quinta-feira, 6 de setembro de 2001

O show do meio milhão

Os vizinhos de Fernando e Esdras Dutra Pinto -sequestradores da filha de Silvio Santos- manifestaram opiniões que achei curiosas. Segundo a reportagem de Armando Antenore, na Folha de 31 de agosto, dona Edna, 27, perguntou: "O que significam R$ 500 mil para Silvio Santos?". E Maria Isabel Amorim, 20, comentou que "R$ 500 mil não são nada para o Silvio". Ela acrescentou que os sequestradores eram "mais ou menos heróis". Só faltava confundi-los com Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres.

O pai, Antônio Sebastião, segundo outra reportagem, afirmou que seus filhos, desempregados e vivendo de bicos, agiram por frustração. É uma versão do "ninguém é de ferro": você olha para a riqueza dos outros que esbanjam, você não passa no vestibular, sente a amargura da injustiça e vai saber onde isso pára.

Tudo bem, acreditemos nessa explicação paterna. Mas cuidado. A história dos irmãos Pinto não é um drama da miséria. Eles não estavam desesperados para colocar comida na mesa da família ou para oferecer um teto aos velhos pais carentes. Nada disso. Estavam frustrados na corrida social ordinária: queriam mais bugiganga de shopping center.

Qual é a transição entre essa frustração banal e a decisão de sair sequestrando e assassinando?
Não sabemos o que passou pela cabeça de Fernando, de Esdras e dos outros. Mas conhecemos o paradoxo brasileiro contemporâneo: a convivência, em cada sujeito, dos imperativos da modernidade com visões arcaicas das relações humanas e da atividade econômica.

Comecemos com um arcaísmo: paira em nosso ar uma crença, herdada do colonizador, pela qual a riqueza não deve ser fruto do esforço, mas de uma colheita (sem plantio) ou de um saque. Ela deve ser encontrada e levada embora. Nessa ótica, assim como os diamantes vêm da terra e os maracujás, das árvores, o dinheiro não vem do trabalho, vem dos outros. É só tirá-lo deles, como se corta uma árvore de pau-brasil.

Surge assim o estereótipo colonial do caboclo perigoso e sonolento, cuja violência predatória é felizmente atenuada pela indolência, pois ele espera que a ocasião se apresente e não gosta de batalhar para que as coisas aconteçam. É o jacaré parado na beira do rio.

A esse quadro acrescente-se o motor da sociedade moderna: a inveja. O truque da modernidade é este: organizamos nossas diferenças e inventamos uma ordem social nos medindo recíproca e invejosamente. "Esse cara é mais do que eu: olhe o relógio dele. Aquele cara é menos do que eu, olhe o chinelo."

Motivados pela inveja, acumulamos, consumimos e produzimos cada vez mais riquezas.
O que acontece quando esse sentimento moderno se choca com a convicção de que a riqueza não é para ser produzida, mas para ser encontrada? Nesse caso, a inveja, inventada para estimular a alacridade produtiva de todos, encoraja os anseios dos predadores. Você está com inveja e não quer competir pelo trabalho? Não fique esperando. Procure ativamente outros de quem arrancar um pedaço. O jacaré fica furioso, deixa a toca e vai para a cidade.

Esse pano de fundo talvez explique os discursos compreensivos dos vizinhos e da família, para quem o crime de Fernando e de Esdras parece ser tolerável: ordinária administração de nossas relações sociais.

Mas algo mais fez com que o drama vivido por Silvio Santos aparecesse como uma encenação do paradoxo entre modernidade e arcaísmos obstinados do qual sofremos.

O próprio Silvio Santos deve sua popularidade à produção de programas que celebram a herança colonial pela qual a riqueza é um achado. O dinheiro chove, cai no chão. É uma luta para agarrar as notas. Mesmo assim, melhor isso do que ganhá-las propriamente, não é? Quem sabe, um dia, o Silvio me chame e seja minha vez de encontrar uma grana no meu caminho.
A gente topa tudo por dinheiro. Enfim, quase tudo: topa, por exemplo, sequestrar a filha de Silvio Santos. Trabalhar já seria outra história. O sequestro, em suma, foi um momento, uma extensão do "Show do Milhão".

O clímax produziu-se quando Fernando, sentindo que arriscava a vida, procurou a proteção de sua própria vítima. Até então, sabíamos que o sequestrador era invejoso e, nisso, moderno. Mas, à diferença de um sujeito moderno, em vez de emular produzindo, ele partira para o saque. Por não participar do "Show do Milhão", contentara-se com R$ 500 mil. Agora aparecia uma novidade: para Fernando, Silvio Santos não era apenas um sujeito qualquer, que seria bom roubar. A igualdade do semelhante mais privilegiado é uma idéia moderna demais. Silvio Santos, o invejável dispensador de riquezas, guardava, para Fernando, toda a autoridade do senhor de outros tempos -dono de engenho ou coronel.

No fim da história, foi difícil dizer se o sequestrador queria mais roubar ou receber de sua vítima a proteção que é normalmente reservada a um afilhado.

Fernando nos apresentou, assim, um espelhinho deprimente, no qual aparecia a figura perdida e contraditória de um jovem invejoso, predador e arcaicamente servil.

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