que nos eternizará. Era isso que podia animar os pilotos suicidas e assassinos na hora do impacto: uma imagem de si mesmos enaltecida pelo sacrifício e pelo horror. Lá vou eu, triunfando na morte. Bin Laden seduz por ser um maquiador de cadáveres.
Com isso, a determinação dos terroristas dilui-se num meandro de conflitos psíquicos banais.
Mesmo assim, nossa chance de resistir aos apóstolos da morte seria pequena, se fosse verdade que nós e nossos jovens queremos apenas viver. Se garantir nossa sobrevivência for a razão principal de nossa existência, então não haverá como resistir ao terror. Quem quer viver a qualquer custo nunca levanta para lutar. Será que Abou-Gheit tem razão?
É o que me parece quando ouço, nestes dias, a insistência de um discurso pacifista incondicional, que simplesmente pede que ninguém mais seja morto ou ferido. Tudo é aceitável em troca da sobrevivência: baixem as armas, não quero nem saber o porquê da briga, só tomo posição em favor da vida e não respondo à pergunta: "Qual vida?". É um discurso coerente com um traço marcante da cultura contemporânea, segundo o qual o culto ao corpo e à saúde parecem valer como única ética coletiva.
Em contraponto, os passageiros do quarto avião sequestrado no 11 de setembro, quando souberam do destino dos outros aviões, rebelaram-se. Um deles falou no celular com sua mulher, a qual lhe sugeriu que ficasse calmo e, quem sabe, assim salvasse a pele. Antes de desligar e passar à ação, ele disse: "Algo precisa ser feito".
Talvez Abou-Gheit esteja errado em seu entendimento da modernidade ocidental. É verdade que, para nós, a vida é um valor, e a morte nunca nos parece bela. Mas também é verdade que essa "consciência" não nos torna todos necessariamente covardes.
Se for assim, o terror ganhará a guerra. Como os americanos e, por extensão, nós, ocidentais, resistiríamos a um Exército que deseja sua própria morte, enquanto, mesquinhos, queremos preservar nossas vidas? Os que encararem a morte com desenvoltura serão mestres, os que preferirem minimizar os riscos serão escravos.
É certo que houve, vindos de várias nações islâmicas, muitos jovens ansiosos por morrer. No começo, pensamos que eles fossem animados por uma fé absoluta nas recompensas do além. O espírito crítico de nossa cultura nos torna desconfiados e céticos. Por contraste, a convicção maluca dos assassinos era exótica e podia nos parecer quase invejável, como se fosse uma qualidade moral perdida pela modernidade.
Essa explicação inicial encontrou um paradoxo: os pilotos assassinos não eram homens religiosos. A reconstituição de seus últimos dias incluía bebida e clubes de "go-go girls". Com essa descoberta, a coisa ficou mais familiar. A força de uma fé absoluta constituía para nós um mistério. Mas sabemos do que é capaz o esforço para reprimir desejos que são fortes dentro de nós e, apesar disso, inaceitáveis. Conheci anos atrás um jovem que, perseguido por paixões masturbatórias proibidas, se automutilou. O vôo dos pilotos assassinos podia ser algo parecido: uma maneira de cortar brutalmente seu próprio desejo de "go-go girls", matando, com uma cacetada só, o desejo (ou seja, a si mesmos) e as "go-go girls".
Em suma, milhares (?) de jovens querem morrer matando outros que querem viver e que bebem e se permitem "go-go girls". Para os assassinos suicidas, a matança é um remédio contra sua própria vontade de ser como aqueles que querem viver -vontade de álcool e de "go-go girls". A fé seria uma racionalização. A repressão seria a verdadeira motivação.
Apareceu mais um elemento para explicar a determinação dos terroristas. Na última semana, três mulheres (duas delas americanas) me confessaram que, ao assistirem às falas de Osama bin Laden, sentiram-se atraídas quase fisicamente sem saber por que característica. Nos jornais, as fotografias de paquistaneses e de palestinos acariciando a imagem do terrorista não dizem outra coisa: independentemente de seus planos geopolíticos (obscuros), Osama bin Laden fascina e seduz.
Como? Prometendo uma morte bela. Aliás, é sempre com essa promessa que o terror e os fascismos recrutam: quem morrer por nós e conosco morrerá bonito. As elites quase sempre tentam convencer seus oprimidos de que a miséria é bonita (o Brasil conhece bem essa tática). Ora, o rebento mais famoso da elite saudita melhorou o esquema: achou o jeito de acalmar os oprimidos do islã, prometendo-lhes que sua morte seria bonita. A morte é o mestre absoluto, que ganha de nós todos -sempre. Morrer é a prova de nossos limites. Desagradável, não é? Bom, transformar nossa morte numa apoteose narcisista, numa imagem de grande beleza, é o melhor jeito de negar nossos limites. A nossa morte será o próprio monumento que nos eternizará. Era isso que podia animar os pilotos suicidas e assassinos na hora do impacto: uma imagem de si mesmos enaltecida pelo sacrifício e pelo horror. Lá vou eu, triunfando na morte. Bin Laden seduz por ser um maquiador de cadáveres.
Com isso, a determinação dos terroristas dilui-se num meandro de conflitos psíquicos banais.
Mesmo assim, nossa chance de resistir aos apóstolos da morte seria pequena, se fosse verdade que nós e nossos jovens queremos apenas viver. Se garantir nossa sobrevivência for a razão principal de nossa existência, então não haverá como resistir ao terror. Quem quer viver a qualquer custo nunca levanta para lutar. Será que Abou-Gheit tem razão?
É o que me parece quando ouço, nestes dias, a insistência de um discurso pacifista incondicional, que simplesmente pede que ninguém mais seja morto ou ferido. Tudo é aceitável em troca da sobrevivência: baixem as armas, não quero nem saber o porquê da briga, só tomo posição em favor da vida e não respondo à pergunta: "Qual vida?". É um discurso coerente com um traço marcante da cultura contemporânea, segundo o qual o culto ao corpo e à saúde parecem valer como única ética coletiva.
Em contraponto, os passageiros do quarto avião sequestrado no 11 de setembro, quando souberam do destino dos outros aviões, rebelaram-se. Um deles falou no celular com sua mulher, a qual lhe sugeriu que ficasse calmo e, quem sabe, assim salvasse a pele. Antes de desligar e passar à ação, ele disse: "Algo precisa ser feito".
Talvez Abou-Gheit esteja errado em seu entendimento da modernidade ocidental. É verdade que, para nós, a vida é um valor, e a morte nunca nos parece bela. Mas também é verdade que essa "consciência" não nos torna todos necessariamente covardes.
quinta-feira, 11 de outubro de 2001
Os jovens da Universidade Columbia e a guerra
No fim de semana passado, estive no campus da Universidade Columbia, em Nova York. Havia poucas bandeiras americanas nas janelas -bem menos do que a média da cidade. Também faltavam as bandeiras da paz. A universidade foi, 30 anos atrás, um centro ativo dos protestos contra a Guerra do Vietnã. Mas, no domingo, não encontrei um cartaz que convocasse os estudantes para um debate ou para um desfile sobre ou contra a guerra.
Nos bares do campus, não escutei nenhuma fala espontânea sobre o ataque. Desde 11 de setembro, alguns estudantes sequer foram para a ponta sul de Manhattan. Preferiram ignorar a destruição do World Trade Center.
Lancei uma conversa. Meu jovem interlocutor afirmou que o ataque terrorista foi horrível e que seria certo pegar os culpados, mas reiterou que era contra qualquer guerra: não estava disposto a correr o risco de ser chamado numa leva de recrutas e não queria que morressem civis -nem mesmo por engano.
Entendi assim: "Não queremos nada que possa comprometer o clima agradável no qual nos preparamos para ser a elite norte-americana de amanhã".
Em suma, os jovens que encontrei pareciam cheios de boas intenções, mas interessados sobretudo em seu bem-estar imediato e futuro. Ia resignar-me à idéia de que a juventude crescida na década próspera (os anos 90) fosse propriamente cínica, quando aprendi que um número relativamente alto de ex-alunos da Universidade Columbia morreu no ataque do dia 11 de setembro.
Ou seja, meus interlocutores estudantes são destinados, eventualmente, ao tipo de emprego que poderia levá-los a estar nas torres gêmeas do World Trade Center no dia do ataque.
Apesar disso, eles evitavam pensar nos mortos do dia 11 de setembro e preferiam lamentar as possíveis vítimas dos bombardeios da resposta norte-americana.
Em outras palavras, eles reagiam como se não pudessem tomar partido de seus semelhantes imediatos -como se, por alguma regra implícita, fosse mais fácil e mais justo identificar-se com os afegãos do Taleban do que com aqueles que, convencionalmente, seriam "os seus".
Assim descobri que esses jovens -nata das melhores escolas secundárias dos EUA- não são filhos cínicos do privilégio, querendo apenas preservar seu conforto. Eles são, de fato, os filhos do grande projeto multiculturalista dos EUA. Nas últimas duas décadas, o país tentou levar a sério e realizar um dos corolários da cultura ocidental moderna: a idéia de que o convívio da comunidade humana deve ser possível para a espécie toda, sem depender de etnias, raças e culturas. É assim que continua a antiga ambição norte-americana de apresentar ao mundo uma sociedade exemplar.
Desta vez, é o exemplo da nação em que conviveriam todas as nações. Por consequência, multiplicaram-se as políticas ativas para que, no caso, as salas de aula fossem cultural, étnica e socialmente heterogêneas, diversas.
Surgiram cuidados quase paranóicos para que, nessa diversidade, nenhuma posição fosse privilegiada. O resultado é uma juventude admiravelmente disposta a reconhecer a humanidade dos outros, por diferentes que sejam, e com vergonha de aderir ao seu próprio grupo étnico, social ou mesmo nacional.
Esses jovens foram educados para ser uma elite à altura do novo sonho americano: o de um país em que todas as diferenças seriam respeitadas com harmonia.
À primeira vista, deveríamos festejar a chegada dessa geração, que acredita num mundo de convívios pacíficos. Mas há um problema: a educação que faz desses jovens os campeões do multiculturalismo, pode torná-los ineptos em caso de enfrentamento.
Pelo ensino que receberam, eles acham sempre que o mais urgente é entender as razões dos outros. É uma atitude bonita, mas que os impede de reconhecer os inimigos e, portanto, de defender-se.
Não sei se os bombardeios desses dias são a melhor ou a única estratégia possível contra o terror. Mas concordo com a idéia de Tony Blair -de que a inação pode comportar mais riscos do que a ação. Ora, o que aconteceria se esses jovens tivessem a responsabilidade de enfrentar os projetos geopolíticos de um assassino ambicioso como Osama bin Laden?
Outro problema, em perspectiva: a nova geração multiculturalista não resolve a antiga fratura social americana. Ao contrário. Na América profunda, o multiculturalismo teve certamente o efeito concreto de diminuir as segregações raciais e sociais. Mas ele não veio a ser a ideologia positiva dominante. Os jovens dessa América menos favorecida continuam sabendo reconhecer e determinar seus inimigos.
Eles irão para a guerra. Darão, se for preciso, suas vidas para defender uma elite que preservará não só seus privilégios, mas também sua boa consciência. Pois essa nova elite, assim protegida, dar-se-á o luxo de desaprovar qualquer guerra e de menosprezar seus próprios combatentes, perguntando do alto de seu conforto: afinal, por que eles teimam em ver inimigos onde só há sujeitos diferentes de nós, na espera de nossa benévola compreensão?
Nos bares do campus, não escutei nenhuma fala espontânea sobre o ataque. Desde 11 de setembro, alguns estudantes sequer foram para a ponta sul de Manhattan. Preferiram ignorar a destruição do World Trade Center.
Lancei uma conversa. Meu jovem interlocutor afirmou que o ataque terrorista foi horrível e que seria certo pegar os culpados, mas reiterou que era contra qualquer guerra: não estava disposto a correr o risco de ser chamado numa leva de recrutas e não queria que morressem civis -nem mesmo por engano.
Entendi assim: "Não queremos nada que possa comprometer o clima agradável no qual nos preparamos para ser a elite norte-americana de amanhã".
Em suma, os jovens que encontrei pareciam cheios de boas intenções, mas interessados sobretudo em seu bem-estar imediato e futuro. Ia resignar-me à idéia de que a juventude crescida na década próspera (os anos 90) fosse propriamente cínica, quando aprendi que um número relativamente alto de ex-alunos da Universidade Columbia morreu no ataque do dia 11 de setembro.
Ou seja, meus interlocutores estudantes são destinados, eventualmente, ao tipo de emprego que poderia levá-los a estar nas torres gêmeas do World Trade Center no dia do ataque.
Apesar disso, eles evitavam pensar nos mortos do dia 11 de setembro e preferiam lamentar as possíveis vítimas dos bombardeios da resposta norte-americana.
Em outras palavras, eles reagiam como se não pudessem tomar partido de seus semelhantes imediatos -como se, por alguma regra implícita, fosse mais fácil e mais justo identificar-se com os afegãos do Taleban do que com aqueles que, convencionalmente, seriam "os seus".
Assim descobri que esses jovens -nata das melhores escolas secundárias dos EUA- não são filhos cínicos do privilégio, querendo apenas preservar seu conforto. Eles são, de fato, os filhos do grande projeto multiculturalista dos EUA. Nas últimas duas décadas, o país tentou levar a sério e realizar um dos corolários da cultura ocidental moderna: a idéia de que o convívio da comunidade humana deve ser possível para a espécie toda, sem depender de etnias, raças e culturas. É assim que continua a antiga ambição norte-americana de apresentar ao mundo uma sociedade exemplar.
Desta vez, é o exemplo da nação em que conviveriam todas as nações. Por consequência, multiplicaram-se as políticas ativas para que, no caso, as salas de aula fossem cultural, étnica e socialmente heterogêneas, diversas.
Surgiram cuidados quase paranóicos para que, nessa diversidade, nenhuma posição fosse privilegiada. O resultado é uma juventude admiravelmente disposta a reconhecer a humanidade dos outros, por diferentes que sejam, e com vergonha de aderir ao seu próprio grupo étnico, social ou mesmo nacional.
Esses jovens foram educados para ser uma elite à altura do novo sonho americano: o de um país em que todas as diferenças seriam respeitadas com harmonia.
À primeira vista, deveríamos festejar a chegada dessa geração, que acredita num mundo de convívios pacíficos. Mas há um problema: a educação que faz desses jovens os campeões do multiculturalismo, pode torná-los ineptos em caso de enfrentamento.
Pelo ensino que receberam, eles acham sempre que o mais urgente é entender as razões dos outros. É uma atitude bonita, mas que os impede de reconhecer os inimigos e, portanto, de defender-se.
Não sei se os bombardeios desses dias são a melhor ou a única estratégia possível contra o terror. Mas concordo com a idéia de Tony Blair -de que a inação pode comportar mais riscos do que a ação. Ora, o que aconteceria se esses jovens tivessem a responsabilidade de enfrentar os projetos geopolíticos de um assassino ambicioso como Osama bin Laden?
Outro problema, em perspectiva: a nova geração multiculturalista não resolve a antiga fratura social americana. Ao contrário. Na América profunda, o multiculturalismo teve certamente o efeito concreto de diminuir as segregações raciais e sociais. Mas ele não veio a ser a ideologia positiva dominante. Os jovens dessa América menos favorecida continuam sabendo reconhecer e determinar seus inimigos.
Eles irão para a guerra. Darão, se for preciso, suas vidas para defender uma elite que preservará não só seus privilégios, mas também sua boa consciência. Pois essa nova elite, assim protegida, dar-se-á o luxo de desaprovar qualquer guerra e de menosprezar seus próprios combatentes, perguntando do alto de seu conforto: afinal, por que eles teimam em ver inimigos onde só há sujeitos diferentes de nós, na espera de nossa benévola compreensão?
quinta-feira, 4 de outubro de 2001
Escombros do World Trade Center
BABEL
Até a semana passada, das torres do World Trade Center sobrava um esqueleto metálico de sete andares que foi fotografado mil vezes: espécie de triângulo de arcos sobrepostos no meio da fumaça que emanava dos escombros.
A imagem evocava as formas que a iconografia da Renascença atribuiu à torre de Babel: justamente andares de arcos afinando progressivamente na subida -como se a torre fosse um cone. Os restos das torres se assemelhavam, em suma, aos restos da torre de Babel depois da cólera divina.
A similitude era reforçada pela interpretação imediata do enfrentamento que levou à catástrofe. Nas torres trabalhavam (e morreram) pessoas vindas de cada canto da terra. Aparentemente, eles tinham realizado o antigo projeto de Babel: conviviam e, bem ou mal, comunicavam-se (concordando ou discordando) apesar das diferenças étnicas, linguísticas, religiosas e sociais. Esse projeto ambicioso de convivência universal foi abatido, como na história bíblica, por clarões de cólera divina -melhor dito (e para deixar os deuses fora dessa), por sujeitos convencidos de serem os braços da cólera divina.
Mas essa é a impressão imediata. Os escombros sugerem também uma meditação mais complexa e mais desesperada.
As torres acrescentavam uma especificação ao antigo desejo de Babel. A denominação (World Trade Center, que quer dizer Centro Mundial do Comércio) e a função das torres sugeriam o seguinte: o projeto de uma humanidade que ultrapasse suas diferenças está sendo realizado pela modernidade ocidental, mas ao preço da primazia do mercado na vida humana.
Ou seja, se formos todos homens econômicos, seremos suficientemente parecidos para que a comunicação entre nós seja fácil. O comércio será nossa pátria comum. Vamos nos definir como força de trabalho, como poder de compra ou como consumidores. Vamos detalhar nossas ambições em listas de mercadorias. Desde então, por mais que desejemos coisas diferentes e escolhamos estilos de vida distintos, teremos uma língua comum. O risco será que, a esta altura, não tenhamos nada muito interessante para conversar.
Ora, como alternativa à primazia do mercado que nos permitiria sermos cidadãos de um mesmo mundo, os terroristas viriam com um particularismo tribal que nem contempla a possibilidade da convivência com o diferente.
Proporção: a globalização estaria para as torres do World Trade Center como a antiglobalização estaria para o fundamentalismo dos terroristas que as demoliram.
Será que nosso destino está preso entre vivermos juntos como puros agentes econômicos e exaltarmos nossas diferenças como fés irredutíveis e inconciliáveis?
BANDEIRAS
Nestes dias, é banal encontrar nos jornais a imagem de pequenos grupos, nas ruas de algum país islâmico, queimando bandeiras americanas. Todos exultam e olham para a câmara com um ar satisfeito, na esperança de que um espectador americano sofra com esse vitupério que, a seus autores, deve parecer extremo.
Será que eles sabem que, nos EUA, se discute regularmente para defender o direito de queimar a bandeira como forma de protestar? Sabem que esse ato se tornou comum desde as manifestações dos anos 60?
Coloco essa pergunta para um amigo paquistanês-americano. Responde que obviamente eles não sabem. Nem imaginam. Mas, se soubessem que queimar a bandeira americana é permitido nos EUA, não teriam admiração nenhuma por essa forma extrema de democracia. Ao contrário, desprezariam ainda mais uma nação que lhes pareceria indigna por deixar que seus cidadãos ultrajem o símbolo do país.
Impasse da diferença: nossas liberdades aparecem como provas de decadência aos olhos dos fundamentalistas. E as obediências das quais eles se orgulham são, para nós, a assinatura do atraso.
VULNERABILIDADE
Os terroristas frequentaram escolas de pilotagem nos EUA. Outros suspeitos, interrogados recentemente pelo FBI, estavam preparando a carteira especial para dirigir caminhões com carga tóxica ou explosiva. Aqui é fácil estudar, circular, reunir-se sem ter de esconder a diferença. Osama bin Laden - se é, como parece, o mandatário do ataque- deve achar que os ocidentais, e sobretudo os americanos, são perfeitos panacas, pois veneram logo as liberdades, que, de fato, lhe facilitaram o trabalho.
Infelizmente, as coisas podem mudar. O cotidiano americano está sendo transformado pelas necessidades do combate contra a infiltração terrorista. O embarque, nos aeroportos, está cada vez mais lento. Há filas para atravessar as pontes que vão para Manhattan, pois os veículos são revistados. Há blitze na proximidade dos reservatórios de água. Se houver novos atentados, chegará algum tipo de legislação de exceção. O uso de critérios étnicos no trabalho da polícia será tolerado, se não autorizado. Será o primeiro verdadeiro sucesso dos terroristas: levar os EUA, a Europa e, aos poucos, todo o Ocidente a comprometer as liberdades, que são a melhor parte de nossa cultura.
quinta-feira, 27 de setembro de 2001
Guerra contra quem?
Numa cidade perto de Lahore, no Paquistão, Ghulam Hussein e Rashida acabam de escolher um nome para seu filho: Osama, como Bin Laden. Explicam: "Não só o nome é curto e doce mas também simboliza a coragem e a ousadia." Muddassir Rizvi, jornalista do Pacific News Service, conta essa história num artigo (publicado por AlterNet.org) em que aprendemos que, no noroeste do Paquistão, outros casais se preparam para fazer a mesma escolha.
Aproveito a ocasião para recomendar a todos os pais a não nomear os filhos segundo seus entusiasmos políticos. Quando passa a embriaguez, a coisa fica pesada: na Itália do pós-guerra, havia pletora de Benitos que tentavam mudar de nome. Mesma coisa para os Adolfs na Alemanha.
A escolha desse tipo de nome é mais frequente entre os deserdados. Nesse caso, eles servem para que a criança tenha uma ascendência socialmente reconhecível. Chamado Osama, meu filho deixará de ser ninguém e filho de ninguéns para tornar-se afilhado de uma figura pretensamente heróica. O mundo não me respeita, mas chamarei um herói à cabeceira do berço de meu rebento.
Por que logo Osama Bin Laden? No mesmo artigo de Muddassir Rizvi, um ex-funcionário do governo paquistanês explica a popularidade de Bin Laden pelo sentimento antiamericano que é vivo nessa parte do mundo. Ele diz: "A América não vê as pessoas que são mortas a cada dia na Palestina, eles não vêem o sofrimento do povo do Iraque, não se importam com o assassinato das pessoas na Argélia pelas mãos das forças do governo. Isso porque eles não se importam com os muçulmanos".
Há, nessas palavras, um tom que aparece regularmente nas críticas aos EUA que circulam pelo mundo islâmico. A acusação não consegue esconder uma espécie de decepção amorosa: "Eles não se importam conosco". A raiva parece proceder de uma lamentação -como se os EUA e o Ocidente tivessem abandonado seus amigos e esquecido alguma promessa. De onde viria esse sentimento?
No processo de descolonização desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo islâmico parece nunca ter conseguido (ou quase) produzir uma democracia.
Isso não constituiria um problema se a exploração colonial não tivesse difundido (inevitavelmente e a contragosto) as duas modalidades principais da esperança ocidental: o sonho liberal e o sonho socialista, exigências de um pouco de igualdade e de justiça. Ora, na descolonização, ambos os sonhos foram frustrados. A esperança liberal não conseguiu impor democracias políticas. E a esperança de democracia social ruiu junto com o bloco socialista.
Quase todos os países islâmicos, uma vez descolonizados, voltaram a formas tradicionais de dominação. Para que isso fosse possível, seria melhor que as esperanças sociais e políticas veiculadas pelo Ocidente fossem esquecidas -seria melhor, digo, para as elites no poder. Aos que não têm nada e precisam viver de sonhos (os deserdados) é proposta, então, a antiga esperança religiosa.
As elites da descolonização nos países islâmicos perseguiram brutalmente qualquer agitação popular ameaçadora. Basta evocar, por exemplo, o massacre de Hama, na Síria, em 1982, em que o regime de Hafez al-Assad bombardeou e destruiu um bairro inteiro, matando, segundo a Anistia Internacional, de 15 mil a 30 mil pessoas. Ou, ainda, Setembro Negro, na Jordânia, em 1970.
Massas de deserdados foram condenadas à insignificância por elites vorazes. Privados da esperança liberal e da esperança socialista, muitos se tornaram fundamentalistas. Assim, na luta contra os ocidentais, encontraram algum remédio à sua humilhação. Pois é sempre mais tolerável ser humilhado por um inimigo externo do que realizar que somos insignificantes para nossa própria comunidade.
É óbvio que o Ocidente foi cúmplice da exclusão dessas massas, às vezes omisso e, outras vezes, tão opressor quanto as elites que foram por ele sustentadas e promovidas. Mas o antiocidentalismo foi e segue sendo sobretudo um instrumento da repressão, pois ele encoraja as massas a recusar alguns valores ditos ocidentais (liberdade, justiça etc.) que seriam perigosos para as elites dominantes.
Graças aos americanos e aos ocidentais, o alvo do ódio fica fora de casa. E as elites nacionais são protegidas. É o caso de se perguntar se os regimes que apóiam os EUA e hospedam, por exemplo, suas tropas não fazem isso de propósito para que essa presença indigne sua população. Pois o ódio do Ocidente leva o povo a desprezar um ideário liberal que poderia inspirar vontades de democracia política.
A guerra que está começando não é entre o Ocidente e o islã. Ela parece ser travada entre o Ocidente e os deserdados do islã, que foram acuados ao fundamentalismo como última esperança possível.
Mas a única saída verdadeira seria a transformação dos países islâmicos em democracias políticas e sociais. Alguns dizem que essa mudança seria incompatível com o islã. Até agora, está apenas provado que ela não agrada às elites de quase todos esses países.
Aproveito a ocasião para recomendar a todos os pais a não nomear os filhos segundo seus entusiasmos políticos. Quando passa a embriaguez, a coisa fica pesada: na Itália do pós-guerra, havia pletora de Benitos que tentavam mudar de nome. Mesma coisa para os Adolfs na Alemanha.
A escolha desse tipo de nome é mais frequente entre os deserdados. Nesse caso, eles servem para que a criança tenha uma ascendência socialmente reconhecível. Chamado Osama, meu filho deixará de ser ninguém e filho de ninguéns para tornar-se afilhado de uma figura pretensamente heróica. O mundo não me respeita, mas chamarei um herói à cabeceira do berço de meu rebento.
Por que logo Osama Bin Laden? No mesmo artigo de Muddassir Rizvi, um ex-funcionário do governo paquistanês explica a popularidade de Bin Laden pelo sentimento antiamericano que é vivo nessa parte do mundo. Ele diz: "A América não vê as pessoas que são mortas a cada dia na Palestina, eles não vêem o sofrimento do povo do Iraque, não se importam com o assassinato das pessoas na Argélia pelas mãos das forças do governo. Isso porque eles não se importam com os muçulmanos".
Há, nessas palavras, um tom que aparece regularmente nas críticas aos EUA que circulam pelo mundo islâmico. A acusação não consegue esconder uma espécie de decepção amorosa: "Eles não se importam conosco". A raiva parece proceder de uma lamentação -como se os EUA e o Ocidente tivessem abandonado seus amigos e esquecido alguma promessa. De onde viria esse sentimento?
No processo de descolonização desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo islâmico parece nunca ter conseguido (ou quase) produzir uma democracia.
Isso não constituiria um problema se a exploração colonial não tivesse difundido (inevitavelmente e a contragosto) as duas modalidades principais da esperança ocidental: o sonho liberal e o sonho socialista, exigências de um pouco de igualdade e de justiça. Ora, na descolonização, ambos os sonhos foram frustrados. A esperança liberal não conseguiu impor democracias políticas. E a esperança de democracia social ruiu junto com o bloco socialista.
Quase todos os países islâmicos, uma vez descolonizados, voltaram a formas tradicionais de dominação. Para que isso fosse possível, seria melhor que as esperanças sociais e políticas veiculadas pelo Ocidente fossem esquecidas -seria melhor, digo, para as elites no poder. Aos que não têm nada e precisam viver de sonhos (os deserdados) é proposta, então, a antiga esperança religiosa.
As elites da descolonização nos países islâmicos perseguiram brutalmente qualquer agitação popular ameaçadora. Basta evocar, por exemplo, o massacre de Hama, na Síria, em 1982, em que o regime de Hafez al-Assad bombardeou e destruiu um bairro inteiro, matando, segundo a Anistia Internacional, de 15 mil a 30 mil pessoas. Ou, ainda, Setembro Negro, na Jordânia, em 1970.
Massas de deserdados foram condenadas à insignificância por elites vorazes. Privados da esperança liberal e da esperança socialista, muitos se tornaram fundamentalistas. Assim, na luta contra os ocidentais, encontraram algum remédio à sua humilhação. Pois é sempre mais tolerável ser humilhado por um inimigo externo do que realizar que somos insignificantes para nossa própria comunidade.
É óbvio que o Ocidente foi cúmplice da exclusão dessas massas, às vezes omisso e, outras vezes, tão opressor quanto as elites que foram por ele sustentadas e promovidas. Mas o antiocidentalismo foi e segue sendo sobretudo um instrumento da repressão, pois ele encoraja as massas a recusar alguns valores ditos ocidentais (liberdade, justiça etc.) que seriam perigosos para as elites dominantes.
Graças aos americanos e aos ocidentais, o alvo do ódio fica fora de casa. E as elites nacionais são protegidas. É o caso de se perguntar se os regimes que apóiam os EUA e hospedam, por exemplo, suas tropas não fazem isso de propósito para que essa presença indigne sua população. Pois o ódio do Ocidente leva o povo a desprezar um ideário liberal que poderia inspirar vontades de democracia política.
A guerra que está começando não é entre o Ocidente e o islã. Ela parece ser travada entre o Ocidente e os deserdados do islã, que foram acuados ao fundamentalismo como última esperança possível.
Mas a única saída verdadeira seria a transformação dos países islâmicos em democracias políticas e sociais. Alguns dizem que essa mudança seria incompatível com o islã. Até agora, está apenas provado que ela não agrada às elites de quase todos esses países.
quinta-feira, 20 de setembro de 2001
De onde vêm os terroristas
Segunda-feira, em Brookline, Massachusetts. Estou sentado num café numa Harvard Street cheia de bandeiras. Na calçada oposta, vejo avançar, fendendo os passantes, uma mulher muçulmana, de véu até os pés -um xador, que deixa o rosto exposto.
Alguns dão mostra de indiferença. Véu? Qual véu? Olham para o chão, escrutam o horizonte ou envolvem-se numa conversa animada com quem estiver a seu lado. Isso com naturalidade excessiva, afetada. Outros tentam captar o olhar da mulher. Não conseguem, mas, mesmo assim, destinam-lhe amplos sorrisos. Todos, em suma, embora de maneira diferente, parecem decididos a mostrar que, nessa cidade progressista, não confundimos islã com terror.
Imagino que, em outros lugares, ela acabará encontrando um gesto hostil. Alguém receberá o passeio dessa mulher, seis dias depois do ataque terrorista contra os EUA, como uma provocação.
Ao atravessar a rua, ela aparece de frente para mim. Descubro que sua mão esquerda está fechada com força ao redor da mão de um filho de oito ou nove anos. O moleque acompanha-a numa mistura de obediência com revolta. Olha para o chão e estica o braço, mantendo-se meio metro atrás da mãe. Quando eles passam na minha frente, o menino arrasta os passos. A mãe puxa seu braço, apostrofando-o numa língua que não entendo. Parece-me reconhecer um nome: Ahmed. O menino, envergonhado, responde sem sotaque: "OK, just don't scream, please" (tá bem, só não grite, por favor). Fico com a impressão de que a mãe não entende inglês.
Dificilmente Ahmed esquecerá esse passeio, em que acompanhou o desfile da mãe como símbolo e depositária das tradições de seu grupo étnico e religioso. Não esquecerá o paradoxo pelo qual uma mulher coberta até os pés chamava e desafiava a atenção nas ruas de um mundo em que, de regra, é tirando o véu que a gente conquista o olhar dos outros.
Se ficar nos EUA alguns anos, Ahmed procurará homogeneizar-se, identificar-se com uma turma qualquer: mesmas músicas, mesmas roupas, mesmos papos, talvez até mesma cerveja proibida (para ele duplamente).
Como Ahmed lidará com as mulheres? Extasiado pelos sites pornográficos na internet e olhando de boca aberta alguma Britney Spears de barriga de fora, ele gostará muito das moças desarrochadas do país em que ele tenta integrar-se. Mas sem nunca esquecer que a sua mãe não é mulher de recorrer a essa sedução escancarada -certamente, não foi assim que ela conquistou o amor e o desejo do pai. Quem sabe Ahmed se lembre justamente do dia em que a mãe fez de seu véu uma bandeira silenciosa. E sinta a contradição passada entre a vergonha infantil por não se confundir na massa e o orgulho de ver sua mãe triunfante, intocável.
Ahmed será seduzido por mulheres ocidentais que lhe parecerão sempre mais fáceis e oferecidas do que elas são. Aliás, ele terá dificuldade para entender que elas possam recusar o desejo que, a seu ver, elas estimulam tanto. Gostará delas justamente por elas parecerem tão acessíveis e tão diferentes da mãe.
Ao mesmo tempo, ele terá desprezo por essas mulheres sedutoras. Será o jeito mais fácil para, embora seduzido, continuar venerando a mãe e a tradição da qual ela se fez porta-estandarte.
Escutando, por exemplo, jovens de origem muçulmana na França, é fácil constatar que, na comparação com a mãe, a mulher ocidental é sempre, em última instância, considerada como a vadia. Leva, no mínimo, três gerações de esposas "de fora" para que o espectro velado da mãe ou da avó deixe de ser o paradigma da honra.
Em suma, fraqueza diante da sedução e desprezo pela sedução: eis uma contradição que promete uma séria dificuldade de integração. Pois a modernidade ocidental é fundada na sedução. Todas as relações (não só amorosas) são regidas pela aspiração e pela necessidade de que os outros gostem de nós. Seduzir é a regra da vida social e o caminho do sucesso para pessoas e para produtos.
Precisará de pouco para que jovens com uma história parecida com a de Ahmed vejam o mundo ocidental inteiro como uma gigantesca tentação carnal, um universo pecaminoso por essência, o "grande Satã".
Os terroristas que atacaram o World Trade Center e o Pentágono viveram tempos longos no Ocidente. Frequentaram universidades e escolas de pilotagem. Não eram pastores descidos das montanhas. Os comentadores estranham: como é possível? Moraram entre nós tanto tempo e puderam fazer isso? Ou seja, será que nossa sedução não funcionou? Justamente: ela funcionou demais. A ponto de eles terem decidido destruir o objeto de seus desejos. A interpretação política de seus atos será sempre insuficiente: as torres gêmeas, para eles, eram símbolos não tanto de poder quanto de tentação.
Sua "guerra santa" foi isto: mataram os infiéis nos quais receavam se transformar. E mataram a si mesmos para nunca mais serem seduzidos.
Agora, se o deus que eles foram encontrar entende alguma coisa de inconsciente, eles, uma vez em sua presença, devem estar encarando uma séria decepção.
Alguns dão mostra de indiferença. Véu? Qual véu? Olham para o chão, escrutam o horizonte ou envolvem-se numa conversa animada com quem estiver a seu lado. Isso com naturalidade excessiva, afetada. Outros tentam captar o olhar da mulher. Não conseguem, mas, mesmo assim, destinam-lhe amplos sorrisos. Todos, em suma, embora de maneira diferente, parecem decididos a mostrar que, nessa cidade progressista, não confundimos islã com terror.
Imagino que, em outros lugares, ela acabará encontrando um gesto hostil. Alguém receberá o passeio dessa mulher, seis dias depois do ataque terrorista contra os EUA, como uma provocação.
Ao atravessar a rua, ela aparece de frente para mim. Descubro que sua mão esquerda está fechada com força ao redor da mão de um filho de oito ou nove anos. O moleque acompanha-a numa mistura de obediência com revolta. Olha para o chão e estica o braço, mantendo-se meio metro atrás da mãe. Quando eles passam na minha frente, o menino arrasta os passos. A mãe puxa seu braço, apostrofando-o numa língua que não entendo. Parece-me reconhecer um nome: Ahmed. O menino, envergonhado, responde sem sotaque: "OK, just don't scream, please" (tá bem, só não grite, por favor). Fico com a impressão de que a mãe não entende inglês.
Dificilmente Ahmed esquecerá esse passeio, em que acompanhou o desfile da mãe como símbolo e depositária das tradições de seu grupo étnico e religioso. Não esquecerá o paradoxo pelo qual uma mulher coberta até os pés chamava e desafiava a atenção nas ruas de um mundo em que, de regra, é tirando o véu que a gente conquista o olhar dos outros.
Se ficar nos EUA alguns anos, Ahmed procurará homogeneizar-se, identificar-se com uma turma qualquer: mesmas músicas, mesmas roupas, mesmos papos, talvez até mesma cerveja proibida (para ele duplamente).
Como Ahmed lidará com as mulheres? Extasiado pelos sites pornográficos na internet e olhando de boca aberta alguma Britney Spears de barriga de fora, ele gostará muito das moças desarrochadas do país em que ele tenta integrar-se. Mas sem nunca esquecer que a sua mãe não é mulher de recorrer a essa sedução escancarada -certamente, não foi assim que ela conquistou o amor e o desejo do pai. Quem sabe Ahmed se lembre justamente do dia em que a mãe fez de seu véu uma bandeira silenciosa. E sinta a contradição passada entre a vergonha infantil por não se confundir na massa e o orgulho de ver sua mãe triunfante, intocável.
Ahmed será seduzido por mulheres ocidentais que lhe parecerão sempre mais fáceis e oferecidas do que elas são. Aliás, ele terá dificuldade para entender que elas possam recusar o desejo que, a seu ver, elas estimulam tanto. Gostará delas justamente por elas parecerem tão acessíveis e tão diferentes da mãe.
Ao mesmo tempo, ele terá desprezo por essas mulheres sedutoras. Será o jeito mais fácil para, embora seduzido, continuar venerando a mãe e a tradição da qual ela se fez porta-estandarte.
Escutando, por exemplo, jovens de origem muçulmana na França, é fácil constatar que, na comparação com a mãe, a mulher ocidental é sempre, em última instância, considerada como a vadia. Leva, no mínimo, três gerações de esposas "de fora" para que o espectro velado da mãe ou da avó deixe de ser o paradigma da honra.
Em suma, fraqueza diante da sedução e desprezo pela sedução: eis uma contradição que promete uma séria dificuldade de integração. Pois a modernidade ocidental é fundada na sedução. Todas as relações (não só amorosas) são regidas pela aspiração e pela necessidade de que os outros gostem de nós. Seduzir é a regra da vida social e o caminho do sucesso para pessoas e para produtos.
Precisará de pouco para que jovens com uma história parecida com a de Ahmed vejam o mundo ocidental inteiro como uma gigantesca tentação carnal, um universo pecaminoso por essência, o "grande Satã".
Os terroristas que atacaram o World Trade Center e o Pentágono viveram tempos longos no Ocidente. Frequentaram universidades e escolas de pilotagem. Não eram pastores descidos das montanhas. Os comentadores estranham: como é possível? Moraram entre nós tanto tempo e puderam fazer isso? Ou seja, será que nossa sedução não funcionou? Justamente: ela funcionou demais. A ponto de eles terem decidido destruir o objeto de seus desejos. A interpretação política de seus atos será sempre insuficiente: as torres gêmeas, para eles, eram símbolos não tanto de poder quanto de tentação.
Sua "guerra santa" foi isto: mataram os infiéis nos quais receavam se transformar. E mataram a si mesmos para nunca mais serem seduzidos.
Agora, se o deus que eles foram encontrar entende alguma coisa de inconsciente, eles, uma vez em sua presença, devem estar encarando uma séria decepção.
domingo, 16 de setembro de 2001
PATRIOTISMO
Há complacência com o terror no sentimento de que os cidadãos do país mereciam punição
A face oculta do antiamericanismo
Os terroristas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
Qual era a expectativa dos terroristas que, na terça-feira passada, surgiram no céu americano e nas telas de TV do mundo inteiro? Qual poderia ser o alvo da operação? Certo, queriam destruir. Mas a morte e a demolição eram apenas um meio. O ganho que eles procuravam era simbólico: o ataque aconteceu no território americano (na capital e em Nova York, a cidade-vitrine do Ocidente) e contra edifícios que fazem parte do imaginário mundial: as torres gêmeas e o Pentágono. O show era para quem?
Para produzir o júbilo de seus adeptos, não precisava de tanto. Agora, se o público alvo eram os próprios americanos (na esperança de enfraquecê-los), o fracasso foi total. Duvido que os terroristas tivessem a ingenuidade de pensar que seu gesto encontraria os favores de alguma oposição interna americana ou que a tragédia semearia a discórdia. Mas, caso contassem com isso, a decepção deve ter sido completa. O ataque parece ter aplainado as arestas da sociedade americana.
Os dois grandes partidos -Democrata e Republicano - entraram em regime de cooperação bipartidária. O Partido Libertário, em seu comunicado de 12 de setembro, execra o ataque terrorista, encoraja solidariedade, doações de sangue e de dinheiro para as vítimas e para a reconstrução.
As pessoas próximas do movimento das milícias, com todo seu ódio pelo governo federal, são inevitavelmente nacionalistas e patriotas. Que simpatizantes desse movimento, como Timothy McVeigh e Terry Nichols, tenham sido capazes do atentado de Oklahoma City não implica nenhuma cumplicidade possível com o ataque de terça-feira.
As milícias têm devoção pela defesa do território - quer seja a nação ou o terreno ao redor de casa, ambos são santuários.
No site The Patriot, há uma sondagem sobre a questão: os EUA devem ou não responder militarmente à agressão? As respostas positivas superam de longe a média nacional.
As margens do leque político dos EUA são quase todas manifestações de um individualismo radical inspirado pelos valores fundamentais da Revolução e da Constituição americanas. É difícil imaginar posições mais antinômicas a um fundamentalismo tradicionalista.
Os terroristas islâmicos poderiam esperar ter mais chances com seus supostos correligionários. É concebível que a Nação do Islã, uma margem extrema, muçulmana e anti-semita do movimento negro, visse no fundamentalismo islâmico um aliado internacional. Aliás, a escolha do Islã como catalisador de uma organização negra foi, desde o começo, uma provocação ao "establishment" ocidental e americano.
Mas os dias de Malcolm X e da conversão de Cassius Clay em Mohammed Ali passaram há tempo: o movimento está em forte regressão. De qualquer forma, a aliança com o fundamentalismo islâmico no exterior, se é que existiu, não tem como se manter quando o país é agredido.
Louis Farrakhan, chefe atual da Nação do Islã, anunciou um pronunciamento sobre o ataque ao país para o dia 16 de setembro, na mesquita Maryam, em Chicago, convidando "todos os cidadãos de Chicago, seja qual for sua raça, sua fé ou sua cor". O caráter excepcionalmente aberto desse convite manifesta a adesão ao clima de união nacional. Já está dito que a declaração será sobre "a horrenda agressão contra os Estados Unidos da América".
Enfim, mais importante: a escolha do World Trade Center como alvo transformou esse centro financeiro num lugar de sofrimento. A figura impessoal (e eventualmente pouco simpática) do homem de negócios é substituída hoje pela humanidade dos corpos desmembrados.
De repente, está colmatada a fratura, que certamente divide a América contemporânea, entre Wall Street e o "heartland", o coração da terra -o país dos americanos médios, trabalhadores rurais e manuais. "O bombeiro salvando os homens de Wall Street" poderia ser uma capa de Norman Rockwell que, descrevendo o heroísmo do resgate em curso, simbolizaria o reencontro solidário de americanos que talvez estivessem afastados indevidamente. Isso, sob a bandeira comum: nos últimos três dias a venda de bandeiras nos EUA explodiu. Na frente das casas dos subúrbios, assim como nas janelas dos apartamentos urbanos, os americanos desdobram bandeiras. É uma maneira de dizer a confiança na persistência do país.
Há outros efeitos paradoxais da destruição -certamente não desejados pelos terroristas. Considere-se, por exemplo, a geração atual de adolescentes americanos, para quem o Vietnã é um filme de Kubrick, a Guerra do Golfo é um videogame e o mundo é tutelado pelo letreiro dos índices Dow Jones e Nasdaq, ao som repetitivo da música tecno. Esses jovens são acusados de serem gananciosos e sem ideais. Na terça-feira passada, eles foram acordados brutalmente: terão de inventar uma maneira nova de dar sentido a suas vidas, uma maneira em que escolher valores é relevante.
Algo parecido acontece com os adultos. Na internet, num bate-papo de psicólogos sobre o ataque, alguém sugere: "É ótimo que as vítimas e suas familiares disponham de aconselhamento. Mas não devemos facilitar o luto de todos. Não devemos querer rapidamente voltar ao bem-estar. Devemos nos lembrar". Todos concordam. Fazia tempo que, numa discussão americana, não encontrava-se um consenso contra a exigência imediata de bem-estar.
Nesse quadro, é estranho ouvir ou ler comentários sobre uma suposta nova fragilidade dos americanos que não se veriam mais como invencíveis. Claro, o território foi violado, mas, longe de sentirem-se diminuídos ou humilhados por isso, os americanos parecem sentir-se enfim justificados. O ataque autoriza uma adesão ao interesse e aos valores nacionais sem reservas e sem pudores.
Surge uma nova boa consciência americana, que aparece, por exemplo, na intolerância declarada para com o antiamericanismo. Os americanos não são mais masoquistas. O presidente Bush assinalou esse estado de espírito ao anunciar que os pêsames não serão suficientes: daqui por diante quem não está com a América, está contra ela. Lance Morrow, num artigo na Time.com, escreveu: "Quem não odeia os que fizeram essas coisas e as pessoas que os incitam e festejam é filosófico demais para ser uma companhia decente". A palavra "filosófico" é uma clara alusão à moda antiamericana que se tornou quase marca obrigatória de (pretensa) inteligência crítica.
Não é difícil entender a razão dessa mudança de tom. Voltemos a perguntar quem é o público alvo do show de horror montado pelos terroristas. Não são os adeptos e não são os americanos. Mas os assassinos suicidas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos mal escondidos, no estilo: "Que pena, mas estavam pedindo, não é?"
É razoável pensar que o público estrategicamente mais importante para os terroristas sejam todos aqueles que, embora lamentando a perda das vidas, se felicitariam de ver atingidos os símbolos da potência americana. Nestes dias, circulam na internet listas dos "malfeitos" dos EUA, como para lembrar boas razões para ser antiamericano. Também circulam listas de tributo aos EUA, lembrando os empréstimos e as doações de dinheiro, sangue e energia que os EUA fizeram pelo mundo.
Estava comparando as listas, quando me ocorreu que, em grande parte, o antiamericanismo ocidental talvez seja fruto de uma divisão que está dentro de nós.
Foi assim. Uma amiga americana me telefonou aos prantos no dia 13. Ela acabava de conversar com uma amiga comum brasileira, a qual, preocupada, ligara para ter notícias. A amiga americana percebeu que, atrás dos pêsames, havia uma espécie de complacência moralizante com o terror, tipo: chegou a justa punição do materialismo sem coração. A amiga americana, embora capaz de crítica de seu próprio país, desta vez não aguentou: "Materialismo de quem?", indignou-se. "Cada vez que você vem para Nova York, usa a cidade como um shopping center ou um parque de diversões. E na hora de chorar por Nova York, me faz a moral?" A amiga americana tinha razão. Ela descobria (e me fazia descobrir) assim um mecanismo crucial do antiamericanismo ocidental banal.
Os EUA nos aparecem como o sonho realizado da modernidade; graças a isso, podemos lhes atribuir todas as caraterísticas de nossa cultura. Naturalmente, atribuímos aos EUA as caraterísticas que menos gostamos de reconhecer em nós mesmos. Assim, por exemplo, não sei se os americanos são mais consumistas do que nós. Provavelmente não. Mas os EUA são designados por nós como pátria do consumismo. Eles são sem dúvida a pátria de nosso consumismo. Graças a esse artifício, podemos frequentá-los dando livre curso a nossos desejos de consumir sem considerar que esses desejos sejam nossos. Ao contrário, pretendemos que seja um mal da cultura americana.
Quando algo em nossa cultura nos envergonha, uma boa saída consiste em "descobrir" que esse algo é especificamente americano. O antiamericanismo, em suma, alivia nossas culpas. Melhor, suprime-as, pois elas, de repente, são sempre só americanas. Explica-se assim um mistério sociológico. Na última década, os EUA tornaram-se o objeto da maior vontade migratória e da maior adesão cultural da história da modernidade. A adoção de traços do estilo de vida americano constitui quase uma tentativa de migração por mimetismo. Como é possível que eles sejam, ao mesmo tempo, o objeto de sentimentos suficientemente hostis para que, nas circunstâncias de hoje, apareça, no canto dos lábios de alguns, o ricto de um "bem feito"?
Não seria mal se conseguíssemos interpretar e resolver o antiamericanismo. Isso permitiria que enxergássemos os EUA como um país real e não como um lugar de nossa psique. Também, num momento em que um conflito entre culturas ameaça o novo século, seria útil que pudéssemos encarar o que somos -parando de atribuir ao Tio Sam o que menos gostamos em nós mesmos.
A face oculta do antiamericanismo
Os terroristas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
Qual era a expectativa dos terroristas que, na terça-feira passada, surgiram no céu americano e nas telas de TV do mundo inteiro? Qual poderia ser o alvo da operação? Certo, queriam destruir. Mas a morte e a demolição eram apenas um meio. O ganho que eles procuravam era simbólico: o ataque aconteceu no território americano (na capital e em Nova York, a cidade-vitrine do Ocidente) e contra edifícios que fazem parte do imaginário mundial: as torres gêmeas e o Pentágono. O show era para quem?
Para produzir o júbilo de seus adeptos, não precisava de tanto. Agora, se o público alvo eram os próprios americanos (na esperança de enfraquecê-los), o fracasso foi total. Duvido que os terroristas tivessem a ingenuidade de pensar que seu gesto encontraria os favores de alguma oposição interna americana ou que a tragédia semearia a discórdia. Mas, caso contassem com isso, a decepção deve ter sido completa. O ataque parece ter aplainado as arestas da sociedade americana.
Os dois grandes partidos -Democrata e Republicano - entraram em regime de cooperação bipartidária. O Partido Libertário, em seu comunicado de 12 de setembro, execra o ataque terrorista, encoraja solidariedade, doações de sangue e de dinheiro para as vítimas e para a reconstrução.
As pessoas próximas do movimento das milícias, com todo seu ódio pelo governo federal, são inevitavelmente nacionalistas e patriotas. Que simpatizantes desse movimento, como Timothy McVeigh e Terry Nichols, tenham sido capazes do atentado de Oklahoma City não implica nenhuma cumplicidade possível com o ataque de terça-feira.
As milícias têm devoção pela defesa do território - quer seja a nação ou o terreno ao redor de casa, ambos são santuários.
No site The Patriot, há uma sondagem sobre a questão: os EUA devem ou não responder militarmente à agressão? As respostas positivas superam de longe a média nacional.
As margens do leque político dos EUA são quase todas manifestações de um individualismo radical inspirado pelos valores fundamentais da Revolução e da Constituição americanas. É difícil imaginar posições mais antinômicas a um fundamentalismo tradicionalista.
Os terroristas islâmicos poderiam esperar ter mais chances com seus supostos correligionários. É concebível que a Nação do Islã, uma margem extrema, muçulmana e anti-semita do movimento negro, visse no fundamentalismo islâmico um aliado internacional. Aliás, a escolha do Islã como catalisador de uma organização negra foi, desde o começo, uma provocação ao "establishment" ocidental e americano.
Mas os dias de Malcolm X e da conversão de Cassius Clay em Mohammed Ali passaram há tempo: o movimento está em forte regressão. De qualquer forma, a aliança com o fundamentalismo islâmico no exterior, se é que existiu, não tem como se manter quando o país é agredido.
Louis Farrakhan, chefe atual da Nação do Islã, anunciou um pronunciamento sobre o ataque ao país para o dia 16 de setembro, na mesquita Maryam, em Chicago, convidando "todos os cidadãos de Chicago, seja qual for sua raça, sua fé ou sua cor". O caráter excepcionalmente aberto desse convite manifesta a adesão ao clima de união nacional. Já está dito que a declaração será sobre "a horrenda agressão contra os Estados Unidos da América".
Enfim, mais importante: a escolha do World Trade Center como alvo transformou esse centro financeiro num lugar de sofrimento. A figura impessoal (e eventualmente pouco simpática) do homem de negócios é substituída hoje pela humanidade dos corpos desmembrados.
De repente, está colmatada a fratura, que certamente divide a América contemporânea, entre Wall Street e o "heartland", o coração da terra -o país dos americanos médios, trabalhadores rurais e manuais. "O bombeiro salvando os homens de Wall Street" poderia ser uma capa de Norman Rockwell que, descrevendo o heroísmo do resgate em curso, simbolizaria o reencontro solidário de americanos que talvez estivessem afastados indevidamente. Isso, sob a bandeira comum: nos últimos três dias a venda de bandeiras nos EUA explodiu. Na frente das casas dos subúrbios, assim como nas janelas dos apartamentos urbanos, os americanos desdobram bandeiras. É uma maneira de dizer a confiança na persistência do país.
Há outros efeitos paradoxais da destruição -certamente não desejados pelos terroristas. Considere-se, por exemplo, a geração atual de adolescentes americanos, para quem o Vietnã é um filme de Kubrick, a Guerra do Golfo é um videogame e o mundo é tutelado pelo letreiro dos índices Dow Jones e Nasdaq, ao som repetitivo da música tecno. Esses jovens são acusados de serem gananciosos e sem ideais. Na terça-feira passada, eles foram acordados brutalmente: terão de inventar uma maneira nova de dar sentido a suas vidas, uma maneira em que escolher valores é relevante.
Algo parecido acontece com os adultos. Na internet, num bate-papo de psicólogos sobre o ataque, alguém sugere: "É ótimo que as vítimas e suas familiares disponham de aconselhamento. Mas não devemos facilitar o luto de todos. Não devemos querer rapidamente voltar ao bem-estar. Devemos nos lembrar". Todos concordam. Fazia tempo que, numa discussão americana, não encontrava-se um consenso contra a exigência imediata de bem-estar.
Nesse quadro, é estranho ouvir ou ler comentários sobre uma suposta nova fragilidade dos americanos que não se veriam mais como invencíveis. Claro, o território foi violado, mas, longe de sentirem-se diminuídos ou humilhados por isso, os americanos parecem sentir-se enfim justificados. O ataque autoriza uma adesão ao interesse e aos valores nacionais sem reservas e sem pudores.
Surge uma nova boa consciência americana, que aparece, por exemplo, na intolerância declarada para com o antiamericanismo. Os americanos não são mais masoquistas. O presidente Bush assinalou esse estado de espírito ao anunciar que os pêsames não serão suficientes: daqui por diante quem não está com a América, está contra ela. Lance Morrow, num artigo na Time.com, escreveu: "Quem não odeia os que fizeram essas coisas e as pessoas que os incitam e festejam é filosófico demais para ser uma companhia decente". A palavra "filosófico" é uma clara alusão à moda antiamericana que se tornou quase marca obrigatória de (pretensa) inteligência crítica.
Não é difícil entender a razão dessa mudança de tom. Voltemos a perguntar quem é o público alvo do show de horror montado pelos terroristas. Não são os adeptos e não são os americanos. Mas os assassinos suicidas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos mal escondidos, no estilo: "Que pena, mas estavam pedindo, não é?"
É razoável pensar que o público estrategicamente mais importante para os terroristas sejam todos aqueles que, embora lamentando a perda das vidas, se felicitariam de ver atingidos os símbolos da potência americana. Nestes dias, circulam na internet listas dos "malfeitos" dos EUA, como para lembrar boas razões para ser antiamericano. Também circulam listas de tributo aos EUA, lembrando os empréstimos e as doações de dinheiro, sangue e energia que os EUA fizeram pelo mundo.
Estava comparando as listas, quando me ocorreu que, em grande parte, o antiamericanismo ocidental talvez seja fruto de uma divisão que está dentro de nós.
Foi assim. Uma amiga americana me telefonou aos prantos no dia 13. Ela acabava de conversar com uma amiga comum brasileira, a qual, preocupada, ligara para ter notícias. A amiga americana percebeu que, atrás dos pêsames, havia uma espécie de complacência moralizante com o terror, tipo: chegou a justa punição do materialismo sem coração. A amiga americana, embora capaz de crítica de seu próprio país, desta vez não aguentou: "Materialismo de quem?", indignou-se. "Cada vez que você vem para Nova York, usa a cidade como um shopping center ou um parque de diversões. E na hora de chorar por Nova York, me faz a moral?" A amiga americana tinha razão. Ela descobria (e me fazia descobrir) assim um mecanismo crucial do antiamericanismo ocidental banal.
Os EUA nos aparecem como o sonho realizado da modernidade; graças a isso, podemos lhes atribuir todas as caraterísticas de nossa cultura. Naturalmente, atribuímos aos EUA as caraterísticas que menos gostamos de reconhecer em nós mesmos. Assim, por exemplo, não sei se os americanos são mais consumistas do que nós. Provavelmente não. Mas os EUA são designados por nós como pátria do consumismo. Eles são sem dúvida a pátria de nosso consumismo. Graças a esse artifício, podemos frequentá-los dando livre curso a nossos desejos de consumir sem considerar que esses desejos sejam nossos. Ao contrário, pretendemos que seja um mal da cultura americana.
Quando algo em nossa cultura nos envergonha, uma boa saída consiste em "descobrir" que esse algo é especificamente americano. O antiamericanismo, em suma, alivia nossas culpas. Melhor, suprime-as, pois elas, de repente, são sempre só americanas. Explica-se assim um mistério sociológico. Na última década, os EUA tornaram-se o objeto da maior vontade migratória e da maior adesão cultural da história da modernidade. A adoção de traços do estilo de vida americano constitui quase uma tentativa de migração por mimetismo. Como é possível que eles sejam, ao mesmo tempo, o objeto de sentimentos suficientemente hostis para que, nas circunstâncias de hoje, apareça, no canto dos lábios de alguns, o ricto de um "bem feito"?
Não seria mal se conseguíssemos interpretar e resolver o antiamericanismo. Isso permitiria que enxergássemos os EUA como um país real e não como um lugar de nossa psique. Também, num momento em que um conflito entre culturas ameaça o novo século, seria útil que pudéssemos encarar o que somos -parando de atribuir ao Tio Sam o que menos gostamos em nós mesmos.
quinta-feira, 13 de setembro de 2001
Dificuldade em enxergar os inimigos
Premonição: esta coluna foi terminada segunda-feira, 10, antes do ataque terrorista contra o povo dos Estados Unidos.
Na semana passada, aconteceu, em Durban (África do Sul), a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo.
Parece-nos natural que todos os homens desejem um mundo respeitoso das diferenças de cada um, mesmo que nem sempre eles consigam conter suas próprias raivas racistas. Pois bem, enganamo-nos. A conferência lembrou que somos (infelizmente, nesse caso) menos globalizados do que parecemos: o sonho de um mundo sem discriminação é apenas uma característica de nossa cultura e da modernidade ocidental.
O encontro de Durban foi travado por dois assuntos.
Um deles foi a questão da escravatura e de como lidar com sua herança (indenizações, políticas compensatórias dos danos passados etc). Voltarei ao tema numa próxima coluna.
Mas o assunto que desvirtuou a conferência foi o conflito entre Israel e o povo palestino. Inesperadamente (porque a reunião não tinha a ambição nem os meios de propor mediações para o conflito), alguns representantes de países islâmicos acharam bom pedir que a política de Israel e o sionismo em geral fossem qualificados pela conferência como racistas.
Para entender o efeito produzido por esse pedido, imaginemos que haja uma reunião de todos os condôminos e inquilinos de um prédio para chegar a declarações comuns, graças às quais a convivência de todos se torne mais digna. Agora imaginemos que se constitua um Grupo do Terceiro Andar (o que já é um problema, por introduzir na reunião um interesse particular) e que esse grupo peça que certos inquilinos sejam definidos como imorais ou barulhentos e, portanto, que sejam expulsos. É claro que os moradores do terceiro andar não entenderam o espírito da reunião. Ou então (mais provável), eles não compartilham o projeto de constituir um condomínio de valores comuns. Só aproveitam a reunião para liquidar o pessoal que os incomoda.
O Grupo do Terceiro Andar é como a Organização dos Países Islâmicos: sua denominação já contradiz o espírito de uma conferência contra o racismo. Em geral, os grupos reunidos por um sistema fechado de crenças promovem a discriminação dos infiéis. É aceitável tratando-se de igrejas. Mas, tratando-se de nações ou supranações, esse funcionamento entra em conflito com nossos valores básicos, a começar pelas liberdades individuais. Aliás, o Brasil não pertence a uma Organização dos Países Cristãos. Também a Bahia ou o Caribe, não participam de uma Organização dos Países Umbandistas.
Em suma, há uma oposição de fundo entre a modernidade ocidental (que é nossa sensibilidade) e as nações que são comunidades tradicionais organizadas ao redor de uma confissão. Trata-se de uma fratura cultural, e seria ingênuo tratá-la como uma simples divergência política.
Uma comunidade tradicional não tem por que sonhar com o convívio harmonioso de indivíduos, de nações e de culturas diferentes. Para ela, os limites do humano coincidem com seus próprios limites. Escravizar, segregar, discriminar o infiel, o diferente ou o cara da tribo é uma atividade normal, se não meritória.
Nós, ao contrário, estabelecemos, entre os princípios formais de nossa cultura, a igualdade de todos, por diferentes que sejam, perante leis comuns. Logo, somos frustrados por nossa incapacidade de realizar os princípios nos quais acreditamos. Ou seja, acontece que discriminamos uma outra etnia, fé ou opinião, mas essa atitude (norma de uma cultura tradicional) é, para nós, uma preocupação ou mesmo um tormento, porque constitui uma distância inaceitável entre nossos princípios e nossos restos tribais -regurgitações de desprezo pelos outros e de sentimentos de nossa superioridade.
A conferência de Durban contra o racismo foi convocada para aprimorar os princípios formais de nossas democracias e para realizá-los concretamente.
O problema é que estamos tão preocupados em derrotar o racismo e a intolerância em nós mesmos que mal conseguimos enxergar e admitir a existência de culturas propriamente opostas à nossa. Reconhecê-las como tais nos parece ser uma forma do racismo que queremos evitar.
Exemplo: muitos comentadores levantaram a hipótese de que os EUA e outros países ocidentais teriam aproveitado a polêmica ao redor do sionismo para invalidar a conferência e assim evitar dolorosas conclusões sobre as eventuais indenizações aos países africanos que foram saqueados pelo comércio escravagista. A hipótese inversa é bem mais verossímil: os países islâmicos produziram essa polêmica para esvaziar de sentido, por exemplo, a proclamação da igualdade de direitos entre homens e mulheres ou a denúncia da discriminação das orientações sexuais, digamos, minoritárias. Agitando seu dedo em riste, os emissários do Irã evitaram discutir o destino reservado, em seu país, aos homossexuais. Os emissários do Taleban evitaram falar do destino das mulheres afegãs.
Na semana passada, aconteceu, em Durban (África do Sul), a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo.
Parece-nos natural que todos os homens desejem um mundo respeitoso das diferenças de cada um, mesmo que nem sempre eles consigam conter suas próprias raivas racistas. Pois bem, enganamo-nos. A conferência lembrou que somos (infelizmente, nesse caso) menos globalizados do que parecemos: o sonho de um mundo sem discriminação é apenas uma característica de nossa cultura e da modernidade ocidental.
O encontro de Durban foi travado por dois assuntos.
Um deles foi a questão da escravatura e de como lidar com sua herança (indenizações, políticas compensatórias dos danos passados etc). Voltarei ao tema numa próxima coluna.
Mas o assunto que desvirtuou a conferência foi o conflito entre Israel e o povo palestino. Inesperadamente (porque a reunião não tinha a ambição nem os meios de propor mediações para o conflito), alguns representantes de países islâmicos acharam bom pedir que a política de Israel e o sionismo em geral fossem qualificados pela conferência como racistas.
Para entender o efeito produzido por esse pedido, imaginemos que haja uma reunião de todos os condôminos e inquilinos de um prédio para chegar a declarações comuns, graças às quais a convivência de todos se torne mais digna. Agora imaginemos que se constitua um Grupo do Terceiro Andar (o que já é um problema, por introduzir na reunião um interesse particular) e que esse grupo peça que certos inquilinos sejam definidos como imorais ou barulhentos e, portanto, que sejam expulsos. É claro que os moradores do terceiro andar não entenderam o espírito da reunião. Ou então (mais provável), eles não compartilham o projeto de constituir um condomínio de valores comuns. Só aproveitam a reunião para liquidar o pessoal que os incomoda.
O Grupo do Terceiro Andar é como a Organização dos Países Islâmicos: sua denominação já contradiz o espírito de uma conferência contra o racismo. Em geral, os grupos reunidos por um sistema fechado de crenças promovem a discriminação dos infiéis. É aceitável tratando-se de igrejas. Mas, tratando-se de nações ou supranações, esse funcionamento entra em conflito com nossos valores básicos, a começar pelas liberdades individuais. Aliás, o Brasil não pertence a uma Organização dos Países Cristãos. Também a Bahia ou o Caribe, não participam de uma Organização dos Países Umbandistas.
Em suma, há uma oposição de fundo entre a modernidade ocidental (que é nossa sensibilidade) e as nações que são comunidades tradicionais organizadas ao redor de uma confissão. Trata-se de uma fratura cultural, e seria ingênuo tratá-la como uma simples divergência política.
Uma comunidade tradicional não tem por que sonhar com o convívio harmonioso de indivíduos, de nações e de culturas diferentes. Para ela, os limites do humano coincidem com seus próprios limites. Escravizar, segregar, discriminar o infiel, o diferente ou o cara da tribo é uma atividade normal, se não meritória.
Nós, ao contrário, estabelecemos, entre os princípios formais de nossa cultura, a igualdade de todos, por diferentes que sejam, perante leis comuns. Logo, somos frustrados por nossa incapacidade de realizar os princípios nos quais acreditamos. Ou seja, acontece que discriminamos uma outra etnia, fé ou opinião, mas essa atitude (norma de uma cultura tradicional) é, para nós, uma preocupação ou mesmo um tormento, porque constitui uma distância inaceitável entre nossos princípios e nossos restos tribais -regurgitações de desprezo pelos outros e de sentimentos de nossa superioridade.
A conferência de Durban contra o racismo foi convocada para aprimorar os princípios formais de nossas democracias e para realizá-los concretamente.
O problema é que estamos tão preocupados em derrotar o racismo e a intolerância em nós mesmos que mal conseguimos enxergar e admitir a existência de culturas propriamente opostas à nossa. Reconhecê-las como tais nos parece ser uma forma do racismo que queremos evitar.
Exemplo: muitos comentadores levantaram a hipótese de que os EUA e outros países ocidentais teriam aproveitado a polêmica ao redor do sionismo para invalidar a conferência e assim evitar dolorosas conclusões sobre as eventuais indenizações aos países africanos que foram saqueados pelo comércio escravagista. A hipótese inversa é bem mais verossímil: os países islâmicos produziram essa polêmica para esvaziar de sentido, por exemplo, a proclamação da igualdade de direitos entre homens e mulheres ou a denúncia da discriminação das orientações sexuais, digamos, minoritárias. Agitando seu dedo em riste, os emissários do Irã evitaram discutir o destino reservado, em seu país, aos homossexuais. Os emissários do Taleban evitaram falar do destino das mulheres afegãs.
quarta-feira, 12 de setembro de 2001
Atentados podem recriar a unidade perdida dos EUA
Reuters | Uma bandeira dos EUA permanece intacta em meio aos escombros do World Trade Center, depois dos atentados terroristas ocorridos ontem pela manhã, em Nova York |
País precisava encontrar um novo adversário para se redefinir
Ataques obrigam o planeta a se dividir novamente em dois blocos
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
Houve só um momento, na história americana, comparável ao ataque terrorista que começou (e espera-se que tenha acabado) na manhã de ontem. Foi Pearl Harbor. Sabemos no que deu.
Forçou o ingresso (que já era inevitável) dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Solidificou a coesão nacional. Identificou os norte-americanos com seu governo -mesmo aqueles que não tinham simpatia nenhuma pela Presidência de Roosevelt. Também dispôs todos aos sacrifícios necessários para encarar a guerra e ganhá-la. Submeteu à prova de fogo uma geração que ainda hoje é miticamente considerada, nos Estados Unidos, como a maior de todas. Enfim, produziu décadas de uma primazia norte-americana, econômica e cultural, que ainda dura.
Unidade nacional
O ataque de ontem tem toda a chance de desencadear os mesmos efeitos, a começar pela unidade nacional em torno de um governo que antes disso era desacreditado. Eu mesmo não saberia onde encontrar, hoje, a vontade de criticar o presidente Bush. Por um momento, até gostei de suas palavras.
Os norte-americanos passarão pela redescoberta de uma solidariedade talvez esquecida. Consegui falar com uma amiga, normalmente temerosa, de nariz empinado, no Upper East Side de Nova York: ela estava correndo para doar sangue.
Reencontrarão os valores americanos, atrás dos sonhos de sucesso material e de consumo que prevaleceram nas últimas décadas. Outro amigo, em Nova York, notou que Wall Street fechou e que, com a ruína das torres do World Trade Center, muitas operações financeiras serão atrapalhadas durante dias.
Argumenta que, se essa era uma das intenções dos terroristas, tanto pior para eles: o que importa é que durante dias os americanos nem olharão para os índices Dow Jones e Nasdaq. Talvez redescubram nessa ocasião, acrescenta, que o orgulho nacional tem outras razões além da prosperidade.
A América do começo do século 21 era, até hoje, um país ideologicamente hesitante. Para definir-se, faltava-lhe um adversário, pois o inimigo comunista havia sumido. Só sobrava, como glória nacional, justamente a riqueza -um ideal facilmente desprezível. O multiculturalismo, também, tornava problemático invocar os valores americanos.
Ora, graças aos atentados de ontem, essa fase pode ter acabado -sobretudo porque o novo inimigo não é um governo imperialista ou expansionista como a Alemanha nazista ou o Japão imperial. É um inimigo ideológico: uma concepção do mundo e da vida oposta aos fundamentos da cultura ocidental moderna.
Defensora da civilização
A América, a partir de hoje, poderá voltar provavelmente a desempenhar aquele que sempre foi seu melhor papel: o de defensora da civilização contra a barbárie.
Os Estados Unidos perseguirão todo país que, de uma maneira ou de outra, aparecer como cúmplice dos terroristas que conceberam e realizaram o ataque. É difícil imaginar qualquer outra potência em posição ou com alguma razão de contestar esse direito. Nem a Rússia nem a China. Mesmo uma boa parte dos países árabes concordará, de coração ou por medo.
É possível, com isso, que o ataque de ontem tenha definitivamente alterado a organização política do planeta, sobrepondo a todos os conflitos (econômicos, políticos ou ideológicos) uma divisão cultural. Haverá, de um lado, os que acreditam no ideário da razão ocidental e, de outro, um pequeno (ou grande) catálogo de fundamentalismos. E haverá a necessidade de se declarar.
quinta-feira, 6 de setembro de 2001
O show do meio milhão
Os vizinhos de Fernando e Esdras Dutra Pinto -sequestradores da filha de Silvio Santos- manifestaram opiniões que achei curiosas. Segundo a reportagem de Armando Antenore, na Folha de 31 de agosto, dona Edna, 27, perguntou: "O que significam R$ 500 mil para Silvio Santos?". E Maria Isabel Amorim, 20, comentou que "R$ 500 mil não são nada para o Silvio". Ela acrescentou que os sequestradores eram "mais ou menos heróis". Só faltava confundi-los com Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres.
O pai, Antônio Sebastião, segundo outra reportagem, afirmou que seus filhos, desempregados e vivendo de bicos, agiram por frustração. É uma versão do "ninguém é de ferro": você olha para a riqueza dos outros que esbanjam, você não passa no vestibular, sente a amargura da injustiça e vai saber onde isso pára.
Tudo bem, acreditemos nessa explicação paterna. Mas cuidado. A história dos irmãos Pinto não é um drama da miséria. Eles não estavam desesperados para colocar comida na mesa da família ou para oferecer um teto aos velhos pais carentes. Nada disso. Estavam frustrados na corrida social ordinária: queriam mais bugiganga de shopping center.
Qual é a transição entre essa frustração banal e a decisão de sair sequestrando e assassinando?
Não sabemos o que passou pela cabeça de Fernando, de Esdras e dos outros. Mas conhecemos o paradoxo brasileiro contemporâneo: a convivência, em cada sujeito, dos imperativos da modernidade com visões arcaicas das relações humanas e da atividade econômica.
Comecemos com um arcaísmo: paira em nosso ar uma crença, herdada do colonizador, pela qual a riqueza não deve ser fruto do esforço, mas de uma colheita (sem plantio) ou de um saque. Ela deve ser encontrada e levada embora. Nessa ótica, assim como os diamantes vêm da terra e os maracujás, das árvores, o dinheiro não vem do trabalho, vem dos outros. É só tirá-lo deles, como se corta uma árvore de pau-brasil.
Surge assim o estereótipo colonial do caboclo perigoso e sonolento, cuja violência predatória é felizmente atenuada pela indolência, pois ele espera que a ocasião se apresente e não gosta de batalhar para que as coisas aconteçam. É o jacaré parado na beira do rio.
A esse quadro acrescente-se o motor da sociedade moderna: a inveja. O truque da modernidade é este: organizamos nossas diferenças e inventamos uma ordem social nos medindo recíproca e invejosamente. "Esse cara é mais do que eu: olhe o relógio dele. Aquele cara é menos do que eu, olhe o chinelo."
Motivados pela inveja, acumulamos, consumimos e produzimos cada vez mais riquezas.
O que acontece quando esse sentimento moderno se choca com a convicção de que a riqueza não é para ser produzida, mas para ser encontrada? Nesse caso, a inveja, inventada para estimular a alacridade produtiva de todos, encoraja os anseios dos predadores. Você está com inveja e não quer competir pelo trabalho? Não fique esperando. Procure ativamente outros de quem arrancar um pedaço. O jacaré fica furioso, deixa a toca e vai para a cidade.
Esse pano de fundo talvez explique os discursos compreensivos dos vizinhos e da família, para quem o crime de Fernando e de Esdras parece ser tolerável: ordinária administração de nossas relações sociais.
Mas algo mais fez com que o drama vivido por Silvio Santos aparecesse como uma encenação do paradoxo entre modernidade e arcaísmos obstinados do qual sofremos.
O próprio Silvio Santos deve sua popularidade à produção de programas que celebram a herança colonial pela qual a riqueza é um achado. O dinheiro chove, cai no chão. É uma luta para agarrar as notas. Mesmo assim, melhor isso do que ganhá-las propriamente, não é? Quem sabe, um dia, o Silvio me chame e seja minha vez de encontrar uma grana no meu caminho.
A gente topa tudo por dinheiro. Enfim, quase tudo: topa, por exemplo, sequestrar a filha de Silvio Santos. Trabalhar já seria outra história. O sequestro, em suma, foi um momento, uma extensão do "Show do Milhão".
O clímax produziu-se quando Fernando, sentindo que arriscava a vida, procurou a proteção de sua própria vítima. Até então, sabíamos que o sequestrador era invejoso e, nisso, moderno. Mas, à diferença de um sujeito moderno, em vez de emular produzindo, ele partira para o saque. Por não participar do "Show do Milhão", contentara-se com R$ 500 mil. Agora aparecia uma novidade: para Fernando, Silvio Santos não era apenas um sujeito qualquer, que seria bom roubar. A igualdade do semelhante mais privilegiado é uma idéia moderna demais. Silvio Santos, o invejável dispensador de riquezas, guardava, para Fernando, toda a autoridade do senhor de outros tempos -dono de engenho ou coronel.
No fim da história, foi difícil dizer se o sequestrador queria mais roubar ou receber de sua vítima a proteção que é normalmente reservada a um afilhado.
Fernando nos apresentou, assim, um espelhinho deprimente, no qual aparecia a figura perdida e contraditória de um jovem invejoso, predador e arcaicamente servil.
O pai, Antônio Sebastião, segundo outra reportagem, afirmou que seus filhos, desempregados e vivendo de bicos, agiram por frustração. É uma versão do "ninguém é de ferro": você olha para a riqueza dos outros que esbanjam, você não passa no vestibular, sente a amargura da injustiça e vai saber onde isso pára.
Tudo bem, acreditemos nessa explicação paterna. Mas cuidado. A história dos irmãos Pinto não é um drama da miséria. Eles não estavam desesperados para colocar comida na mesa da família ou para oferecer um teto aos velhos pais carentes. Nada disso. Estavam frustrados na corrida social ordinária: queriam mais bugiganga de shopping center.
Qual é a transição entre essa frustração banal e a decisão de sair sequestrando e assassinando?
Não sabemos o que passou pela cabeça de Fernando, de Esdras e dos outros. Mas conhecemos o paradoxo brasileiro contemporâneo: a convivência, em cada sujeito, dos imperativos da modernidade com visões arcaicas das relações humanas e da atividade econômica.
Comecemos com um arcaísmo: paira em nosso ar uma crença, herdada do colonizador, pela qual a riqueza não deve ser fruto do esforço, mas de uma colheita (sem plantio) ou de um saque. Ela deve ser encontrada e levada embora. Nessa ótica, assim como os diamantes vêm da terra e os maracujás, das árvores, o dinheiro não vem do trabalho, vem dos outros. É só tirá-lo deles, como se corta uma árvore de pau-brasil.
Surge assim o estereótipo colonial do caboclo perigoso e sonolento, cuja violência predatória é felizmente atenuada pela indolência, pois ele espera que a ocasião se apresente e não gosta de batalhar para que as coisas aconteçam. É o jacaré parado na beira do rio.
A esse quadro acrescente-se o motor da sociedade moderna: a inveja. O truque da modernidade é este: organizamos nossas diferenças e inventamos uma ordem social nos medindo recíproca e invejosamente. "Esse cara é mais do que eu: olhe o relógio dele. Aquele cara é menos do que eu, olhe o chinelo."
Motivados pela inveja, acumulamos, consumimos e produzimos cada vez mais riquezas.
O que acontece quando esse sentimento moderno se choca com a convicção de que a riqueza não é para ser produzida, mas para ser encontrada? Nesse caso, a inveja, inventada para estimular a alacridade produtiva de todos, encoraja os anseios dos predadores. Você está com inveja e não quer competir pelo trabalho? Não fique esperando. Procure ativamente outros de quem arrancar um pedaço. O jacaré fica furioso, deixa a toca e vai para a cidade.
Esse pano de fundo talvez explique os discursos compreensivos dos vizinhos e da família, para quem o crime de Fernando e de Esdras parece ser tolerável: ordinária administração de nossas relações sociais.
Mas algo mais fez com que o drama vivido por Silvio Santos aparecesse como uma encenação do paradoxo entre modernidade e arcaísmos obstinados do qual sofremos.
O próprio Silvio Santos deve sua popularidade à produção de programas que celebram a herança colonial pela qual a riqueza é um achado. O dinheiro chove, cai no chão. É uma luta para agarrar as notas. Mesmo assim, melhor isso do que ganhá-las propriamente, não é? Quem sabe, um dia, o Silvio me chame e seja minha vez de encontrar uma grana no meu caminho.
A gente topa tudo por dinheiro. Enfim, quase tudo: topa, por exemplo, sequestrar a filha de Silvio Santos. Trabalhar já seria outra história. O sequestro, em suma, foi um momento, uma extensão do "Show do Milhão".
O clímax produziu-se quando Fernando, sentindo que arriscava a vida, procurou a proteção de sua própria vítima. Até então, sabíamos que o sequestrador era invejoso e, nisso, moderno. Mas, à diferença de um sujeito moderno, em vez de emular produzindo, ele partira para o saque. Por não participar do "Show do Milhão", contentara-se com R$ 500 mil. Agora aparecia uma novidade: para Fernando, Silvio Santos não era apenas um sujeito qualquer, que seria bom roubar. A igualdade do semelhante mais privilegiado é uma idéia moderna demais. Silvio Santos, o invejável dispensador de riquezas, guardava, para Fernando, toda a autoridade do senhor de outros tempos -dono de engenho ou coronel.
No fim da história, foi difícil dizer se o sequestrador queria mais roubar ou receber de sua vítima a proteção que é normalmente reservada a um afilhado.
Fernando nos apresentou, assim, um espelhinho deprimente, no qual aparecia a figura perdida e contraditória de um jovem invejoso, predador e arcaicamente servil.
quinta-feira, 30 de agosto de 2001
Liberdade moral
Alan Wolfe , eminente sociólogo do Boston College, acaba de publicar "Moral Freedom" (Liberdade Moral, Norton & Co.), indagação sobre os sentimentos morais dos americanos.
No ano passado, Wolfe já tinha produzido uma ampla sondagem de opinião sobre esse tema, que foi apresentada no "The New York Times". O novo livro traz uma série de entrevistas efetuadas para aprimorar os resultados da pesquisa inicial. Trata-se de encontros com sujeitos que representam setores extremos e opostos da sociedade americana: Castro (bairro de San Francisco preferido pela comunidade gay), uma base da Força Aérea, a riquíssima Silicon Valley, uma cidade decaída do Estado de Massachusetts e por aí vai.
Entrevistando esses sujeitos anômalos, Wolfe confirma o resultado encontrado originalmente e afirma que, apesar de diferenças radicais de condição social e de idéias, quase todos os americanos praticam a "liberdade moral" moderna. Mas o que é isso?
É claro que as idéias morais de Sue Simpson, mulher homossexual de San Francisco, são diferentes das convicções de Mary Masters, uma cristã renascida do Connecticut. Se elas se encontrassem, detestar-se-iam. Masters condenaria Simpson ao inferno e Simpson acharia a existência de Masters um atraso da civilização. Mas Wolfe mostra que ambas, embora defendendo princípios opostos, praticam a liberdade moral, pois adotam suas posições respectivas por uma escolha consciente e livre, e não pela simples força de regras preestabelecidas e inquestionáveis. As entrevistas revelam que, hoje, mesmo quem defende uma moral normativa valoriza a livre escolha em nome da qual decidiu submeter-se ao rigor da norma.
Em suma, a liberdade moral que, segundo Wolfe, seria dominante nos EUA (se não no mundo ocidental) não tem nada a ver com permissividade. Pratica a liberdade moral quem toma (e quer tomar) suas decisões morais por conta própria. Esse é o caso tanto dos conservadores mais repressivos quanto dos libertinos.
Imaginemos que eu resolva minhas questões morais pela estrita obediência à Bíblia. E que você, ao contrário, em situações análogas, invente livremente critérios para julgar e decidir. Mesmo assim, seremos menos diferentes do que parece: acontece que eu sei e reconheço que a decisão de me submeter à Bíblia foi minha.
Portanto, atrás do livro ao qual me refiro sem parar, o fundamento último de minhas decisões morais sou eu mesmo. Nisso não difiro de você, que inventa seus próprios critérios. Ambos somos praticantes da liberdade moral moderna, pois nossas escolhas éticas são, direta ou indiretamente, o efeito de uma decisão autônoma que ambos prezamos.
Wolfe resume: "Há mesmo uma maioria moral nos EUA. São os sujeitos que querem decidir com sua própria cabeça".
Difícil não concordar com as conclusões de Wolfe. É claro que os sistemas morais tradicionais não conseguem mais se impor sem passar pelo crivo do consentimento dos adeptos. Por exemplo, contra a vontade da Igreja, muitos católicos são favoráveis ao aborto, discutem o fundamento do celibato do clero, acham certo usar camisinha e consideram ridículo o dogma da infalibilidade do pontífice. Para os fiéis modernos, valem os preceitos que eles mesmos aprovam livremente.
Wolfe acredita que a liberdade moral quase não tenha mais adversários hoje. Certo, há fundamentalistas para os quais qualquer livre escolha é uma manifestação satânica. Mas talvez eles sejam apenas restos arcaicos de culturas vencidas.
A verdadeira dificuldade está em nós. Pois a prática da liberdade moral acarreta vários inconvenientes quando comparada com o reinado de uma moral autoritária. Na liberdade moral, por exemplo, é difícil chegar a um consenso e falta uma garantia absoluta de que as decisões sejam corretas. É frequente que cada decisão deixe dúvidas intoleráveis pairando na consciência -quem foi ou conheceu alguém que foi jurado num processo penal conhece esse tormento.
Enfim, a liberdade moral é cansativa, pois requer a cada instante o esforço de inventar critérios para julgar.
Reagimos a essas complicações de duas maneiras. Por um lado, nostalgicamente, interpretamos a liberdade moral, que é nossa originalidade cultural, como uma inconsistência, como uma falha ou mesmo como um sinal de decadência. Lamentamos, em suma, um passado (mítico) regido por códigos de ferro.
Por outro lado, tentamos freneticamente descobrir dentro de nós algo que possa servir de fundamento para as decisões morais. Desde que fomos convidados a decidir autonomamente o que é bom e o que é mau, ou seja, a sermos a origem da moral, exploramos nosso cérebro e nossas tripas buscando um sentimento, um impulso, qualquer coisa que dê legitimidade a nossas decisões.
Procuramos (ou elegemos) uma parte de nós -mais verdadeira- na qual confiar para nossas escolhas morais. A razão? A sociabilidade, que nos faz desejar o bem comum? O instinto de sobrevivência? A vontade de ser feliz?
Qual é, a seu ver, a resposta do dia?
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