quinta-feira, 15 de novembro de 2001

Somos violentos e democráticos, mas posudos



Há jovens brasileiros de classe média e alta estudando em universidades americanas. Desde o 11 de setembro, muitas famílias, preocupadas, pedem que eles voltem para casa.

Esses jovens, contrariamente aos imigrantes, não viajaram para fazer um pé-de-meia. Os pais quiseram que eles estudassem nos EUA sobretudo para que vivessem num lugar mais seguro.
Hoje, as famílias descobrem que nos EUA também é possível morrer de bala (ou de bomba) perdida. Mas não é só isso: a violência urbana -que, alguns anos atrás, foi a razão para que os filhos fossem mantidos longe do Brasil- tornou-se, para todos nós, uma espécie de fenômeno natural. Ela faz parte da paisagem. Parece completar a descrição de nosso dia-a-dia, como a seca integra a definição do Nordeste. Claro, há planos de irrigação e há regularmente iniciativas contra a violência. Mas são lamentações cujo pano de fundo não deixa de ser uma espécie de aceitação resignada. Como isso é possível?

Acredito que nossa capacidade de revolta contra a violência se esgote facilmente, porque sabemos que, no fundo, a violência é o corolário "natural" de nossa cultura. Somos os rebentos de um divórcio radical entre a função social dos cidadãos e sua eminência na sociedade.

Sem retroceder muito no tempo, no vilarejo, por exemplo, podia existir uma relação entre a função e o lugar social de cada um. Havia o bombeiro, o barbeiro, o médico, o professor, o alfaiate, o comerciante, o marceneiro: um desfile de funções às quais correspondiam prestígios diferentes (nem sempre organizados em hierarquias estúpidas). A modernidade urbana propõe um paradigma mais adequado à complexidade da sociedade citadina: o prestígio depende abstratamente da riqueza. Faça dinheiro e, seja qual for sua função social (ou sua eventual inutilidade), você será eminente. Não é mais simples?

Esse cinismo torna difícil a subsistência de qualquer moral comunitária. Afinal, se a riqueza é o critério da relevância social de cada um, melhor procurá-la da maneira mais direta possível, sem passar pelo exercício de fastidiosas funções sociais. A cidade moderna torna-se, então, uma selva. Se for bem policiada, seus predadores serão especuladores engravatados. Se for mal policiada, serão assaltantes. Em suma, nós nos resignamos com a violência, pois ela é autorizada por nosso modo de organizar as diferenças sociais.

Estava no meio dessas (desagradáveis) reflexões quando visitei, no Museum of Fine Arts de Boston, a exposição (aberta até janeiro) "The Look" -imagens de glamour e estilo. É uma excelente seleção de fotografias de George Hoyningen-Huene e de seu pupilo Horst P. Horst -fotógrafos que, entre as duas guerras mundiais, inventaram o formato hodierno da revista de moda.

A "Vogue", em 1930, gastava US$ 100 mil em desenhos e US$ 40 mil em fotografias. Dez anos mais tarde, a proporção era invertida. Nessa época, a moda cessou de vender roupas e passou a vender imagens. O leitor da "Vogue" ainda compra exatamente o que aparece nessa extraordinária exposição: uma galeria de posudos e, portanto, um repertório de poses. Saí da exposição com a convicção de que a revista de moda é essencial para entender o funcionamento da sociedade urbana moderna. Pois não basta dizer que, na distribuição de méritos e prestígios, o dinheiro substituiu hoje a função social. Isso, de certa forma, seria libertador. Para subir na consideração de todos, bastaria fazer dinheiro. Seríamos violentos -nos negócios, na exploração ou nos assaltos. Mas todos, em princípio, poderíamos chegar lá. Violentos e democráticos, não é?

Ora, não é bem assim. Para ter prestígio, ainda é necessário encontrar um "look", uma pose. E a pose é o ideal inatingível que alimenta nossa insatisfação (movimentando desejos e carteiras).
Podemos ganhar ou roubar o necessário para ter uma casa com piscina ou tirar férias em Montecarlo. Nós nos sentaremos no trampolim com um calção de marca. Mas nunca seremos as figuras de banhistas sublimes que, numa foto famosa de Huene, estão sentados de costas para a gente, olhando para um horizonte marinho perfeito e misterioso.

Até porque -aprendi na exposição- a foto em questão foi tirada no último andar do prédio da "Vogue", em Nova York. O misterioso horizonte era, de fato, um parapeito de concreto.

P.S.
1) Resumi para um amigo o tema desta coluna. Ele estranhou que não estivesse comentando as manifestações de liberdade pelas ruas de Cabul: música tocando, homens cortando a barba e mulheres levantando o véu. Pois é, estou mais que disposto a festejar, com o povo do Afeganistão, a derrota do Taleban. Espero que seja definitiva. Com isso, é difícil que o Afeganistão não se abra, aos poucos, para a nossa modernidade. É tempo, então, de pensar não só na liberdade que eles estão ganhando mas também nos pepinos que estão comprando: os nossos.

2) Não há catálogo da exposição, mas existe o livro: "The Photographic Art of Hoyningen-Huene" (Thames & Hudson).

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