quinta-feira, 18 de outubro de 2001

Al Qaeda conta com o pacifismo incondicional

Na quinta-feira passada, Suleiman Abou-Gheit, porta-voz da organização terrorista Al Qaeda, declarou que, "nas nações islâmicas, há milhares de jovens ansiosos por morrer, enquanto os americanos estão ansiosos por viver".

Se for assim, o terror ganhará a guerra. Como os americanos e, por extensão, nós, ocidentais, resistiríamos a um Exército que deseja sua própria morte, enquanto, mesquinhos, queremos preservar nossas vidas? Os que encararem a morte com desenvoltura serão mestres, os que preferirem minimizar os riscos serão escravos.

É certo que houve, vindos de várias nações islâmicas, muitos jovens ansiosos por morrer. No começo, pensamos que eles fossem animados por uma fé absoluta nas recompensas do além. O espírito crítico de nossa cultura nos torna desconfiados e céticos. Por contraste, a convicção maluca dos assassinos era exótica e podia nos parecer quase invejável, como se fosse uma qualidade moral perdida pela modernidade.

Essa explicação inicial encontrou um paradoxo: os pilotos assassinos não eram homens religiosos. A reconstituição de seus últimos dias incluía bebida e clubes de "go-go girls". Com essa descoberta, a coisa ficou mais familiar. A força de uma fé absoluta constituía para nós um mistério. Mas sabemos do que é capaz o esforço para reprimir desejos que são fortes dentro de nós e, apesar disso, inaceitáveis. Conheci anos atrás um jovem que, perseguido por paixões masturbatórias proibidas, se automutilou. O vôo dos pilotos assassinos podia ser algo parecido: uma maneira de cortar brutalmente seu próprio desejo de "go-go girls", matando, com uma cacetada só, o desejo (ou seja, a si mesmos) e as "go-go girls".

Em suma, milhares (?) de jovens querem morrer matando outros que querem viver e que bebem e se permitem "go-go girls". Para os assassinos suicidas, a matança é um remédio contra sua própria vontade de ser como aqueles que querem viver -vontade de álcool e de "go-go girls". A fé seria uma racionalização. A repressão seria a verdadeira motivação.

Apareceu mais um elemento para explicar a determinação dos terroristas. Na última semana, três mulheres (duas delas americanas) me confessaram que, ao assistirem às falas de Osama bin Laden, sentiram-se atraídas quase fisicamente sem saber por que característica. Nos jornais, as fotografias de paquistaneses e de palestinos acariciando a imagem do terrorista não dizem outra coisa: independentemente de seus planos geopolíticos (obscuros), Osama bin Laden fascina e seduz.

Como? Prometendo uma morte bela. Aliás, é sempre com essa promessa que o terror e os fascismos recrutam: quem morrer por nós e conosco morrerá bonito. As elites quase sempre tentam convencer seus oprimidos de que a miséria é bonita (o Brasil conhece bem essa tática). Ora, o rebento mais famoso da elite saudita melhorou o esquema: achou o jeito de acalmar os oprimidos do islã, prometendo-lhes que sua morte seria bonita. A morte é o mestre absoluto, que ganha de nós todos -sempre. Morrer é a prova de nossos limites. Desagradável, não é? Bom, transformar nossa morte numa apoteose narcisista, numa imagem de grande beleza, é o melhor jeito de negar nossos limites. A nossa morte será o próprio monumento que nos eternizará. Era isso que podia animar os pilotos suicidas e assassinos na hora do impacto: uma imagem de si mesmos enaltecida pelo sacrifício e pelo horror. Lá vou eu, triunfando na morte. Bin Laden seduz por ser um maquiador de cadáveres.

Com isso, a determinação dos terroristas dilui-se num meandro de conflitos psíquicos banais.
Mesmo assim, nossa chance de resistir aos apóstolos da morte seria pequena, se fosse verdade que nós e nossos jovens queremos apenas viver. Se garantir nossa sobrevivência for a razão principal de nossa existência, então não haverá como resistir ao terror. Quem quer viver a qualquer custo nunca levanta para lutar. Será que Abou-Gheit tem razão?

É o que me parece quando ouço, nestes dias, a insistência de um discurso pacifista incondicional, que simplesmente pede que ninguém mais seja morto ou ferido. Tudo é aceitável em troca da sobrevivência: baixem as armas, não quero nem saber o porquê da briga, só tomo posição em favor da vida e não respondo à pergunta: "Qual vida?". É um discurso coerente com um traço marcante da cultura contemporânea, segundo o qual o culto ao corpo e à saúde parecem valer como única ética coletiva.

Em contraponto, os passageiros do quarto avião sequestrado no 11 de setembro, quando souberam do destino dos outros aviões, rebelaram-se. Um deles falou no celular com sua mulher, a qual lhe sugeriu que ficasse calmo e, quem sabe, assim salvasse a pele. Antes de desligar e passar à ação, ele disse: "Algo precisa ser feito".

Talvez Abou-Gheit esteja errado em seu entendimento da modernidade ocidental. É verdade que, para nós, a vida é um valor, e a morte nunca nos parece bela. Mas também é verdade que essa "consciência" não nos torna todos necessariamente covardes.

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