domingo, 16 de setembro de 2001

PATRIOTISMO

Há complacência com o terror no sentimento de que os cidadãos do país mereciam punição

A face oculta do antiamericanismo
Os terroristas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos


CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA

Qual era a expectativa dos terroristas que, na terça-feira passada, surgiram no céu americano e nas telas de TV do mundo inteiro? Qual poderia ser o alvo da operação? Certo, queriam destruir. Mas a morte e a demolição eram apenas um meio. O ganho que eles procuravam era simbólico: o ataque aconteceu no território americano (na capital e em Nova York, a cidade-vitrine do Ocidente) e contra edifícios que fazem parte do imaginário mundial: as torres gêmeas e o Pentágono. O show era para quem?

Para produzir o júbilo de seus adeptos, não precisava de tanto. Agora, se o público alvo eram os próprios americanos (na esperança de enfraquecê-los), o fracasso foi total. Duvido que os terroristas tivessem a ingenuidade de pensar que seu gesto encontraria os favores de alguma oposição interna americana ou que a tragédia semearia a discórdia. Mas, caso contassem com isso, a decepção deve ter sido completa. O ataque parece ter aplainado as arestas da sociedade americana.

Os dois grandes partidos -Democrata e Republicano - entraram em regime de cooperação bipartidária. O Partido Libertário, em seu comunicado de 12 de setembro, execra o ataque terrorista, encoraja solidariedade, doações de sangue e de dinheiro para as vítimas e para a reconstrução.

As pessoas próximas do movimento das milícias, com todo seu ódio pelo governo federal, são inevitavelmente nacionalistas e patriotas. Que simpatizantes desse movimento, como Timothy McVeigh e Terry Nichols, tenham sido capazes do atentado de Oklahoma City não implica nenhuma cumplicidade possível com o ataque de terça-feira.

As milícias têm devoção pela defesa do território - quer seja a nação ou o terreno ao redor de casa, ambos são santuários.

No site The Patriot, há uma sondagem sobre a questão: os EUA devem ou não responder militarmente à agressão? As respostas positivas superam de longe a média nacional.
As margens do leque político dos EUA são quase todas manifestações de um individualismo radical inspirado pelos valores fundamentais da Revolução e da Constituição americanas. É difícil imaginar posições mais antinômicas a um fundamentalismo tradicionalista.

Os terroristas islâmicos poderiam esperar ter mais chances com seus supostos correligionários. É concebível que a Nação do Islã, uma margem extrema, muçulmana e anti-semita do movimento negro, visse no fundamentalismo islâmico um aliado internacional. Aliás, a escolha do Islã como catalisador de uma organização negra foi, desde o começo, uma provocação ao "establishment" ocidental e americano.

Mas os dias de Malcolm X e da conversão de Cassius Clay em Mohammed Ali passaram há tempo: o movimento está em forte regressão. De qualquer forma, a aliança com o fundamentalismo islâmico no exterior, se é que existiu, não tem como se manter quando o país é agredido.

Louis Farrakhan, chefe atual da Nação do Islã, anunciou um pronunciamento sobre o ataque ao país para o dia 16 de setembro, na mesquita Maryam, em Chicago, convidando "todos os cidadãos de Chicago, seja qual for sua raça, sua fé ou sua cor". O caráter excepcionalmente aberto desse convite manifesta a adesão ao clima de união nacional. Já está dito que a declaração será sobre "a horrenda agressão contra os Estados Unidos da América".

Enfim, mais importante: a escolha do World Trade Center como alvo transformou esse centro financeiro num lugar de sofrimento. A figura impessoal (e eventualmente pouco simpática) do homem de negócios é substituída hoje pela humanidade dos corpos desmembrados.

De repente, está colmatada a fratura, que certamente divide a América contemporânea, entre Wall Street e o "heartland", o coração da terra -o país dos americanos médios, trabalhadores rurais e manuais. "O bombeiro salvando os homens de Wall Street" poderia ser uma capa de Norman Rockwell que, descrevendo o heroísmo do resgate em curso, simbolizaria o reencontro solidário de americanos que talvez estivessem afastados indevidamente. Isso, sob a bandeira comum: nos últimos três dias a venda de bandeiras nos EUA explodiu. Na frente das casas dos subúrbios, assim como nas janelas dos apartamentos urbanos, os americanos desdobram bandeiras. É uma maneira de dizer a confiança na persistência do país.

Há outros efeitos paradoxais da destruição -certamente não desejados pelos terroristas. Considere-se, por exemplo, a geração atual de adolescentes americanos, para quem o Vietnã é um filme de Kubrick, a Guerra do Golfo é um videogame e o mundo é tutelado pelo letreiro dos índices Dow Jones e Nasdaq, ao som repetitivo da música tecno. Esses jovens são acusados de serem gananciosos e sem ideais. Na terça-feira passada, eles foram acordados brutalmente: terão de inventar uma maneira nova de dar sentido a suas vidas, uma maneira em que escolher valores é relevante.

Algo parecido acontece com os adultos. Na internet, num bate-papo de psicólogos sobre o ataque, alguém sugere: "É ótimo que as vítimas e suas familiares disponham de aconselhamento. Mas não devemos facilitar o luto de todos. Não devemos querer rapidamente voltar ao bem-estar. Devemos nos lembrar". Todos concordam. Fazia tempo que, numa discussão americana, não encontrava-se um consenso contra a exigência imediata de bem-estar.

Nesse quadro, é estranho ouvir ou ler comentários sobre uma suposta nova fragilidade dos americanos que não se veriam mais como invencíveis. Claro, o território foi violado, mas, longe de sentirem-se diminuídos ou humilhados por isso, os americanos parecem sentir-se enfim justificados. O ataque autoriza uma adesão ao interesse e aos valores nacionais sem reservas e sem pudores.

Surge uma nova boa consciência americana, que aparece, por exemplo, na intolerância declarada para com o antiamericanismo. Os americanos não são mais masoquistas. O presidente Bush assinalou esse estado de espírito ao anunciar que os pêsames não serão suficientes: daqui por diante quem não está com a América, está contra ela. Lance Morrow, num artigo na Time.com, escreveu: "Quem não odeia os que fizeram essas coisas e as pessoas que os incitam e festejam é filosófico demais para ser uma companhia decente". A palavra "filosófico" é uma clara alusão à moda antiamericana que se tornou quase marca obrigatória de (pretensa) inteligência crítica.

Não é difícil entender a razão dessa mudança de tom. Voltemos a perguntar quem é o público alvo do show de horror montado pelos terroristas. Não são os adeptos e não são os americanos. Mas os assassinos suicidas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos mal escondidos, no estilo: "Que pena, mas estavam pedindo, não é?"

É razoável pensar que o público estrategicamente mais importante para os terroristas sejam todos aqueles que, embora lamentando a perda das vidas, se felicitariam de ver atingidos os símbolos da potência americana. Nestes dias, circulam na internet listas dos "malfeitos" dos EUA, como para lembrar boas razões para ser antiamericano. Também circulam listas de tributo aos EUA, lembrando os empréstimos e as doações de dinheiro, sangue e energia que os EUA fizeram pelo mundo.

Estava comparando as listas, quando me ocorreu que, em grande parte, o antiamericanismo ocidental talvez seja fruto de uma divisão que está dentro de nós.

Foi assim. Uma amiga americana me telefonou aos prantos no dia 13. Ela acabava de conversar com uma amiga comum brasileira, a qual, preocupada, ligara para ter notícias. A amiga americana percebeu que, atrás dos pêsames, havia uma espécie de complacência moralizante com o terror, tipo: chegou a justa punição do materialismo sem coração. A amiga americana, embora capaz de crítica de seu próprio país, desta vez não aguentou: "Materialismo de quem?", indignou-se. "Cada vez que você vem para Nova York, usa a cidade como um shopping center ou um parque de diversões. E na hora de chorar por Nova York, me faz a moral?" A amiga americana tinha razão. Ela descobria (e me fazia descobrir) assim um mecanismo crucial do antiamericanismo ocidental banal.

Os EUA nos aparecem como o sonho realizado da modernidade; graças a isso, podemos lhes atribuir todas as caraterísticas de nossa cultura. Naturalmente, atribuímos aos EUA as caraterísticas que menos gostamos de reconhecer em nós mesmos. Assim, por exemplo, não sei se os americanos são mais consumistas do que nós. Provavelmente não. Mas os EUA são designados por nós como pátria do consumismo. Eles são sem dúvida a pátria de nosso consumismo. Graças a esse artifício, podemos frequentá-los dando livre curso a nossos desejos de consumir sem considerar que esses desejos sejam nossos. Ao contrário, pretendemos que seja um mal da cultura americana.

Quando algo em nossa cultura nos envergonha, uma boa saída consiste em "descobrir" que esse algo é especificamente americano. O antiamericanismo, em suma, alivia nossas culpas. Melhor, suprime-as, pois elas, de repente, são sempre só americanas. Explica-se assim um mistério sociológico. Na última década, os EUA tornaram-se o objeto da maior vontade migratória e da maior adesão cultural da história da modernidade. A adoção de traços do estilo de vida americano constitui quase uma tentativa de migração por mimetismo. Como é possível que eles sejam, ao mesmo tempo, o objeto de sentimentos suficientemente hostis para que, nas circunstâncias de hoje, apareça, no canto dos lábios de alguns, o ricto de um "bem feito"?

Não seria mal se conseguíssemos interpretar e resolver o antiamericanismo. Isso permitiria que enxergássemos os EUA como um país real e não como um lugar de nossa psique. Também, num momento em que um conflito entre culturas ameaça o novo século, seria útil que pudéssemos encarar o que somos -parando de atribuir ao Tio Sam o que menos gostamos em nós mesmos.

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