A manhã estréia no Brasil "Harry Potter e a Pedra Filosofal". A primeira sessão, nos cinemas americanos, foi na meia-noite de quinta passada -para os adultos. No dia seguinte, de manhã, era a vez das crianças: classes inteiras com seus professores. No vestíbulo de um cinema de Boston, conversei com alguns alunos da sexta série, que estavam na fila da pipoca. Manifestavam suas expectativas prometendo desforras: "É melhor que seja tudo como no livro. Se não for assim, eles vão ver".
De tarde, escutei no rádio algumas entrevistas com adultos que acabavam de assistir ao filme. Constatavam, felizes, que o filme tinha sido exatamente como o livro. "Perfeito. Ainda bem. Eu estava com medo de que fosse diferente." Na verdade, eu também esperava que o filme fosse fiel ao primeiro livro. E saí do cinema satisfeito: o filme era como eu queria.
Entre os entrevistados radiofônicos, uma mulher, depois de manifestar seu contentamento com a fidelidade do filme, declarou que nunca tinha lido os livros. Então, para ela, o filme era fiel a quê? Aparentemente, a história contada por J.K. Rowling entrou no repertório de nossa cultura. Durante um bom tempo, até para quem nunca leu os livros e nunca verá os filmes, Harry Potter constituirá um dos cenários graças aos quais nos familiarizamos (agradavelmente) com desejos e fantasias que temos em comum por sermos, simplesmente, modernos e ocidentais.
No caldeirão de nosso patrimônio cultural, há quase exclusivamente aspirações, sonhos e devaneios. Nos best-sellers vulgares, encontramos os mais banais, do tipo: mato impunemente todos os que me incomodam e traço aqueles e aquelas que eu quero. Outras aspirações, menos óbvias, são reveladoras do que há de mais interessante em nós. As histórias de Harry Potter são um bom compêndio destas últimas. Por exemplo, o leitor (ou o espectador) reconhecerá facilmente nosso sonho de uma orfandade ideal em que seríamos, ao mesmo tempo, herdeiros de nossos pais e completamente livres de inventar nossas vidas sem ter de lidar com eles. Ou então o sonho individualista de que nossa excepcionalidade seja reconhecida por todos -legível como uma cicatriz na testa. Ou ainda a esperança de que a desobediência às regras, quando ela persegue algum bem, não seja punida, mas recompensada -ou seja, a esperança de que um juízo moral independente se situe sempre acima das leis. A lista é longa. E um dos prazeres da leitura consiste justamente em percorrer a variedade dos sonhos de nossa cultura.
Ora, por mais que os sonhos de fundo sejam um patrimônio cultural compartilhado, cada leitor de uma história imagina o universo do romance de maneira singular. A descrição oferecida pelo autor mistura-se com o mundo do leitor, com suas lembranças de outras leituras e com sua vida real. A cara de Harry Potter seria, para cada um de nós, um compromisso, por exemplo, entre a descrição proposta pela autora e a lembrança de tal camarada de nosso passado escolar. Por isso, na adaptação cinematográfica de um romance, é delicado escolher os atores -parece que sempre se chamam Tom Cruise, enquanto esperávamos as rugas de Robert Redford.
Ora, nada disso aconteceu no caso de Harry Potter. Os espectadores entrevistados no rádio queriam um filme fiel, ou seja, um filme que brincasse com o mesmo repertório de sonhos do livro. Mas, sobretudo, pareciam exigir (tarefa complicada) um filme que fosse conforme o universo romanesco que eles tinham imaginado durante a leitura. O milagre é que todos se declararam satisfeitos. Chris Columbus, o diretor, conseguiu não contrariar a fantasia de ninguém.
Não é pouca coisa. Certo, os livros de Rowling têm uma grande força descritiva e, portanto, devem inspirar nos leitores fantasias homogêneas. Mesmo assim, para realizar um filme que satisfaça às visões de todos os leitores da história adaptada, é necessária uma humildade admirável. No mínimo, Columbus soube renunciar à tentação de impor ou sugerir sua própria fantasia do romance.
À diferença dos espectadores, a crítica americana ficou em cima do muro. Gostou, mas achou que faltava mágica. O filme, queixaram-se os críticos, é "apenas" o livro. Ora, essa é justamente a grande qualidade do filme, ser "apenas" o livro. A humildade do filme confirma e fortalece a presença da história de Harry Potter no repertório coletivo de nossos cenários.
Por que seria uma coisa boa? É que nós, modernos, precisamos sempre de boas histórias, pois temos pouco em comum. As aspirações que compartilhamos (e que compõem nossa cultura) não constituem um código nem valem um livro de normas. Elas vivem e se transmitem pelas histórias das quais gostamos -especialmente por aquelas que são contadas para e por todos.
Aliás, ultimamente, temos sido chamados, com uma certa frequência, de infiéis. É porque não somos fiéis a um único livro. E daí? Somos fiéis a Harry Potter, a Julien Sorel, a Machado, a Homero e, naturalmente, a John Huston, Frank Capra e por aí vai.
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