quinta-feira, 30 de março de 2000

O álibi do mar de lama

Pitta vai e Pitta vem. Maluf sujou, mas quer voltar para limpar. Também houve vereadores cassados e presos, mas (a menos que se confunda com Jânio Quadros em algum delírio) será que alguém acredita mesmo que conseguimos passar uma vassoura? Perguntem para o presidente da Associação dos Camelôs Independentes de São Paulo...

As notícias se sucedem e mal conseguem se organizar em um parágrafo com pé e cabeça.
Enfim, a metáfora do mar de lama segue atual e quase perfeita.

A lama é enganadora: quem se ilude achando poder pisá-la como se nada fosse logo perde os sapatos, chupados pela viscosidade melequenta; no segundo passo, lá se vão as meias, e, no terceiro, o sujeito começa a afundar. Para flutuar e se salvar, é necessário se deitar, se esticar numa espécie de abraço impossível de se preservar limpo. Ou seja, a moral é: "te enlameia ou afoga". A única outra possibilidade consiste em manter-se afastado de qualquer pântano. Ou seja, "esqueça a vida pública e fique rigorosamente na tua".

Pela virtude de sua consistência líquida, o mar de lama extravasa, transborda e acaba preenchendo a maior parte do globo, tornando-se assim um espaço privilegiado de trocas e contatos mundiais: a lama é cosmopolita e globalizada.

Por mais que eu viaje, esse mar é uma presença inevitável, banha todos os países. A lama estava por todo lado na Itália do pós-guerra. Mais ou menos vistosa, estava também na Suíça, na França e nos Estados Unidos.

Qualquer americano sabe que os custos astronômicos das campanhas eleitorais constituem um dos ambientes no qual a lama vive e se reproduz melhor. Ora, embora ele tenha perdido, a campanha de John McCain para ser escolhido como candidato republicano à Presidência foi surpreendentemente forte e significativa. Mas essa façanha foi possível graças ao caráter de McCain, ao seu passado heróico e à sua moderação: o cavalo-de-batalha de sua campanha -o projeto de reforma do financiamento das campanhas eleitorais- ficou na sombra. Ou seja, todos os eleitores democratas e republicanos parecem achar que é uma necessidade absoluta, uma questão de saneamento básico da vida pública. Mas não se entusiasmaram com isso. Reagiram, simplesmente, como se não acreditassem.

Talvez seja melhor ceder ao cansaço, devolver as armas e, sem vãs indignações e agitações, aceitar enfim que no mundo ocidental inteiro a lama tornou-se parte da paisagem. Ela está naturalizada, um apêndice mais ou menos inflamado, mas sempre inoperável da modernidade democrática. Ninguém acredita que seja possível moralizar a vida pública.

Na semana retrasada em São Paulo, peguei quatro táxis numa mesma tarde. Logicamente, conversamos sobre lama e enchentes. Todos os motoristas se declararam antimalufistas. Coisa impensável três anos atrás.

Mas as quatro conversas acabaram todas numa forma de ceticismo resignado do qual eu mesmo participei. Não era o antigo cinismo de "deixa ele, pois rouba, mas faz". Era assim: "Se ele rouba, então afasta ele, tenta até prender. Mas não esquenta: fica sem ilusões que não tem jeito". A lama é como a bolha assassina, não há como pará-la.

No fim de cada uma das quatro conversas, resultava o seguinte: a lama sufocou nossas esperanças, enterrou nossas ingenuidades corajosas. De decepção em decepção, perdemos a confiança. Agora só não entramos na dança (tipo: "olha, eu vou roubar, pois quem não rouba é trouxa") porque somos do bem. Então pegamos nossa bola e voltamos para casa: aqui não jogo não, está sujo demais, vou cuidar do meu jardim.

Em suma, a lama justifica nosso particularismo, a fraqueza de nossos engajamentos políticos e mesmo a mediocridade de nosso sentimento cívico.

A lama é uma desculpa moral, um álibi perfeito -uma verdadeira racionalização chamada a justificar nossa desistência cívica. Se a lama não existisse, precisaria inventá-la. Pitta, Maluf, os vereadores etc. não nos tornaram inertes e egoístas por excitar nosso ceticismo. Ao contrário: somos inertes e egoístas e -graças a Pitta, Maluf e companhia- podemos acusar a lama.

Suspeito que ainda não tenhamos conseguido assimilar completamente a virada dos anos 70, quando começou a ficar claro (permita a ironia) que os ideais sociais e políticos eram critérios incertos demais para orientar nossas vidas. Aliás, eles alimentavam discussões e discórdias intermináveis. Agora as coisas estão bem melhor: todos concordamos facilmente que nosso bem-estar individual físico, psíquico e financeiro merece ser o farol de nossas existências. É o sonho de Adam Smith realizado: cada um pensa em si mesmo, e, oh, milagre!, todos concordam (que é ótimo pensar em si mesmos)

Mas essa é uma novidade de duas ou três décadas apenas. De vez em quando, alguma nostalgia das quimeras do bem comum ainda deve trotar por nossos cérebros. Quando isso acontece, é bom matar logo qualquer veleidade política, pensando em Maluf, em Pitta ou na Câmara de vereadores. E concluir que é melhor mesmo ficar em casa, pois a lama respinga.

quinta-feira, 23 de março de 2000

Vamos instituir o concurso Papel de Parede

No fim dos anos 70, em Paris, conheci um casal de jovens que, embora mediamente felizes, brigavam com determinação e frequência. As brigas se resolviam regularmente por uma renovada declaração de amor recíproco. Curiosamente, esta era a cada vez oficializada por uma espécie de fórmula sagrada: "C'est juré pour le Brésil!", "Juro pelo Brasil!".

Ambos adotaram essa invocação porque, na mágica da paixão inicial, decidiram brincando que um dia iriam juntos para o Brasil. Não tinham sequer lido um guia turístico do país, e o Brasil não era o lugar mais exótico disponível para seus sonhos. Como muitos, eles passavam férias no Marrocos ou na Tunísia, que, entre odaliscas, camelos e beduínos, são para um europeu lugares mais exóticos do que o Brasil.

No entanto, o Brasil era para eles o nome do lugar improvável onde se amariam e seriam felizes. Nunca testaram a idéia.

Lembro-me desse casal a cada vez que penso no Brasil como sonho ou pesadelo da consciência européia. As imagens européias do Brasil me interessam, pois elas contêm uma parte do segredo das imigrações (aliás, a começar pela minha própria). Com isso, explicam um pouco o Brasil de hoje, que, como todas as colônias, certamente deve um tributo às fantasias dos que para cá viajaram.

Neste estado de espírito e para começar a celebrar os 500 anos, fui visitar a exposição da Pinacoteca do Estado de São Paulo "Coleção Brasiliana". É um conjunto de obras de viajantes do século 19 reunidas por um colecionador que nunca veio ao Brasil (o catálogo, preparado por C. Martins e V. Piccoli, é ótimo).

Saí pensando que os sonhos europeus que deram forma à realidade brasileira são de três categorias.

Primeiro, há os sonhos antes e ao redor do Descobrimento, aqueles que Sérgio Buarque descreveu em "Visões do Paraíso". Na exposição da Pinacoteca essas fantasias estão presentes numa divertida alegoria da América com índios paradisíacos e infernais. Sorridentes canibais que convidam: "Venham explorar, ficar ricos e ser comidos, ou mesmo devorados. A começar (verifiquem) pela bunda".

Depois, há o Brasil romântico dos pintores viajantes. Suas paisagens dão uma espécie de dor no peito. Transmitem a sensação de uma dupla paz entre os homens e a natureza. É como se o Brasil de Gilberto Freyre tivesse conseguido resolver toda contradição dolorosa: o escravo e o senhor estariam felizes numa democracia racial. A aparição noturna do senhor na senzala não anunciaria um estupro a mais, só prometeria prazeres eróticos compartilhados. A dor no peito é uma languidez insustentável, o fascínio e a nostalgia por um mundo inadmissível e que de qualquer forma nunca existiu. Na exposição, contemplem, por exemplo, o quadro de Charles Landseer: o erotismo dos corpos escravos que descansam de tanto caçar borboletas pela paz quase audível da estrada do Silvestre.
Os EUA acham que são responsáveis pela liberdade no mundo, por encarnarem o ideal de democracia. O Brasil poderia se declarar responsável por uma boa parte das fantasias mundiais -sonhos de gozo e de lânguidos prazeres.

Enfim, até a exposição da Pinacoteca me faltava um termo para designar a terceira categoria, a do exotismo mais vulgar e redutor. Achei: papel de parede. Na exposição da Pinacoteca há um extraordinário papel de parede, 15 metros de "Vistas do Brasil". Foi fabricado em 1830 e reproduzido até a Segunda Guerra Mundial. Milhares de exemplares ornaram o "quarto brasileiro" de palacetes parisienses ou provincianos. Segundo o desenhista, o papel devia permitir "viajar sem sair de casa". Tem de tudo: uma caça ao touro selvagem na baía de Guanabara, índios pendurados em ramos como macacos, negros fiéis trucidados por índios infiéis, por sua vez mortos a tiros, caça à onça e ao jacaré e, enfim, paz e felicidade numa fazenda litorânea.

Proponho chamar de papel de parede o caleidoscópio dos lugares comuns mundiais sobre o Brasil. Bem diferente dos sonhos de gozo e das nostalgias sublimes das primeiras duas categorias de imagens, o papel de parede inclui fotos de férias, folders turísticos e desinformação às vezes mal-intencionada.

No aniversário dos 500 anos, poderíamos instituir um prêmio anual Papel de Parede. Serão premiadas as piores besteiras produzidas pela fantasia européia e americana sobre o Brasil.
P.S.: Começo a anotar. Um sociólogo italiano de passagem foi assistir ao Carnaval. Segundo "O Globo", ele decretou que o Carnaval encenava a luta de classe com o objetivo de evitá-la (eta!). E achou "absurdo que não se discuta o Carnaval da forma que ele merece". Em suma, o tal sociólogo não só ignora o básico da sociologia brasileira, mas também se torna ator de um quadro temático do papel de parede: convencer os índios que o que eles têm (o Carnaval) é de grande valor, mas eles não sabem o que fazer com isso (pois eles não têm sociólogos, não é?). É o espírito das grandes companhias petrolíferas: "Deixa que te ajudo a explorar esse óleo bruto". O concurso Papel de Parede está aberto.

quarta-feira, 22 de março de 2000

A inocência das crianças



O horror da história de Jandira está obviamente na idade das vítimas e ainda mais na idade dos assassinos. O de 16 anos ainda passa. Mas como podem duas crianças de 9 e 13 anos matar colegas a pauladas, estuprar e ainda contar tudo sem nem choramingar?

As crianças, na verdade, são inocentes só graças aos esforços de nossa imaginação. Ou seja, nós imaginamos que elas sejam sem malícia e sem pecados, queremos preservá-las da pretensa corrupção da vida adulta e repetidamente declaramos que é assim que gostamos delas: puras e queridas.

É esse esforço de nossa imaginação que acaba civilizando as crianças. Elas se conformam com os anjinhos que nós imaginamos que elas sejam.

O porquê é simples: há uma série de vantagens para quem é amado. Ora, os adultos amam anjinhos. Portanto há vantagens evidentes em ser anjinho.

Nenhum cinismo nessa constatação: a educação moderna das crianças se faz desse jeito. Amando anjinhos para que as crianças tentem se identificar com eles.

Esse mecanismo é menos simples do que parece. Ele entra facilmente em crise de duas maneiras:
1. Quando não fica nada claro para as crianças como e quais são os anjinhos que os adultos gostam e amam.

2. Quando, aos olhos das crianças e de fato, os adultos não amam nenhuma imagem com a qual as crianças possam tentar se identificar. Em outras palavras, quando os pais não conseguem sonhar nem esperar nada para as crianças que produziram.

No primeiro caso, as crianças ficam com a tarefa de reconstruir ou mesmo de inventar o que os adultos querem que elas sejam.

Elas podem acreditar, por exemplo, que seja um bom negócio compor uma identidade feita de pedaços de violência hollywoodiana. Afinal, elas poderiam dizer: "Não é com isso que meus pais e a grande maioria dos adultos se divertem? Não é disso que eles gostam?".

É o que aconteceu, presumivelmente, com a série de menores americanos que nos últimos dois anos se transformaram em assassinos. A marca dessa confusão quanto ao que precisa para ser amado se revela no drama dessas crianças depois dos fatos. Não é que se sintam culpados.

Eles, sobretudo os mais jovens, se surpreendem, estranham que a mãe, por exemplo, não venha e não fique com eles. Nas entrevistas, há uma espécie de pergunta no ar: "Mas como, não era isso que vocês todos queriam de mim? Que eu fosse Rambo ou coisa que valha?".

Os três garotos de Jandira não colocam nenhuma pergunta desse tipo. Matam, estupram ou eventualmente perdem a vontade de matar. Mas em todo o caso nunca parecem ser cativos do amor. Não são reféns de nenhuma vontade de ser amados pelos adultos. Por isso eles estão fora da infância. E fora de nosso alcance

Nada de novo nisso: já sabíamos há tempo que nossa sociedade não se importa de excluir radicalmente um bom número de seus membros adultos e crianças. E ser excluído de uma sociedade moderna significa exatamente isso: ser privado da expectativa de ser amado ou gostado pelos outros. Ora, o horror de Jandira nos lembra que, num mundo que não é mais regrado por um Deus e pelo temor que ele inspira, o verdadeiro destemido, o mais perigoso de todos e para todos é justamente aquele que perdeu a esperança de ser amado.

domingo, 19 de março de 2000

A caminho de Porto Seguro


Porto Seguro - Parece que foi inventada uma língua especial para os 500 anos. Chama-se precaucionês. Ninguém quer anunciar ou mencionar (celebrar nem se fala) o aniversário dos 500 anos sem primeiro prevenir a platéia contra qualquer explosão de ufanismo maníaco. É assim: "Fique bem frio, que não há nada para celebrar; de qualquer jeito, não aconteceu nada de importante. Se algo aconteceu, foi muito errado e deu em algo pior ainda." Todos parecem preocupados com a "versão oficial". Só que, à primeira vista, a verdadeira versão unânime e oficial parece ser justamente o precaucionês que manda desconfiar da "versão oficial". Ainda não encontrei manifestações (oficiais ou não) de entusiasmo cego que justifiquem atitudes tão precavidas.

Temos razões acumuladas para desconfiar do que é "oficial". No balanço dos 500 anos, a administração pública não sai muito bem na foto.

Mas nem tudo o que é coletivo é oficial. Concordemos que, depois de 500 anos, ainda não está consolidado o sentimento de um destino comum e solidário. Nessa condição, será que podemos nos dar ao luxo de renunciar a compartilhar um aniversário?

Venho para São Paulo de TAM. O aniversário é lembrado (ninguém se alarme: sem entusiasmos excessivo) por uma carta do presidente da companhia etc. Converso commeus vizinhos de vôo: o aniversário é do Descobrimento ou do Brasil? Meus interlocutores não querem festejar o Descobrimento, que foi uma catástrofe para os índios. Se fosse do Brasil, seria diferente, mas é do Descobrimento.

Não entendo direito. O aniversário de alguém é no dia do nascimento, mas comemora sua vida toda, soleniza o quese tornou, bem ou mal. É por isso que eventualmente celebramos o aniversário da morte de um próximo, mas nunca o aniversário de um morto.

O precaucionês quer evitar a auto-satisfação babaca, que obviamente não cabe. Mas quem disse que um aniversário deve ser um momento de exaltação auto-satisfeita? Os aniversários são ocasiões de encarar a realidade, revisar o percurso, constatar os erros e projetar os remédios. As marchas dos índios e do MST (com as 500 invasões projetadas), por mais que os organizadores receiem que elas atrapalhem a ordem, fazem parte dos "festejos". Que aniversário seria para o Brasil se nessa ocasião não pudesse pensar seus fracassos como comunidade, se não se confrontasse com as caras de seus excluídos?

quinta-feira, 16 de março de 2000

A culpa e os outros méritos de João Salles

Em 1997, no morro Dona Marta (Rio de Janeiro), João Salles filmou um documentário justamente famoso, "Notícias de uma Guerra Particular". Assim ele conheceu Marcinho VP, traficante, acusado de homicídio. Criou-se, se não uma amizade, uma curiosidade recíproca. João propôs para Marcinho uma bolsa de R$ 1.200 por mês se ele abandonasse o tráfico e tentasse escrever um livro sobre sua vida. Funcionou durante quatro meses.

Quando isso veio à tona, logo antes do Carnaval, deu um estorvo no governo carioca e pano para debate. João foi generoso ou ingênuo? Inventou uma passarela entre morro e asfalto ou apenas ajudou um foragido?

Um amigo, parado numa sinaleira carioca, olha ao redor circunspecto e comenta: "Precisa tomar cuidado por causa dos bolsistas...". Os chistes vingam, como sempre, para assinalar e esconder alguma verdade doída. No caso, trata-se da ferida que divide a "cidade partida". Mas também de contradições que não valem só para o Rio: paradoxos de nossa cultura. Eis quatro pontos, só para começar a pensar.

1. Nós, modernos, não acreditamos em essências subjetivas, mas na possibilidade de cada um mudar radicalmente. Com isso, nossas legítimas pretensões de segurança e de vingança se chocam com a suspeita de que, na hora da punição, o criminoso poderia não ser mais o mesmo sujeito que nos lesou. Como punir quem pode mudar? Imaginou-se um sistema penal paradoxal, que ofereceria ao mesmo tempo segurança e vingança para as vítimas e uma chance para os criminosos mudarem. Neste sistema, Marcinho se emendaria redigindo suas memórias atrás das grades. Tudo bem, mas como fica se de fato o sistema penal é só punitivo?

2. Alguns evocam a "ingenuidade" de João Salles. É engraçado, eu não vejo nenhuma ingenuidade na paixão moderna de reformar, educar e salvar aos outros. A modernidade começou batizando e convertendo à força índios, negros e judeus. Supostamente buscando o bem.

A fantasia de redenção segue ativa em nosso cotidiano: há o homem que casa com uma prostituta para tirá-la da rua e a mulher que sonha em seduzir um homossexual.

Esta vontade de mudar os outros é a face escondida de nossa tolerância: "somos ambos humanos", dizemos ao próximo, "mas quero te mudar. Aceito você, mas não assim como você está". Adoramos ser São Jorge liberando a donzela, mas evitamos de nos perguntar: e se a donzela gostasse de ficar cravada na rocha pelo bafo do dragão?

Pessoalmente, como João Salles, agiria para conquistar a alma de um Marcinho. Mas este esforço é eventualmente uma violência, não uma ingenuidade.

3. Por que querer salvar logo um bandido? Não há remédio: a modernidade é fadada a idealizar o fora-da-lei -cangaceiro ou hollywoodiano. Somos individualistas, vivemos proclamando que nossa liberdade estará acima de toda imposição social. Mas, para conseguir viver com os outros, tragamos -resignados e um pouco covardes- qualquer dose de conformismo. Com esta amargura na garganta, como não criar romances com a vida (miserável) de quem sai atirando nas margens?

4. Entrevistando João Salles para a revista "Veja", Thais Oyama observou: "Muita gente classificou sua atitude como uma tentativa de expiar uma culpa pelo fato de ser muito rico" (a família Salles é dona do Unibanco). João Salles: "É difícil que alguém neste país não tenha culpa social". Oyama de novo: "É melhor fazer algo movido a culpa que não fazer nada?".

Oyama se faz porta-voz de um lugar-comum de nossa cultura: o gesto que se origina na culpa perde sua nobreza, pois hoje é "cool" estar satisfeito consigo mesmo, sem reservas. A culpa está fora de moda.

O modelo dessa culpa culpada é: gostamos de geléia, a mãe decidiu que não, porque é quaresma. Desejamos a geléia, mas, por sentir culpa, aceitamos a frustração. Ou então roubamos uma colherada e, pela mesma razão, não aproveitamos direito. Em suma: a culpa seria submissão a valores que não são de nosso feitio e que nos impedem de gozar das coisas que desejamos.

Mas a história da geléia proibida é um modelo arcaico de culpa, afastado da experiência contemporânea. Com poucas exceções patológicas, nós, modernos, saboreamos a geléia sem lágrima nenhuma. Nossos apetites se legitimam sozinhos e se deixam dificilmente culpabilizar.

A culpa que João Salles reivindica é a culpa moderna: nesta, nossos desejos são a autoridade suprema, portanto é com eles que ficamos sempre em dívida. Não somos culpados de desobedecer a interdições de geléias variadas. Hoje nos sentimos culpados quando não conseguimos fazer o que desejamos.

Alguns de nós, como João Salles, têm anseios de justiça -uma vontade de mudar o mundo, de torná-lo melhor. É fácil ficar em dívida com este desejo, se sentir culpado de não conseguir realizá-lo.

Outros não conhecem esta culpa. Uma emergente, ao perceber olhares de inveja, comenta, feliz: "O povo me adora". Ela, por exemplo, não se sente culpada, porque não deseja, nunca desejou mudar nada.

segunda-feira, 13 de março de 2000

A batalha pela alma de Elián González

Elián González é o menino cubano que perdeu a mãe no naufrágio do barco que o levava à Flórida. Os parentes e a comunidade cubano-americana de Miami querem que ele fique nos EUA. O pai quer que ele volte a Cuba.

Passei por várias fases. Uma fase pró-cubanos de Miami, na qual desconfiava do pai. Pedindo o filho de volta e falando para a pátria ultrajada, ele não estava sendo coagido por Fidel?

Depois, houve a fase indignada com o pós-feminismo: parecia-me evidente que, se fosse o inverso, ou seja, se o pai tivesse se afogado e a mãe estivesse em Cuba pedindo o filho de volta, o rapaz já estaria no avião para casa.

Houve a fase legalista: respeitemos as leis americanas de imigração. Elián, sendo menor, nem pode pedir asilo. O resto é politicagem. Deixei essa fase para a proposta tanto de Bush quanto de Gore: por decreto, outorguem direito de residência a Elián, assim a questão de saber com quem ele fica sairá do direito de imigração e irá para a vara de família, onde prevalece o interesse da criança. Mas qual é o interesse da criança?

Aí outra fase pró-cubano-americanos, simplesmente porque tenho alergia a todo regime que impede seus sujeitos de viajar livremente. Lembro-me dos 63 civis desarmados que tentavam emigrar de Cuba em 1994 e foram assassinados por agentes do governo cubano. Havia 12 crianças entre eles. Por que Elián voltaria para isso?

Por outro lado, um cubano de Miami levanta este cartaz: "A liberdade antes da paternidade". Ou seja, ser livre é mais importante do que ter um pai. É uma versão da regra moderna: crescer não é se conformar aos pais. Mas estamos dispostos a desconsiderar os laços de família por ideais políticos? O que diríamos de uma criança que, em Cuba, denunciasse as simpatias subversivas dos pais seguindo o mesmo princípio?

Imaginei uma solução: devolvam Elián para o pai e autorizem que ele volte para os EUA mais tarde, quando ele quiser visitar seus tios ou mesmo para ficar -só para dizer que americano não rejeita criança que naufragou. Feito. Vamos cuidar da vida.

Mas a figura de Elián segue reinando na imprensa americana e nas conversas sociais. Por quê? A luta ao redor de Elián é uma parábola que propõe uma explicação de quase meio século de nossa história.

Uma comentadora teme que, de volta para Cuba, Elián passe por uma lavagem cerebral. Outros perguntam então como a gente chama a reeducação americana pela qual Elián está passando agora pelas mãos de seus parentes de Miami. Não é lavagem também?

Elián é a derradeira aposta da Guerra Fria. A batalha pela sua guarda e sobretudo pela sua alma é que justifica a Baía dos Porcos, o Vietnã e a Coréia.

A luta é e sempre foi, de fato, entre Mickey Mouse e Fidel Castro ou entre Stakhanov e o Pato Donald. Nessa luta, o Che foi o campeão da esquerda, mas não tinha como ganhar -mais sozinho contra Hollywood do que contra o Exército boliviano.

Eis que Elián volta de sua primeira visita a Orlando, onde foi beijado pessoalmente por Mickey. Na primeira página dos jornais, Fidel, em Cuba, rivaliza e beija a testa do irmãozinho de Elián. Quem beija com mais carinho: Fidel ou Mickey?

Sempre soubemos que a Guerra Fria era sobretudo cultural. Graças a Elián, aparece enfim que, de fato, era uma competição onírica para ver quem conseguiria encarnar o sonho das crianças.
Pouco importa quem organiza melhor a produção, pouco importa quem é mais rico e quem é mais justo, já que, afinal -considerando o lugar extraordinário das crianças e dos jovens no imaginário ocidental moderno-, a questão derradeira é: com quem e com o que sonham as crianças? Pois para lá iremos ou, no mínimo, irão nossos corações.

Os EUA sempre se definiram como a terra das oportunidades. Ora, as crianças e os jovens, para nós modernos, são exatamente isso: os depositários das oportunidades que desperdiçamos. Logo, os EUA são o campo dos sonhos dos jovens. Não deu outra. Os jovens podem contestar o projeto hegemônico americano, discordar, opor-se. Mas seus sonhos são americanos. Assim foi perdida a Guerra Fria, a golpes de rock and roll, calça Levis e batata Pringles (por exemplo).

Provavelmente Elián voltará para a ilha junto com o pai dele e sob o olhar atônito da comunidade cubana de Miami, que não entende como esse homem possa querer voltar para casa.

Vejo a acumulação de brinquedos no pátio de Elián em Miami. Surpreendo o brilho no olhar de Elián sorrindo para os manifestantes na frente de casa: está gostando de seus 15 minutos de celebridade. Constato, por outro lado, a estética austera do outdoor que o governo cubano começou a desdobrar em Cuba: "Devolvam Elián à sua pátria", dizem.

Só falta que, na volta para Cuba, Elián tenha de escutar um discurso de Fidel de três horas. Vai acabar pulando no mar à procura de sua mãe e da Flórida.

Um oficial republicano da guerra da Espanha inventado por Hemingway, observando seus aviões indo para mais uma batalha perdida, dizia: "Como sempre, estamos fodidos". E olhem que, ao ser inventado, ele nem sabia que Hemingway era americano.

quinta-feira, 9 de março de 2000

Viva o Carnaval na Sapucaí

A Sapucaí tem um lado cruel. Na avenida não há ninguém para editar piedosamente as imagens.

Impossível não ver o apoio de destaque e harmonia ou os empurradores atrás dos carros alegóricos. Os diretores de ala puxam, empurram, mandam parar ou correr. Há fantasias que se desfazem antes da hora. Aquele lá perdeu um sapato. Outro foi para a avenida com um tênis preto que destoa e brilha no meio das sandálias douradas. Aí há dois que, em vez de sambar, não param de conversar.

As mulheres e os homens mais bonitos, nus, ou quase, no destaque, enchem a tela da televisão. O telespectador pode imaginar que os corpos de todos sejam formosos e apetecíveis. Mas na Sapucaí, de perto, entre as lantejoulas, aparecem muitas carnes brancas e trêmulas, um pouco enjoativas.

Em suma, pode surgir uma dúvida: não era melhor na TV, tudo bonito, tudo aparentemente espontâneo, um milagre de alegria, sem falhas e sem erros?

Há quem ache isso mesmo. Tarde na noite de domingo, num camarote, há três homens (turistas) e três meninas. Enquanto as meninas sambam, um dos homens, bêbado, deitado no chão, contempla na TV a versão Globo do desfile que está passando logo atrás dele. Os dois restantes preferem fazer sua própria edição. Um olha para a avenida pela telinha de sua videocâmara. Ele prepara a versão uso família: nudez permitida, mas sem provocações. O outro prepara a versão dura: só fotografa as mulheres que respondem obscenamente às suas tentativas (eficazes, aliás) de chamar a atenção.

Afinal, eles estão vivendo um bom momento, quem sabe um sonho. Por que não editá-lo na hora? Na mesma linha, não me estranharia que, um dia destes, um prefeito do Rio colocasse telões gigantes no sambódromo para que possamos, estando na Sapucaí, ver nossa alegria já editada e, portanto (dirão), mais perfeita.

Na fila para comprar os ingressos para o baile do Scala, um jovem quer o baile de sábado, que é o bom. Cinquenta reais é muito, ele diz, mas desta vez ele vai, seja qual for o preço. Confessa: "Não aguento mais ver isto só na televisão".

Ele não vai se decepcionar. Afinal, está já com a experiência editada por anos de Scala na TV. Sua lembrança será igual a seu sonho televisual acumulado, mais a certeza de que ele esteve lá de verdade.

Mas voltemos à Sapucaí. O milagre é que a avenida ganha da TV. Gosto das imperfeições, dos ventres moles, dos sambas de pato bêbado e das fantasias quebradas. É isso que me comove. Reconheço-me no esforço de todos justamente porque é um esforço heróico, obstinado e fracassado.

Mas de qual esforço estou falando?

Sábado à noite, desfilando na avenida, às vezes a harmonia enfraquece, a mágica parece estar prestes a se desfazer. Aprendo logo que o remédio é levantar os braços e os olhos para a arquibancada ou os camarotes, pedindo um retorno: dancem, se mexam, se empolguem conosco.
Nas noites seguintes, como espectador, verifico que é difícil recusar este apelo. Uma vez encontrado um olhar lá embaixo, fica impossível não sacudir e acompanhar. O samba é de todos, porque é de todos o esforço de se ver felizes. É para isso que serve o desfile: a arquibancada se vê na escola e a escola se vê na arquibancada. Juntas se confirmam na vontade de alegria.

Afinal, todos precisamos nos ver de alguma forma. Isso pede invenção e manutenção. O Carnaval é como a malhação anual coletiva necessária para manter a imagem, o "look" que a gente quer. E a imagem aqui na Sapucaí é honesta: não é alegria televisiva ou babaca. Ao contrário, é a própria imagem do esforço que custa passar pela vida mantendo o sorriso e o samba no pé.

Ninguém aqui confunde a fantasia com a roupa de cada dia e todos sabem que a fantasia é imperfeita e embaraçosa.

Há outras maneiras de ver, certamente. As mais patéticas são as que tentam passar por outra coisa que não fantasias.

Por exemplo, alguns anos atrás, um psicanalista francês passou o Carnaval no Rio. De volta à França, declarou a uma assembléia admirativa que o Carnaval carioca era, como ele se expressou, "uma experiência de gozo especular". Até aí tudo bem.

Mas era óbvio, na fala, um desprezo para os índios que gostam de ser alegres e de se olhar nesta alegria. Na verdade o desprezo era pelo simples fato de os índios gostarem de se olhar - ponto. Subentendido: "A gente aqui em Paris não brinca com espelhinhos; a gente nem precisa se ver; a gente, aliás, prefere ser do que se ver". O engraçado é que ele falava numa situação absolutamente parecida com a Sapucaí: ele falava e sua arquibancada só queria se espelhar nele. A única diferença é que, naquele caso, todos queriam se ver não alegres e felizes, mas metidos a besta. Conseguiam muito bem.

Breves:
Por que a bandeira estampada em camiseta ou sutiã pode, mas desenhada no corpo não pode?
Adorei Roberta Close como símbolo da liberdade de escolha. São as verdadeiras "Diretas Já".
As impressões de Carnaval são como um bloco que deveria se chamar A Cada Ano Sai Diferente.

segunda-feira, 6 de março de 2000

Atenção: homens e mulheres trabalhando



Na segunda-feira, o Nasdaq -índice das ações da dita nova economia- fechou em forte queda. Na terça, a coisa piorou. Será que a bolha explodiu?


Não sei, mas a pausa na euforia dá um alívio. Pois é duro aguentar a presença maciça da Bolsa de Valores na vida cotidiana americana e, aos poucos, mundial.


Lembra-se do Brasil dos anos 80? Era difícil passar um dia sem debater o que fazer hoje: comprar dólares, colocar no curto prazo, abrir uma caderneta ou entrar num consórcio? Parecia uma manobra de diversão, para que a gente esquecesse as urgências sociais e políticas. "Revolução? Pode ser, mas deixe primeiro passar no banco."


Hoje, nos EUA, fala-se de investimentos tanto quanto no Brasil daquela época. Só que positivamente: o problema não é como evitar a corrosão inflacionária, mas como não perder o trem da alegria. E o trem é um só: a Bolsa de Valores.


Não foi sempre assim. Até recentemente, a Bolsa era coisa de profissionais -caricaturas de terno e charuto, condensadas ao redor de Wall Street.


Como o capitalismo americano conseguiu produzir uma nação de investidores? Simples: confiando a cada um a tarefa de investir livremente o dinheiro de sua aposentadoria. Um pouco como se, no Brasil, todos tivessem a liberdade de administrar seu fundo de garantia.
Consequência: uma massa de dinheiro fluiu para a Bolsa, valorizando o mercado. A isso acrescenta-se, nos últimos anos, a possibilidade de investir por computador, ou seja, de comprar e vender ações com comissões irrisórias e de dispor das mesmas informações que um profissional.


Por que se queixar? Não é esse o milagre de uma sociedade em que cada cidadão (ou quase) seria diretamente interessado na prosperidade do sistema inteiro? Não é bonito que os trabalhadores invistam suas economias apostando num futuro do qual eles são todos sócios (embora minoritários -desculpe a ironia)?


Talvez seja preconceito de velho esquerdista, mas receio que, com, isso tenhamos sobretudo atingido o fundo do poço. Nunca a experiência da economia foi tão afastada das condições concretas do trabalho, da produção e da vida.


Por exemplo, imaginemos que em janeiro você tenha feito a contribuição (obrigatória nos EUA) a seu fundo de aposentadoria -sei lá, US$ 1.000 . Logo precisa investi-los. Você está sabendo que a biotecnologia é quente e investe nessa direção. Em um mês, seus US$ 1.000 se tornam US$ 1.700. Mas eis que 15 dias atrás Clinton declara que não é bom nem legítimo patentear fragmentos do genoma humano sem nem saber para que servem. As perspectivas de lucro da biotecnologia parecem de repente menores do que se pensava. O setor despenca.


Questão: você consegue aceitar que é moralmente justo que o genoma não seja objeto de patentes e que não se lucre com informações preciosas para a vida de milhões de pessoas? Ou você só pensa que essa brincadeira política de Clinton lhe custou US$ 500 em poucas horas? E, caso você se reconheça na primeira possibilidade, como fica se, em vez de US$ 500, fossem US$ 50 mil?


Na verdade, a popularização do investimento na Bolsa não inventa nenhum tipo novo de participação social. Ao contrário, ela vulgariza o espírito de tubarão, ou seja, a substituição de qualquer problemática moral por interesses particulares e imediatos. O homem da rua adotou o espírito do banqueiro de Londres, como diria Mário de Andrade. Para o trabalhador transformado em investidor, a economia torna-se um jogo abstrato. Uma fábrica que fecha ou uma fila de desempregados são indícios para a compra ou venda de títulos, os quais lhe aparecem paradoxalmente como sendo a economia real. Pergunta-se como o trabalhador, tomado na rede das cotações, concebe seu próprio trabalho, seu lugar no mundo e eventualmente seu próprio lugar na fila dos desempregados.


Por medida de saúde pública, proponho que, nos sites de investimento, seja imposto o uso de um programa pelo qual, a cada vez que o usuário clica para comprar ou vender ações, opções ou outros instrumentos desse tipo, apareça uma janela piscando: "ATENÇÃO: HOMENS E MULHERES TRABALHANDO".


PS: Com a queda do Nasdaq, muitos se perguntarão se a nova economia acabou.
A nova economia se distingue porque nela o valor de uma ação não está ligado à previsão de lucros da empresa. Ora, ela não vai acabar tão cedo, pois é nossa filha legítima. Em nossa cultura, vale o que é desejado, invejado, procurado. Isso é o caso dos produtos e dos sujeitos. Por que não seria o caso das empresas?


Quando o público se torna investidor, a Bolsa funciona como um mercado ordinário: a imagem de uma empresa prevalece sobre sua qualidade intrínseca.


Ninguém se preocupa em saber se, de fato, a intervenção de Clinton modificou as perspectivas de lucros da biotecnologia. O que importa é que assim pensou o público, ou melhor, importa que se preveja que o público pensará assim.


O expert em investimentos é cada vez mais o expert em marketing, pois a nova economia é uma economia de massa e de opinião.

quinta-feira, 2 de março de 2000

Walter Benjamin e "Terra Nostra"

Quarta-feira, nas comunidades brasileiras dos EUA, é o dia em que chegam as fitas da Globo: a semana de novela das oito ou das sete, o resumo do "Jornal Nacional" e os seriados.

Os capítulos das novelas são gravados sem propaganda. Acelerando títulos, retomadas e diálogos repetitivos, um espectador bem treinado assiste a uma semana de novela em duas horas. Nesse processo, aliás, a novela se enxuga e ganha, como se recebesse uma editoração final.

Passo na minha loja brasileira preferida, Terra Brasilis, em Brookline, e pego a dose semanal de "Terra Nostra". Por coincidência, acabo de comprar "The Arcades Project", de Walter Benjamin (Harvard University Press). É a tradução das notas que Benjamin deixou na Biblioteca Nacional de Paris quando, em 1940, fugiu da França invadida pelos nazistas, foi detido na fronteira da Espanha e acabou se suicidando.

Acidentalmente, o volume fica sobre o balcão da loja, junto com a última fita de "Terra Nostra". Os dois objetos parecem compor uma metáfora surrealista. De um lado, mil páginas de fragmentos, fichas, reflexões e citações, uma sublime polifonia filosófica sobre a sociedade moderna. Do outro, um produto televisivo, que certamente Adorno e Horkheimer -outros filósofos da escola de Frankfurt- teriam desprezado como dejeto da "indústria cultural".
O fato é que gosto dos dois. Sou muito feliz por ir para casa com meus dois pacotes.

Preciso esclarecer: assisto "Terra Nostra" sem pretextos. Não planejo nenhum pós-doutoramento sobre a Rede Globo e a ideologia da classe média brasileira. Nada disso. Se fico um tempo com Gumercindo, Francesco, Paola, Giuliana, Matteo etc., não é na esperança de surpreender um novo aspecto da cultura de massa. Ao contrário, faço parte da massa: gosto de seguir a história, gritar de horror contra a pérfida dona Janete ou exortar José Alceu a aceitar, enfim, Antenor como pai. Torço e comento com amigos e parentes.

Aliás, esta é a façanha das (melhores) novelas: invadem a conversa cotidiana, mobilizam afetos, crenças e opiniões, ou seja, elas nos transformam no coro de uma tragédia grega. Impondo-nos esse exercício, elas enriquecem ou mesmo inventam nossa cultura popular. E a cultura popular é o conjunto (grande ou pequeno) das verdadeiras razões pelas quais temos um destino comum como povo: mitos, lendas, histórias que compartilhamos.

"Terra Nostra" não puxa as lágrimas só no Brás ou na Mooca. A coragem, as penas e as alegrias da imigração italiana em São Paulo valorizam para todos a narrativa da cidade, do Estado e, enfim, do Brasil. Em suma, "Terra Nostra" torna essa terra "nossa" para todos os brasileiros.
Ora, eu gosto de Benedito Ruy Barbosa e de Benjamin no mesmo dia, sem problema e sem dilemas. A contradição vem de fora, dos vários Adornos que policiam as ruas da cultura. Perguntam-me: se você se deixa seduzir, como você mantém sua distância crítica, como se guarda das armadilhas "made in Globo"?

Ocorre-me que essas eram também as objeções que Benjamin recebia de Adorno. Benjamin queria escrever sobre as "arcades", ou seja, as passagens ou galerias de lojas onde, na Paris do século 19, as mercadorias se propuseram pela primeira vez como o verdadeiro arcano da modernidade. A variedade dos objetos oferecidos e dos passeantes descobrindo o prazer das compras lhe pareciam compor um rébus cuja solução diria quem somos hoje.

Ora, para Adorno já devia ser problemático que Benjamin procurasse a verdade do mundo moderno na fantasmagoria do consumo, e não na porta das fábricas. Pior ainda que ele desse mais importância aos sonhos dos modernos lambendo vitrines do que às condições reais de existência no mundo industrializado. E devia parecer catastrófico que Benjamin fosse ele mesmo um sonhador, "flâneur" sonâmbulo, seduzido pela cidade e as luzes das lojas.

Por pressuposto (dos Adornos), a massa, seja ela de telespectadores ou de consumidores, é alienada. E, para salvá-la (tarefa nobre), é necessário, primeiro, sair dela.

Ora, reivindico o direito de pensar sem me excluir da massa. Escrevo esta coluna para conquistar o direito de falar de "Terra Nostra" sem encontrar o sorriso de comiseração dos amigos intelectuais.

Pergunta: por que será que a partir do século 18 pensar passou a exigir um desprezo do comum? Logo quando caem as barreiras de casta do antigo regime, quando a igualdade de direitos ameaça pôr fim aos privilégios, eis que a inteligência promete um novo privilégio: uma aristocracia de gostos e de saberes. Curioso, não é?

P.S.: Os críticos americanos que escrevem nestes dias sobre o livro de Benjamin perguntam ironicamente: "Meu Deus, o que Benjamin diria dos shopping centers de hoje?". Subentendido: ficaria horrorizado, ele que apreciava as elegantes "arcades" de Paris. Tentam, em suma, adornizar Benjamin. Ora, eu acredito que ele se perderia em nossos shoppings como nas "arcades" de Paris.

Pois ele seguiria achando que são esses os lugares onde se desdobra a complexidade sedutora de nosso mundo.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2000

A terapia da faca e do superbonder

Há crianças que nascem com uma malformação dos órgãos sexuais suficiente para que surja uma incerteza quanto ao sexo do recém-nascido.

A partir dos anos 50, uma equipe da Johns Hopkins University se especializou em resolver essas dificuldades. Eles eram capitaneados por um psicólogo, John Money, o qual estava convencido de que a chamada identidade de gênero (o fato de a gente se sentir homem ou mulher) era um efeito da educação recebida. Ou seja, segundo ele, pouco importavam os hormônios: as crianças viveriam como machos ou fêmeas por serem criadas brincando -quer seja de bonecas e panelas, quer seja de metralhadoras e caminhões.

Portanto, concluía Money, nos casos em que o sexo anatômico não aparece claramente definido, basta optar firme para o sexo mais fácil de ser reconstruído cirurgicamente. Em seguida, resta tratar a criança como menino ou menina, de acordo com o resultado da operação. A faca escolheria o sexo, e o sentimento de identidade iria se adaptar à nova realidade anatômica.

Os casos tratados pela equipe de Baltimore eram todos de crianças que apresentavam órgãos sexuais confusos e, portanto, também deviam sofrer de algum descompasso hormonal. Faltava um caso que demonstrasse a doutrina sem equívocos. O destino ofereceu a Money essa chance quando o pequeno Bruce Reimer caiu em suas mãos.

A história desse mártir do obscurantismo acaba de ser contada de maneira magistral por John Colapinto, no livro "As Nature Made Him" (HarperCollins), que se lê num sopro de indignação. Em 1966, Bruce e Brian Reimer, irmãos gêmeos, aos seis meses, foram submetidos à circuncisão.

A de Bruce não deu certo, e o pênis da criança foi irreparavelmente queimado. Na época, as perspectivas de cirurgia reconstrutora eram incertas. Os pais encontraram Money e o grupo de Baltimore, para quem Bruce era o caso pedido a Deus: não um hermafrodita, mas um menino normal, com cargas hormonais normais -apenas amputado. Com ele, seria possível mostrar sem ambiguidade que o gênero é só uma questão de educação. Money propôs então transformar Bruce em menina. A criança foi, portanto, castrada (ablação de testículos e escroto), rebatizada como Brenda e criada como menina. Em perspectiva: outras cirurgias para criar uma vagina funcional e hormônios na puberdade, para desenvolver seios e aparência feminina.

Durante anos, Money permaneceu cego ao sofrimento de Bruce/ Brenda -apresentou o caso como um completo sucesso. A fraude foi revelada só em 1997. E hoje Reimer, que decidiu se chamar David e voltou a ser o homem que de fato ele nunca deixou de ser, conta seu calvário.
Lições urgentes de serem ouvidas:

1. Money defendia a idéia de que a educação pode tudo e a biologia não apita nada. Essa idéia era progressista: foi nela que o movimento feminista se apoiou para mostrar que o lugar subalterno da mulher na sociedade não é uma necessidade biológica. Hoje, uma parte do movimento gay acha progressista afirmar que as orientações sexuais são decididas biologicamente. Moral: as ideologias mudam. Portanto, é bom deixar a ideologia na gaveta, sobretudo quando ela comanda uma faca.

2. Os defensores da primazia da educação sobre a biologia castraram Bruce Reimer. Os defensores da primazia oposta já lobotomizaram cérebros e ainda vão cortando. Não está na hora de aceitar que a verdade esteja no meio? Ou seja, que somos uma complexa e indissociável mistura de carne, palavras e imagens, em que não vem ao caso decidir qual dos três pode mais? Um pouco de humildade não faria mal a ninguém.

3. Psiquiatras e psicólogos pensaram que era possível criar Bruce como se ele tivesse nascido menina. Eles acreditaram que os pais nada transmitiriam de sua raiva, de sua frustração ou mesmo de seu sentimento de culpa. Acharam que seria possível organizar a vida de uma criança ao redor de uma mentira sem que isso transparecesse. É só dar as instruções certas para o comportamento dos familiares. Mas quem lhes deu um diploma?

4. Paul McHugh, atual chefe do departamento de psiquiatria de Johns Hopkins, compara as práticas de Money com a lobotomia e encoraja os psiquiatras a voltar a escutar seus pacientes, abandonando as práticas radicais. Ainda hoje, cirurgias irreversíveis são promovidas, por exemplo, na cura de neuroses obsessivas. Antes de confiar os pacientes à faca, cortando cabeças em cima ou em baixo, é bom refletir sobre a história de David Reimer.

5. A pressa em cortar, de Money e de outros, pode parecer um desejo de consertar as coisas. Algo não está certo? Eles querem resolver logo, antes que comece a doer. Chegam de faca e superbonder. Foi esta a idéia com Bruce Reimer: conserta logo antes que ele se dê conta. Não lhe deixa o tempo de urrar à Lua pelo horror do qual foi vítima. Será que é generosidade? Ou então covardia de terapeutas que não querem ouvir a dor de seus clientes? Na pressa de consertar, nós acabamos de ver para o que serve realmente a faca. O superbonder serve para colar a boca do paciente.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2000

Um "custo Brasil" a mais

Leio na imprensa americana uma história de corrupção. O superintendente das escolas de Lynn, Massachusetts, é acusado de ter promovido indevidamente sua própria mulher, empregado seu advogado pessoal sem licitação e outras coisas parecidas. Numa outra cidade, uma figura análoga gastou US$ 600 mil para consultorias não muito bem definidas e, sobretudo, em parte efetuadas pela sua irmã.

A corrupção brasileira e a americana não são muito diferentes: banalidade e universalidade da mesquinhez.

Mas há uma diferença notável entre os relatos de corrupções tão parecidos. Os relatos americanos (tanto na imprensa quanto nas conversas de bar) são factuais e pouco indignados. É muito raro que eles sejam acompanhados por considerações gerais sobre a malvadeza humana, e é impensável que o acontecido seja atribuído a algum traço do suposto caráter americano. A caricatura nacional não é nunca invocada como explicação.

Os relatos brasileiros, ao contrário, assumem um tom autoflagelador. O pior nos é reservado por estarmos no Brasil e sermos brasileiros: "Meus irmãos, somos sem-vergonha, malandros, aproveitadores etc.". Não que o Brasil seja só isso, mas o que há de ruim em nosso destino é o preço que pagamos por estarmos respirando ares culturalmente mefíticos no sovaco desse gigante.

Pelo mundo afora, todos indivíduos, grupos, famílias, sociedades sofremos de passivos herdados. É ótimo investigar esses passivos, para melhor ultrapassá-los. Essa é, por exemplo, uma das funções de qualquer psicanálise. Mas não seria preocupante se, cada vez que eu fizesse uma besteira, me consolasse e desculpasse alegando meu "custo Contardo"? "Oh! Não paguei impostos? É "custo Contardo", sabem como é, minha família nunca gostou mesmo."

Em suma, certamente há um "custo Brasil", ou seja, uma série de dificuldades que devemos à história do país. Mas há também um "custo Brasil" suplementar e talvez mais oneroso, que é um efeito retórico.

O Brasil, por exemplo, rouba a cena de nossas narrativas. Sinto falta de histórias que sejam de amor, de ódio, de aventura ou simplesmente de vida e nas quais o Brasil não seja um protagonista sorrateiro, mas sempre crucial. Será que é possível se apaixonar na Lapa, transar nos motéis da marginal, jantar no edifício Itália, descer para Santos num domingo, sem que o mau governo, a injustiça social, os problemas do trânsito, o passado bandeirante, os restos da escravatura e todos os traços da identidade nacional sejam convocados para contar, legitimar e justificar a história?

Esse "custo Brasil" retórico empobrece também nossos esforços de compreensão. Ele induz à preguiça do pensamento e inibe a ação. Pouco adianta dar respostas concretas para os problemas que nos assolam, pois a causa do que não funciona é sempre mais geral e, por isso, está fora do alcance. Por exemplo, imaginemos que a produtividade brasileira esteja baixa. Poderemos reconhecer que o protecionismo serviu à miopia de empreendedores pusilânimes, os quais aproveitaram das vacas gordas sem modernizar o aparelho produtivo. Mas logo chegaremos a uma causa originária: por exemplo, os ditos empresários encheram seus bolsos, em vez de modernizar suas fábricas, porque as elites brasileiras são uma herança do extrativismo colonial etc.

As coisas vão se explicando, até que em última instância tudo acontece "porque o Brasil". Poderia se tornar uma expressão sem verbo: há criminosos porque o Brasil, há corruptos porque o Brasil, há caudilhos porque o Brasil, há favelados porque o Brasil. E por aí vai. Melhor, por aí não vai a lugar nenhum, pois o Brasil torna-se assim a figura retórica do primeiro motor imóvel de todas as cadeias causais. Ele é portanto imutável, igual a si mesmo.

Esse Brasil retórico, origem de todos nossos infortúnios, vinga por ser também nosso sumo bem, nossa consolação: ele responde a nossas perplexidades, autoriza nossa inação e sobretudo cimenta nossa comunidade. Ele é uma língua compartilhada, que nos torna todos amigões. Graças a ele, podemos olhar para a Câmara Municipal, para o engenheiro que escravizou sua empregada, para o deputado do narcotráfico e piscar o olho uns para os outros, sorrindo encantados: "É isso aííííí!". Eis que nossos males são do Brasil, do mesmo jeito que os gols são da seleção. É o encontro festivo com uma imagem fácil e pitoresca que nos propõe prazeres narcisistas clandestinos.

Vivo, como muitos outros, uma contradição. Por um lado, há a paixão de entender uma herança que mistura ativos e passivos com a esperança de conseguir assim preparar um futuro melhor. Pelo outro, a irritação com o recurso contínuo a essa herança, em que a fascinação complacente nos imobiliza, como se, logo na hora de agir, Carmen Miranda saísse no palco e pedisse para permanecermos sentados para o show.

Melhor confessar, para que se entenda do que estou falando: ontem, um amigo me contou de um horror brasileiro qualquer. Seus olhos brilharam, irônicos, mas complacentes, ao concluir: "Isso é o Brasil!".
Pois é, não quero mais isso.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2000

A Europa apavorada consigo mesma

Um partido de inspiração aparentemente neonazista entrou na coalizão que governa a Áustria.

Ele representa quase um terço do eleitorado. A Europa está apavorada. Deve ser consigo mesma, pois, na verdade, o sucesso da extrema direita européia não é nenhuma novidade. Na Itália, ela já esteve no governo. Na França, conquistou administrações regionais e municipais. No resto da Europa, ela é uma presença violenta e constante.

Atrás dos apetrechos nostálgicos -suásticas e braços erguidos-, há hoje um denominador comum simples e popular: o ódio aos imigrantes.

Os europeus são uma espécie em via de desaparição. Em poucos anos, na Europa, haverá um aposentado para cada dois trabalhadores ativos: uma carga insustentável. É necessário receber imigrantes.

Ora, acontece que a União Européia não se apresenta como uma etnia. Nem como um território. Também nega que esteja reunida ao redor de vulgares interesses econômicos. Ela quer se definir, em suma, como uma herança espiritual, ou seja, uma cultura.
Acontece também que os candidatos a imigrar para Europa vêm do mundo muçulmano, da África negra ou dos países eslavos ex-comunistas.

A essas três categorias de imigrantes são reservados sentimentos diferentes.

Os eslavos são desagradáveis concorrentes no mercado dos empregos de base ou então candidatos à delinquência.

Os africanos negros são mais tolerados que os muçulmanos: o inquietante não é a cor da pele. O racismo europeu é cultural. Ora, os negros africanos, aos olhos dos europeus, vêm de culturas primitivas e subalternas. Seu destino presumível, a médio prazo, é a colonização de seus espíritos: por mais que sejam negros, se tornarão europeus de alma.

Os muçulmanos são os mais detestados, pois, ao contrário dos negros, são altivos e antagônicos: o Islã é uma cultura forte, se não expansionista, no mínimo autônoma. Em outras palavras, os negros africanos podem ocupar as ruas de Paris ou Viena, pois, de qualquer forma, consola-se a direita européia -colonizaremos suas mentes como, no passado, colonizamos seus países. Os muçulmanos, ocupando as mesmas ruas, não abrem seus espíritos aos charmes europeus. Quem sabe eles até tentem corromper nossas mentes.

A raiva xenófoba se alimenta hoje desta contradição: o continente precisa de imigrantes para sobreviver, mas ele não sabe lidar com culturas diferentes sem se sentir ameaçado em seu fundamento.

As soluções (capengas) a esta contradição têm um custo econômico alto. Limitar a chegada de imigrantes significa parar de crescer. Impor uniformidade cultural para aqueles que imigram, assimilá-los à força, não é só ideologicamente intolerável, é também ruim para a diversidade do consumo.

Fora da Europa, há países que prosperam evitando estes impasses: os EUA se mantiveram abertos à imigração e veneram as diferenças culturais. Nos últimos 50 anos, eles inventaram assim, dentro de sua própria sociedade, uma espécie de modelo para uma globalização bem-sucedida. A proposta é: podemos e devemos ser todos diferentes, à condição de que tenhamos em comum o desejo de prosperar e de que nossa diferença não interfira na prosperidade.

As peculiaridades (etnias, estilos de vida, orientações sexuais etc.) são exaltadas, garantindo uma rentável diversificação de costumes e consumo. Mas elas são subordinadas ao pressuposto comum pelo qual, no jogo econômico, as diferenças devem ser tão acessórias quanto a livre escolha da cor da gravata em um escritório dos anos 50.

A Europa, em suma, gostaria de participar da festa neoliberal, mas se atrapalha, pois sonha que o homem global possa seguir se definindo pela cultura concreta da qual é filho. Por exemplo: "Sou global, ganho global, invisto global, mas sigo francês e me defino pela baguete e por Godard". Isso acaba em: "Sou austríaco e não gosto de "turco'". O que é péssimo para a produção e para os negócios.

Os EUA descobriram que o homem global pode manifestar sua originalidade. Afinal, Godard e as calças curtas de couro à tirolesa são bens de consumo: que cada um compre livremente. Ora, preço da prosperidade: estas diferenças todas devem ser de brincadeira, pois por cima delas paira uma única cultura de verdade, pela qual, apesar de nossas pretensas diferenças, somos todos agentes econômicos intercambiáveis.

E o Brasil nesta história? Uma glória explícita da cultura brasileira é a capacidade de digerir, misturar e, portanto, respeitar todo tipo de diferença. Mas, curiosamente, o país se fechou à imigração, como a Europa. Não foi por receio da variedade dos imigrantes. Foi para que mais ninguém viesse aproveitar do bolo. Por herança do extrativismo português, o Brasil foi, e talvez ainda seja, patrimonialista. Espera-se a prosperidade não tanto do trabalho e da invenção produtiva, quanto de tesouros escondidos: ouro (amarelo ou verde), prata, diamantes e esmeraldas, petróleo, sem falar dos segredos biológicos das plantas amazônicas. É ainda outro tipo de impasse.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2000

Irã, Nigéria, Paquistão, Arábia, Iêmen e EUA

O que têm eles em comum? Não é uma brincadeira. Há algo que só é próprio desses países.

Aqui vai: são os únicos países onde são justiçados criminosos que eram menores de 18 anos no momento do crime. Os EUA estão em primeiro lugar na lista, com o maior número dessas execuções desde 1990: dez.

Quando menciono esses dados da Anistia Internacional, recebo às vezes comentários do tipo: "Pois é, no Brasil os grupos de extermínio se encarregam das crianças criminosas. É muito pior-segue o comentário-, pois elas são mortas por vingança ou por medo, sem justiça. Nos EUA, ao menos, a coisa é feita segundo a lei".

Em suma, pensam meus interlocutores: "Se for preciso matar criminosos menores, melhor que seja feito pela comunidade em sua expressão legal e não por assassinos pagos por comerciantes exasperados. A primeira solução seria mais civilizada".

Tendo a pensar o contrário. Exterminadores e jagunços podem até gozar de impunidade, mas não são os apóstolos do bem social: eles são criminosos como suas vítimas. O ato dos carrascos oficiais, ao contrário, é apresentado como o bem social. Eles representam uma comunidade que pratica a execução de menores como forma de justiça.

Há um consenso ocidental e moderno de que a pena de morte não deve se aplicar a criminosos menores, pois eles são suscetíveis de mudar. Por isso eles são poupados e destinados à reabilitação.

Não é que confiemos nos adolescentes. Confiamos no poder pedagógico dos adultos, em nossa capacidade de corrigir os jovens. Nisso os norte-americanos não são diferentes de nós. Como se explica, então, sua presença nessa estranha lista?

Os cinco colegas dos EUA são países de cultura tradicional -onde a tradição pode e deve dizer o que é certo ou errado, quem deve ser punido, quando e como. Ao contrário, para nós ocidentais e modernos, a moral é um terreno minado, difícil, contraditório. Somos nós que devemos decidir o que é bem ou mal. O fundamento da justiça é tão subjetivo que, para julgar, nos identificamos com o culpado.
A sugestão cristã "quem estiver sem pecado, jogue a primeira pedra" é o começo do fim da certeza ética. Em suma, nossa autoridade moral é normalmente duvidosa e hesitante. Condenar deveria ser, para nós, um tormento.

Justamente, executar qualquer culpado supõe uma dupla certeza moral, difícil em nossa cultura: a certeza de reconhecer um mal sem desculpa e a certeza de sermos suficientemente diferentes do culpado para que a condenação não seja hipócrita. Executar menores implica mais uma certeza que chega a contradizer um dos princípios básicos de nossa cultura: o sujeito ocidental moderno se define por seu potencial de mudança, por seus futuros possíveis. Ora, para executar um menor, é necessário acreditar que ele não mudará.

Ao entrar na lista, os EUA -supostamente o protótipo de país ocidental moderno- parecem abandonar a atormentada incerteza moral que define a modernidade. Por qual milagre? Será que eles produziram, enfim, uma nova comunidade tão coesa que consegue legislar com o mesmo tipo de certeza moral de uma sociedade tradicional?

Seria o sonho de Rousseau realizado. Melhor e mais firme do que a própria tradição, a vontade geral dos cidadãos orienta a todos. Se for o caso, perdoem, mas não me dá vontade de festejar. Gosto de nosso sentimento de mediocridade moral. A incerteza do juízo, a hesitação em julgar por achar que somos tão indignos quanto os acusados, é o que temos moralmente de melhor. Sem isso, nossos gestos repressivos parecem pantomimas de palhaços hipócritas e facilmente sanguinários.

Desconfio da certeza moral norte-americana até porque, curiosamente, ela parece estar crescendo nos últimos anos. Felizmente para a carne mas infelizmente para o espírito norte-americano, a década que acaba foi de grande prosperidade para os EUA. Ora, o pragmatismo norte-americano é retroativo, ou seja, considera que, se algo deu certo, é porque mereceu a aprovação divina. A prosperidade econômica dos EUA produz, assim, autorização moral. Nos enriquecemos, portanto somos os eleitos. Porque duvidaríamos de nossas escolhas morais se, obviamente, é Deus que traça nosso caminho? Quem discordar, que se cuide.

P.S.
1.Clovis Rossi, em sua correspondência de Davos, relata que Umberto Eco preocupou empresários e políticos, anunciando o triste fim da ética tradicional. Engraçado. Será que a incerteza do julgamento moral que nos acompanha e vem crescendo há quase meio milênio é tão dura de aguentar? Não sei o que Eco tinha na cabeça, mas -em vez de chorar sobre as certezas perdidas- me parece urgente aceitar que nossa incerteza pode ser uma virtude. E, portanto, desconfiar de novas perniciosas certezas com as quais não sei se estamos a fim de viver.

2. O Estado de Illinois acaba de decidir uma moratória das execuções, por medo dos erros judiciários. Pois, desde 77, 13 condenados à morte foram inocentados e liberados. Na falta de uma boa incerteza moral, já é bom reconhecer que a gente não é infalível.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2000

Se não posso cometer excessos, por que viver?

Leio as estatísticas recentes da epidemia da Aids nos EUA. Aparece uma desproporção: 52% dos homens que se contaminam por práticas homoeróticas são hoje negros ou latinos.

Aparentemente os programas de prevenção não funcionaram com os membros dessas minorias. Segundo os comentários, a culpa estaria nas diferenças culturais: negros e latinos bissexuais se consideram heterossexuais e acham que essa história não é com eles. A explicação faz sentido, mas fico com a impressão de que negros e latinos se cuidam menos também por serem aqui minorias desfavorecidas.

Há outras realidades em sintonia com essa impressão. Por exemplo, o cigarro: entre os que não largam, os pobres são os mais numerosos. Aliás, as companhias de tabaco agradecem ao Terceiro Mundo, que é menos sensível às campanhas contra o fumo. A mesma coisa vale para os hábitos alimentares e outras práticas saudáveis ou, ainda, para o respeito às regras do trânsito etc. Parece existir uma proporção inversa entre cuidado com a vida e com a pobreza: não vale a pena se apegar à vida pobre. É uma lógica chata, com um pressuposto incômodo: a vida que merece ser vivida seria a de brancos classe A, com conta no banco e futuro garantido.

Os outros não têm por que se preservar. Por mais que esse argumento seja corriqueiro, há uma velha piada que diz o contrário, ou seja, que a vida sem excessos nunca vale a pena. Esse chiste acompanha há mais de um século os avanços dos ditados da boa saúde. Sua mola cômica é a seguinte: as condutas saudáveis podem prolongar a vida, mas a gente não sabe mais direito se a vida, uma vez limitada ou organizada por essas condutas, ainda vale a pena.

Ou seja, se não posso cometer nenhum excesso, por que viver tanto? Nos anos 50, quando Baco, tabaco e Vênus eram estigmatizados como inimigos da saúde, ríamos de uma cumplicidade implícita na transgressão: podem falar, mas não vamos parar por isso. Ultimamente, essas piadas perderam a graça porque não há mais cumplicidade implícita que nos faça rir. Aceitamos a prescrição: você precisa mesmo parar com os excessos. Parece que o ideal de vida não é mais uma aventurosa queima de forças e paixões, mas uma espécie de repetida vacina contra a morte.

Os excessos, que consomem a linfa, ficam com os pobres que podem se dar a esse luxo por não ter nada a perder. É a versão contemporânea da história hegeliana do mestre e do escravo. Para Hegel, o mestre clássico era aquele corajoso cavalheiro que desafiava a morte, pois não fazia de sua sobrevida um valor essencial. O escravo era, ao contrário, aquele que preferia sobreviver. O mestre procurava ocasiões para mostrar a sua valentia. O escravo trabalhava. O mestre defendia o escravo com sua espada, mas lhe devia a sua subsistência. Hegel antevia que, com isso, o mestre perderia a capacidade de plantar, fabricar, produzir etc.

Um belo dia, ele estaria tão alienado do mundo que o escravo acabaria tomando posse. As coisas não foram por esse lado. O escravo não se apoderou da produção. Mas talvez a previsão de Hegel não estivesse de todo errada, pois está acontecendo outra coisa parecida. O mestre achou graça nos privilégios de seu status e parou de desafiar a morte. Aliás, ele não quer nem ouvir falar em morrer.

Ao contrário, passa seu dia se preocupando com o que se preservar. Sua definição da vida é a prevenção do risco e da doença. Emaciado devido aos regimes, abstratamente exercitado por bicicletas e esteiras que não vão a lugar nenhum, adverso à promiscuidade, incerto entre preservativo, masturbação e abstinência, ele é uma figura triste: um parcimonioso de si mesmo.

De tanto se preocupar em sobreviver, talvez ele esteja perdendo a capacidade de gozar. O escravo poderia ficar com o prazer de viver, pois, por ter pouco ou nada a perder, talvez ele se aventurasse a gozar a vida como um bem que poderia ser gasto. As coisas ainda não chegam a tanto, até porque é difícil o escravo gozar a vida sem comida no prato.

Mesmo assim, o mestre se antecipa e já inveja esse escravo que se permite perigosos e proibidos prazeres. Nos desfiles de Paris da semana passada, Dior apresentou uma coleção costurada de trapos e de imitação de jornais velhos, tentando vestir as modelos como sem-tetos nas ruas da cidade. Como conhecer o "frisson" da vida escrava sem perder a bússola? Simples: US$ 25 mil compram uma roupinha de sem-teto. Mais baratas, mas não de graça, são as calças da Calvin Klein, tratadas para parecer sujas.

Nada de novo. Afinal, pobre se mata nos guetos, e rico tenta imitá-lo com paintball e video game. Pobre se perde na cracolândia, e rico cheira uma coca social no sábado à noite. Sugestão para alguma agência de turismo: por que não propor um fim-de-semana em barraco de favela autêntico, com tiroteio garantido? P.S.: Para evitar um mal-entendido: parei de fumar, não como gordura e desaconselho promiscuidade sem camisinha. Mas me consterna a idéia de que se manter em vida esteja se tornando a principal razão de viver.

domingo, 23 de janeiro de 2000

Acusação sem endereço

Acusação sem endereço


No caderno Mais! do último 9 de janeiro, João Cezar de Castro Rocha propõe algumas críticas ao meu ensaio "Do Homem Cordial ao Homem Vulgar", publicado neste mesmo caderno em 12 de dezembro de 99. Na verdade, concordo com quase todas as suas críticas, só não entendo a quem elas se endereçam. Fico olhando por cima de meu ombro para ver se há alguém atrás de mim com quem meu crítico estaria falando, pois não me reconheço no que ele parece ler em meu texto. Faço parte de uma geração que, no catálogo das boas maneiras, aprendeu a descartar o acusatório "você não entendeu" e preferir o mais humilde "não me expressei direito". Então é isso: devo ter-me expressado mal e aproveito agora para melhorar.

Herança genética
Segundo meu crítico, eu compreenderia "a cordialidade como índice de um hipotético caráter brasileiro". É engraçado: nunca desisti de mandar brasa contra a caracterologia nacional e agora acabo convencendo João Rocha de que é nisso mesmo que acredito. Eta imperfeição da linguagem humana! Dito com clareza: não acredito, nunca acreditei, nem acredito que acreditarei um dia na existência de um caráter nacional brasileiro que desceria do céu como uma herança genética ou mesmo histórica. Nenhuma brasilidade garante uma continuidade cordial atrás dos percalços da história brasileira. A cordialidade não é um traço inato da personalidade brasileira (a qual, por sua vez, não é uma entidade nem física nem metafísica). Ser cordial é um hábito (no sentido aristotélico) que resulta de um tipo dominante de relações sociais. Portanto a sociedade brasileira não é o efeito de nossa congênita cordialidade. Ao contrário, podemos nos servir da cordialidade para descrever de maneira colorida e sensível as formas de vida que resultam de uma organização social em que (resumindo) a ordem privada se impõe à ordem pública. Não sei por que Rocha também considera que a cordialidade seria para mim só brasileira ou que eu compreenderia Sergio Buarque "exclusivamente como uma interpretação da formação social brasileira", negligenciando a relevância teórica de suas análises. Sigo olhando por cima de meu ombro esquerdo e direito: ninguém, então é comigo mesmo. Mas não vejo de onde essa impressão chega até meu crítico. Talvez seja porque tenho a reputação de nunca ter viajado fora do Brasil. Bom, trégua de ironia: o hábito da cordialidade resulta de uma configuração social que é banal.

Máfia e mortadela
No quadro limitado e ("hélas!", relativamente) breve de minha vida já me deparei com algo análogo: foi na Itália, no pós-guerra. A mesma herança de um mundo rural que o fascismo não mudou. A mesma constituição dos traços "cordiais" em uma espécie de fetiche (o termo de Teresa Sales é insubstituível) nacional. Em vez de carnaval, samba e futebol, na Itália foi mandolina, pizza, mortadela, máfia, "mare chiaro" e "sole mio". Curiosamente, quando o milagre dos anos 50 e 60 impôs uma modernização política e produtiva, as elites também evoluíram para a vulgaridade (que tampouco é uma prerrogativa do espírito brasileiro). O ensaio trata do Brasil de hoje e descreve uma transição social que poderia ser apresentada em termos suficientemente abstratos para fazer feliz qualquer weberiano. Melhor ainda, ela poderia facilmente ser encontrada em outros momentos e lugares. No Brasil de hoje, como na Itália do milagre, a vulgaridade acontece quando uma modalidade moderna da divisão social e do exercício do poder é adotada pelas elites sem que o tecido social se altere em consequência. Mais especificamente, a vulgaridade acontece quando a ostentação -peça-chave da organização social moderna- é acatada sem seu corolário de mobilidade social. A ostentação perde assim sua função de alimentar a inveja generalizada como motor da competição e, portanto, do desenvolvimento. Ela se torna a caricatura ou o travesti de uma forma arcaica de opressão. Não é difícil entrever que essa conjuntura é tão banal quanto o fato de que as elites da periferia do neoliberalismo se globalizam facilmente sem renunciar às formas (eventualmente arcaicas) de domínio que garantem seus privilégios.

Brutalidade abstrata
Enfim, entre João Rocha e eu há pelo menos um ponto de discordância, sem mal-entendido. Meu crítico se surpreende que, na conclusão do ensaio, eu aposte numa cordialidade brasileira anterior à vulgaridade. Nessa esperança, ele vê mais uma complacência em relação à brasilidade que não existe.

Ora, sem fascínio pelo fetiche do caráter nacional e sem saudosismo, parece-me possível desejar que resíduos da formação social nacional permaneçam como hábito de comportamento e, quem sabe, aliviem a brutalidade abstrata que a modernização globalizada promete a todos.
É possível que, como escreve Carlos Drummond, citado por meu crítico, "os brasileiros" não existam. Razão a mais para tentar inventá-los direito. Como nenhuma invenção se faz a partir de zero, se der para escolher, gostaria delevar para o futuro um pouco da "cordialidade generosa" do povo que eu evocava -confesso, sim, com ternura e simpatia- no fim de meu ensaio.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2000

De onde vem o despertar de uma besteira

Surpreendi o primeiro vagido de uma besteira. Senti-me como um astrônomo que, por puro acaso, apontando seu telescópio para o céu, veria um corpo celeste surgir do nada.

Foi assim. Em janeiro, os "Archives of General Psychiatry" publicaram um artigo inexpressivo -uma daquelas pesquisas que servem para levantar fundos e preencher as exigências de publicação do mundo acadêmico americano. Durante quatro anos, os autores testaram o nível de cortisol na saliva de 38 rapazes patologicamente agressivos. O cortisol é um hormônio produzido pelo organismo em situações de estresse e medo.

Constatou-se que, entre esses jovens com problemas de conduta, os mais violentos eram os com menos cortisol no organismo. Explicação: os que menos se angustiam são os mais violentos, porque não são inibidos pelo medo das consequências de seus atos.

Os autores comentam: "O mecanismo que liga uma agressividade persistente a baixas concentrações de cortisol não é conhecido. Modelos animais mostraram que estresse no pré-natal e no desenvolvimento precoce podem causar alterações duradouras ou mesmo permanentes do eixo hipotalâmico-pituitário-adrenalínico (que é responsável pelo cortisol -nota minha). Seria interessante em estudos futuros examinar se um certo estilo de vida próprio a famílias anti-sociais (tabagismo materno ou exposição a outros teratogênicos durante a gravidez, incompetência dos pais, ambiente caótico e imprevisível, abuso, ameaças, privações) pode ser associado a desregramento desse eixo".

Em outras palavras, a pesquisa constata a correlação entre uma situação fisiológica (baixo nível de cortisol) e o comportamento patológico agressivo. Mas a causa da patologia reside nas dificuldades da vida desses jovens. A partir dessa conclusão seria possível sair propondo um chiclete de cortisol, com a idéia de que ele possa acalmar nossos adolescentes. Mas os autores nunca diriam que esse remédio cura a agressividade dos adolescentes. Seria apenas um paliativo.

Ora, acontece que os problemas de comportamento dos jovens são um best seller cultural e terapêutico. Pais desesperados pagariam qualquer preço para a cura da agressividade adolescente. Qualquer novidade nesse campo, por inexpressiva que seja, é notícia.
Eric Fidler, um jornalista da Associated Press, achou que a pesquisa poderia dar samba e escreveu um breve artigo no qual a pesquisa dos "Archives" passa por uma séria cirurgia plástica.

O artigo começa assim: "Na saliva de jovens muito agressivos foram encontrados níveis menores do que o esperado de um hormônio do estresse. O que sugere que seu comportamento pode ser biologicamente fundado e difícil de ser tratado com terapia. É o que foi anunciado ontem por pesquisadores". O que aconteceu? O jornalista entrevistou um dos autores, Keith McBurnett, e conseguiu que ele sugerisse que um tratamento apropriado poderia incluir remédios similares àqueles administrados às crianças hiperativas.

Fidler, em suma, preferiu esquecer a pesquisa e levou McBurnett a afirmar o que ele (Fidler) estava a fim de ouvir -ou seja, que vamos poder tratar adolescente violento com pílulas.
Será que para conseguir uma notícia que prestasse Fidler empurrou McBurnett a falar besteiras em desacordo com sua própria pesquisa? Será que McBurnett se deixou empolgar por seus 15 minutos de celebridade? Provavelmente as duas coisas ao mesmo tempo.

Moral da história: uma pesquisa inexpressiva sobre uma simples correlação fisiológica (sem implicações causais) encontrou a ambição de um jornalista, que encontrou a vaidade de um psicólogo. Graças a isso, ela se transformou numa afirmação sobre a causalidade de um dos comportamentos mais problemáticos em nossa cultura.

Previsão: a seguir, equipes médico-psicológicas improvisarão programas experimentais de tratamento bioquímico para adolescentes agressivos. Logo um laboratório farmacêutico produzirá um suplemento de cortisol que dará ótimos resultados nos testes: vamos dizer, 50% de curas. Tempos depois, alguém verificará que de fato qualquer placebo inerte daria o mesmo resultado.

No entanto, o laboratório ganhará à beça. As equipes hospitalares serão louvadas por sua cientificidade e, naturalmente, durante vários anos, uma série de rapazes violentos ficarão sem ninguém que preste atenção à mensagem desesperada contida em seus atos.

P.S.: Na última segunda-feira, dia 17, outro jornalista da Associated Press soltou um artigo sobre uma doença que torna inválidos 10 milhões de americanos. É a "desordem da angústia social", melhor conhecida como timidez. É um artigo estranho, com algumas entrevistas com pessoas tímidas e nenhuma referência a pesquisas recentes. Pergunto-me: qual é a necessidade desse artigo? Por que agora? Onde está a notícia? Aí, ligo a TV: repetidamente aparecem os anúncios da campanha publicitária do Paxil, remédio proposto para curar a dita "desordem da angústia social". Que coincidência, não é?

quinta-feira, 13 de janeiro de 2000

No ano novo, prometo parecer sincero e autêntico

Eu ficaria satisfeito se recebesse um dólar por cada criança americana que abriu sua lista de intenções para o ano novo com a promessa de nunca (mais) mentir.

Mentir, nos EUA, é o pecado fundamental. Melhor encarar as consequências de uma verdade incômoda do que falar falsidades. O presidente Clinton que o diga: os americanos preferem lhe perdoar as escapadelas com Mônica Lewinski a suas tentativas de ocultá-las.

De um ponto de vista europeu e latino-americano, as mentiras de um "gentleman", por exemplo, devem ser consideradas com condescendência, pois a honra de uma dama passa antes das exigências de sinceridade de seu cavalheiro. Desse mesmo ponto de vista, há mil fidelidades que poderiam anteceder o compromisso com a verdade. Mentir visando o bem não é nenhum paradoxo para nós.

Outro exemplo: a significação das cartas de recomendação. No Brasil ou na Europa, elas manifestam sobretudo o apoio de quem recomenda: "Por respeito a mim, trate bem o portador da presente". Nos EUA, a carta de recomendação é escondida do recomendado para que nada impeça quem recomenda de falar verdades desagradáveis. Ou seja, pediu recomendação: leva a verdade. A carta vale portanto como atestado verídico, não como manifestação de apoio. Aliás, é mais fácil pedir dinheiro emprestado a um amigo americano do que lhe pedir para mentir.

Em contraponto, a sinceridade se torna a virtude americana originária. George Washington, herói fundador, poderia ser celebrado por uma série de razões: coragem, persistência, honestidade etc. Na lenda, fica como o homem que nunca disse uma mentira, nem quando criança. É engraçado, pois nos terríveis invernos da guerra de independência, se Washington não tivesse mentido a seus homens sobre salários, perspectivas da campanha ou mesmo previsões do tempo, provavelmente não sobraria ninguém para discutir com os ingleses.
Resumindo, nos EUA, mentir é um pecado a priori e a sinceridade é uma virtude abstrata.

Há uma explicação clássica para isso: numa sociedade individualista realizada e composta por agentes sociais iguais em princípio e direito- a mentira produziria uma confusão social intolerável. Se as pessoas não se definem por nascença, sangue etc., sinceridade e autenticidade se tornam valores cruciais, pois sem eles nunca saberíamos direito com quem estamos lidando. Quanto mais uma sociedade for moderna, tanto mais a sinceridade e a autenticidade serão suas obrigações morais.

É isso que, anos atrás, me lembro de ter entendido, lendo "Sinceridade e Autenticidade", de Lionel Trilling, o grande crítico americano. Ser sincero e autêntico é uma obrigação cultural moderna justamente porque nossa história pessoal nos define mais do que nossa estirpe ou nossas heranças. Nós nos inventamos e os outros nos conhecem porque lhes apresentamos essa nossa invenção, portanto, torna-se crucial não mentir. Isso vale da conversa fiada até o amor, passando pelo mercado do trabalho: se consigo meu emprego pelo que eu fiz e sei fazer e não por ser amigo do marquês, não posso mentir, devo ser eu mesmo.

Mas aqui surgem alguns pepinos. Pois o que é ser "eu mesmo", ser autêntico, se por nascença e natureza não somos mais nada? E o que é se apresentar sinceramente aos outros senão levá-los a acreditar na imagem que inventamos para nós?

Nessa altura, é útil parar duas horas. O tempo de assistir ao "Talentoso Sr. Ripley", a nova adaptação do romance de Patricia Highsmith por Anthony Minghella (diretor de "O Paciente Inglês"). Ripley (o extraordinário Matt Damon) é o herói que prefere ser um falso alguém do que um verdadeiro ninguém. Nessa empreitada, ele não recua perante nada. Ora, sem entrar em detalhes, o filme é imperdível sobretudo pela experiência que proporciona: ele acua o espectador na inconfortável posição de torcer angustiadamente por Ripley, o impostor, embora ele nos indigne moralmente.

Acontece que Ripley é inevitavelmente dos nossos. Sua aventura lembra que, por mais que prezemos autenticidade e sinceridade, ser alguém em nosso mundo é sempre um jogo de aparências e por isso mesmo de imposturas. É o paradoxo moderno: devemos e queremos ser autênticos e sinceros e, ao mesmo tempo, nosso ser social se resume em fazer os outros acreditarem em nossa aparência.

Em suma, dispúnhamos de uma explicação sociológica pela qual a sinceridade é um valor indispensável ao funcionamento da sociedade moderna. Talvez uma outra interpretação seja mais bem-vinda, embora mais complexa: sinceridade e autenticidade se tornam valores cruciais justamente porque, na modernidade, a impostura é erigida em sistema social. É proibido mentir não porque nossa sociedade é construída na confiança, mas porque ela é organizada na mentira. E a maior mentira consiste em afirmar que queremos falar a verdade. Em outras palavras, somos mentirosos demais para não venerar a sinceridade.

De qualquer forma, para este ano novo, prometo parecer cada vez mais autêntico e sincero.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2000

Os jovens reduzem a cinzas duas imagens

Em Brasília, abril de 1997, o índio Galdino dos Santos foi queimado vivo por cinco jovens da classe média. Quem não se lembra? Durante várias semanas o país se indignou a fundo e mergulhou em sua alma para descobrir alguma razão para esse horror.

A tentação era pensar em um mal especificamente brasileiro. Afinal, toleramos formas de miséria extrema e de degradação que são barbáries próximas ao extermínio. Também sofremos (assim como se sofre de uma doença) do caráter atavicamente ávido e predatório das elites. Portanto não seria estranho que essas e (eventualmente) seus rebentos desconsiderassem totalmente a vida de quem está fora da única corrida que vale (do ponto de vista dominante).

No último dia 30 de dezembro, o editorial da Folha lembrava que em 1999 mais sete moradores de rua (este eufemismo para sem-teto) foram queimados, cinco deles por companheiros de infortúnio. O que não é, mas parece, menos trágico. O barco moderno é assim: não podendo suprimir os pobres, mas querendo melhorar a vida de todos, suprime-se a terceira classe. Quem não pode pagar a segunda vai para os tubarões. Se os clandestinos se matam entre eles, tanto melhor. Enfim, no Brasil, os assassinos de mendigos, em sua maioria, não foram adolescentes ditos de boa família. Pequena variante do mesmo drama nacional?

Não parece. No dia 23 de dezembro, o "The New York Times" publicou um artigo que me deixou estupefato. O texto começava descrevendo uma série de assassinatos selvagens: cinco batidos até a morte e dois decapitados em Denver. Outro batido, esfaqueado e decapitado em Richmond, Virgínia, a cabeça neste caso foi levada até uma ponte para pedestres e aí exposta. Em Seattle, mais dois. Outros em Dallas, em Chico, Califórnia, em Portland, Oregon, e por aí vai. Era uma lista de sem-tetos barbaramente assassinados nos Estados Unidos em 1999.

Nessa contagem feita a partir dos relatos na imprensa foram 29 mortos em um ano. Mais seis que mal sobreviveram aos ataques. Esses números assustadores subestimam o fenômeno, pois trata-se apenas dos ataques mencionados pela imprensa (a polícia não conta de maneira diferenciada os crimes contra moradores de rua). Além disso, sem-tetos e mendigos raramente registram queixas.

Os autores desses crimes são na maioria menores de 21 anos, o mais jovem tendo apenas 14.
O artigo do "Times" considera que não foi uma safra especial. Também é constante que a maioria dos suspeitos e acusados desse tipo de violência sejam adolescentes ou pré-adolescentes.

Apesar de ser um leitor cuidadoso da grande imprensa americana, eu não fazia idéia de que a história do índio Galdino fosse um crime globalizado. Ao contrário, como muitos outros, pensava que era a expressão de uma iniquidade brasileira.

Ora, em 1999, nos EUA houve 29 Galdinos. Também nenhum deles produziu o tipo de indignação que surgiu no Brasil em 97. Não houve nenhum "mea culpa" nacional. Nem está tendo agora depois do dito artigo. A morte dos sem-tetos parece lastimável, sem mais.
Deveríamos festejar, então, nossa capacidade de nos indignar, de compadecer e de nos questionar? Pode ser.

De qualquer forma, parece que, pelo mundo moderno afora, alguns adolescentes acham que matar mendigos e sem-tetos é programa. Esses assassinatos e ataques só podem ser a ponta de um vasto iceberg de ódio. Mas por que um adolescente passaria a odiar mendigos, excluídos e sem-tetos?

Certo: a sociedade sugere que esse jogo não constitui uma grande culpa. Em nosso mundo, eliminar um mendigo ou um sem-teto é como roubar algo que não vale nada, sei lá, um chiclete já mastigado.

Mesmo assim, os jovens que se envaidecem de matar um mendigo ou que acham graça em sacaneá-lo não devem agir só pelo prazer de confirmar um subentendido social.

Talvez os sinistros braseiros sejam os autos-de-fé da juventude: queimando (ou desprezando) mendigos e sem-tetos, os jovens reduzem a cinzas duas imagens.

Por um lado, eles exorcizam um futuro que poderia ser deles, tentam apagar uma ameaça de ostracismo que espreita suas vidas, caso eles viessem a fracassar.

Por outro lado, eles queimam (e aqui está o verdadeiro auto-de-fé) um destino que provavelmente eles desejam: uma hipóstase de sua possível revolta, de sua vontade de cair fora, pegar a estrada e presentear as exigências dos pais com um belo "beatnik" ou um "drop-out".

De fato, para um adolescente, o medo de não conseguir se conformar com ideais dominantes se confunde com a aspiração a ser diferente. Desprezar, sacanear ou mesmo matar mendigos, índios ou excluídos é uma maneira de lutar contra o pavor de fracassar ("apago o mendigo que eu mesmo, fracassando, poderia vir a ser") e no mesmo tempo de silenciar a aspiração a uma vida rebelde ("apago também aquele morador de rua que, contra todas expectativas, eu poderia gostar de ser").

Em suma, não deveríamos estranhar demasiado esses jovens sádicos e assassinos. Eles batem exatamente no que nossa cultura lhes ensina a detestar: o fracasso e sua própria rebeldia.

quinta-feira, 9 de dezembro de 1999

Invenções para policiar a vida



Na fila do "check-in" da American Airlines em Boston, vejo um funcionário rindo dos esforços de um passageiro brasileiro que coloca na balança suas malas enormes. Eu mesmo ironizo a mania sacoleira dos brasileiros, mas ele, o funcionário, não pode. Fede a xenofobia.

Chego, portanto, ao balcão um pouco irritado. Sou atendido mediocremente, como de costume. Manifesto minha insatisfação. Uma supervisora aparece do nada para anunciar que, se eu ficar nervoso, ela me diagnosticará com "air rage", a raiva do ar, e impedirá meu embarque.

A raiva do ar é uma das últimas maluquices da psicopatologia comportamental americana.
Eis o fenômeno: a United Airlines, por exemplo, registrou 404 incidentes de raiva do ar em 1996 (o dobro de 1995). Como qualquer criança sabe, quanto mais reconhecida for a entidade raiva do ar, tanto mais episódios serão registrados. Além disso, a incidência estatística é insignificante.

Os comportamentos de raiva vão desde a gesticulação de um agitado até a tentativa de abrir uma porta no meio do vôo.

Ora, alguém pode ficar nervoso em um avião e beber (ou não) por mil razões subjetivas: tem fobia de espaços fechados ou medo de avião, está indo a um enterro, está se afastando dos que ama ou então duvida que esteja sendo esperado. De jeito análogo, há pessoas que enfartam durante um vôo e as circunstâncias da viagem podem ser patógenas. Mas ninguém sonha em inventar uma nova entidade em cardiologia: o infarto aéreo.
Por que essa diferença entre enfartes e raiva? Simples: os infartos não podem ser reprimidos, os comportamentos podem. A invenção de entidades psicopatológicas a partir de puras descrições comportamentais está sempre a serviço de uma paixão de policiar a vida.

Numa sociedade democrática moderna, o policiamento que funciona melhor é terapêutico-higienista. Pois ele faz apelo a valores reconhecidos como objetivos: bem-estar e saúde. Também assegura a paz das consciências: somos livres, pois apenas regulamentamos doenças e reprimimos por generosidade samaritana. Começa assim: há coisas proibidas porque são nocivas. Acaba assim: há coisas que são ditas nocivas para serem proibidas.

A patologia inventada é sempre um puro comportamento. A singularidade concreta de cada vida e situação é negada. Pois, neste caso, a verdadeira patologia é o transtorno da ordem.
A ordem, aliás, consegue ficar fora de discussão: se as companhias aéreas não encurtassem o espaço para as pernas, se servissem uma comida decente, se o atendimento em terra fosse correto, os passageiros ficariam mais felizes e menos tensos.

No fim dos anos 60, quando a antipsiquiatria dinamitou as portas dos asilos e pediu que a população cuidasse de seus doentes mentais, temíamos que a repressão, expulsa pela porta, voltasse pela janela. Ou seja, que o mundo se transformasse em enfermaria e o povo todo, em enfermeiro. Pois bem, está acontecendo nos Estados Unidos.

A coisa também é negócio. Sugestões aos jovens psicólogos. Primeiro: conseguir um doutorado respeitado. Segundo: reparar um fenômeno que possa ser objeto de repressão e litígio. Por exemplo: brigas de família na cozinha. Nomear a síndrome (em inglês) "kitchen rage", a raiva da cozinha; publicar em uma revista acadêmica uma pesquisa com o número absoluto de acidentes anuais nas cozinhas americanas; abrir uma página interativa na Internet sobre o tema; e convidar pessoas a abrir grupos de discussão.

Em dois anos, vocês serão a autoridade incontestada em matéria de raiva da cozinha. Poderão viver dos honorários de expert (irão pelos tribunais desculpando criminosos da cozinha). Também venderão franchising para móveis de cozinha, panelas e alimentos (produtos aprovados para prevenir a raiva). Vocês serão ricos e não terão de se meter com os problemas subjetivos de pacientes - que é uma coisa complicada. Por outro lado, graças a vocês, o primeiro sujeito que quebra um prato será generosamente medicado ou internado, sem que ninguém tenha de se interrogar sobre por que o sujeito pirou.

Sugestão para a Prefeitura de São Paulo: do mesmo jeito, convencer os paulistanos que sua irritação no trânsito é efeito da raiva de trânsito. Nada a ver com questões de circulação, transporte etc.

Não sei se a supervisora da American Airlines era uma leitora de psicobabaquices populares ou se passou por um treinamento específico que a introduziu à besteira psicopatológica americana deste fim de século. Quase telefonei para o serviço ao cliente da American Airlines para saber. Mas fiquei com medo de ser diagnosticado como um dos primeiros casos de raiva telefônica.
Post-Scriptum: segunda-feira, de novo, um jovem de 13 anos saiu atirando, no Estado de Oklahoma. Até aqui, quase sem exceções, medidas repressivas e controladoras são apresentadas como formas de pensamento. Estou esperando o cretino que vai nomear uma síndrome da raiva escolar, graças à qual será possível reprimir ainda mais crianças e adolescentes, sem remorso. Depois estranham que alguém saia atirando...

quinta-feira, 14 de outubro de 1999

Serial killer: um ideal para os nossos tempos



Lembram "O Silêncio dos Inocentes", o filme de Jonathan Demme com Anthony Hopkins e Jodie Foster que ganhou cinco Oscar em 1992? Pois é, o psiquiatra canibal e a jovem agente do FBI estão de volta. Saiu em junho a sequência literária pelo mesmo Thomas Harris, sob o título "Hannibal"". Foi um sucesso. O filme não vai tardar.

Neste segundo volume, o dr. Hannibal Lecter se torna o verdadeiro herói da história. Já era o caso em "O Silêncio dos Inocentes", mas agora estamos mesmo autorizados: podemos enfim idealizar tranquilamente um serial killer canibal.

Cada cultura se diverte imaginando maneiras de desobedecer à lei e ao próprio pacto social. Afinal, viver em sociedade nos custa um esforço de repressão e autocontrole suficientes para que se torne engraçado sonhar com heróis que mostram um soberano desprezo para com as leis que nós respeitamos.

A coisa vale especialmente para a modernidade, que tem a tarefa impossível de conciliar as exigências da vida em sociedade com um ideal de liberdade individual. Por isso, a cultura pop moderna inevitavelmente idealiza criminosos.

Esses delinquentes de sonho (literário ou cinematográfico) são reveladores, pois eles encenam nossas esperanças de evasão.

Por exemplo, na cultura americana, há o pistoleiro do "far west" e o gângster. O pistoleiro é o herói que, no mundo selvagem da fronteira, inventa uma moral acima dos códigos - uma moral do indivíduo. Ele faz o que é justo, mesmo que não seja conforme a lei. Nisso, ele é um herói individualista clássico.

A figura do gângster nasce entre as duas guerras, tanto na realidade quanto na cultura popular. Naqueles anos difíceis de depressão econômica e invenção do imposto de renda, ele consegue ser um empreendedor de sucesso. Se torna assim, aliás, o ideal inconfessado de quem sonha com dinheiro.

Talvez o cangaceiro seja o equivalente brasileiro do caubói bandido, com a mística de uma moral individual acima da lei. Mas de fato, na cultural pop nacional, o jagunço ganha do cangaço. O jagunço é uma imagem saudosa que situa a honra na subserviência, numa sociedade fundada no favor e no clientelismo. O jagunço não é o equivalente do pistoleiro, mas do mafioso. Nele celebramos uma evasão da necessidade moderna de inventar as leis, descansando na nostálgica fidelidade a um código tradicional. Enfim, há espaço para uma história cultural do delinquente idealizado. E seria bem interessante, nesse quadro, seguir as peripécias do ideal do malandro brasileiro.

Mas hoje é dia de serial killer. Voltemos então a Hannibal Lecter. Objeto imediato de tratamentos jornalístico-literários, Ted Bundy, Jeffrey Dahmer ou outros maníacos do parque inspiram uma curiosidade que me parecia até agora psicopatológica. Assim como há leitores para a história do homem que tomava sua mulher por um chapéu, por que não haveria para alguém que sistematicamente mata, estupra ou frita e come seus semelhantes?

Ora, com a história do Dr. Lecter, o serial killer se torna pela primeira vez herói pop.
O serial killer pop (nisso, aliás, próximo ao de verdade) não conhece culpa nem remorso. Sua vontade de gozar nos termos exatos de sua fantasia está para ele acima de qualquer consideração ou incômodo moral. Ele não precisa de desculpas nem justificativas. Pois (aqui está a novidade de ""Hannibal") ele tem o bom direito de matar a vontade. De onde vem este bom direito?

Hannibal Lecter é o homem que sabe e consegue gozar plenamente a vida. Como James Bond, ele combina os vinhos certos com os pratos certos e sabe escolher carros e roupas. Mais próximo de um aristocrata do que de um emergente, não ignora o gozo estético: encanta uma platéia de eruditos com uma palestra sobre Dante e é conservador de uma preciosa coleção florentina.

Sua competência em gozar a vida estabelece para nós leitores seu direito de gozá-la livremente. Ao risco de sermos digeridos sem escrúpulos, aplaudimos, portanto, quando ele come banais mortais.

O serial killer tem tudo para ser um herói de nosso anseio de gozar sem compromissos ou perplexidades morais. Com o dr. Lecter, este ideal um pouco abjeto encontra legitimidade, pois quem sabe como gozar a vida ganha o direito de gozar dela sem estorvos.

O novo serial killer pop é uma curiosa mistura de privilégio medieval com a constatação de Veblen segundo a qual o poder moderno se mantém e confirma pelo esbanjo de riqueza e consumo. O serial killer pop, em suma, é nosso ideal monstruoso de uma classe dirigente cuja legitimidade está e se sustenta acima da lei, graças à admiração do povo.

Ou seja, quem sabe gastar merece receber nosso dízimo. Ou então, quem conhece o conforto de lençóis de linho engomados tem direito à primeira noite de nossas noivas. E quem sabe colocar a mesa, escolher o vinho e a música certa, tem mesmo direito de nos comer. Bom apetite!

quinta-feira, 7 de outubro de 1999

Oficial, gentleman e degredado

Augusto Pinochet está em Londres sob prisão domiciliar. Amanhã, a Justiça britânica decidirá se ele deve ou não ir para a Espanha e ser processado por ao menos alguns dos horrores cometidos durante seu governo.

Seja qual for a decisão, haverá apelos. Talvez ele fique na Inglaterra, num limbo jurídico, até morrer. É também possível que, por razões humanitárias (é o cúmulo) ou políticas, Pinochet volte para o Chile para se fazer esquecer. Pouco importa.

Mesmo que o general seja solto hoje, há de se saborear uma pequena vingança. Pois ele já encontrou uma punição pouco banal quando em outubro de 1998 foi preso em Londres.
Pinochet não imaginava que isso pudesse lhe acontecer, pois, indo para Londres, ele pensava estar passando em casa. Como então seus conterrâneos civilizados (no caso, os europeus) não reconheceriam nele um par, um amigo, um próximo? Não bastaria os ingleses verificarem o perfume delicado do seu "after shave", o brilho de seus sapatos (que podiam até ser argentinos, mas imitação Bond Street) e o corte de suas camisas? Apesar da dor nas costas não veriam eles seu porte ereto e naturalmente autoritário?

O "The New York Times" relatou que, quando o detetive A. Hewitt, da Scotland Yard, lhe entregou o mandato de prisão, Pinochet comentou: "Estou sendo humilhado. Sou um general com 64 anos de serviço. Sou um gentleman que sabe o que é honra".

Pinochet se olha no espelho e vê o quê? Um oficial e um gentleman: a prestância de um soldado fiel e corajoso ou então a tranquila elegância de um militar aposentado instalado na poltrona de couro de um clube inglês. Devia, aliás, ser essa a imagem de si que o acompanhava nessa viagem a Londres.

Mas, quando olho para Pinochet, eu vejo outras coisas: um peito coberto de condecorações vazias, o cabelo brilhantinado, os óculos escuros envolventes. É a imagem da truculência brega: poderia ser "el general dictador" se um dia Angeli, Laerte e Glauco precisassem de um desses para a tira dos "Los Três Amigos".

Essa imagem manchada por pingos de sangue, suor e gritos é o retrato de Dorian Gray do general, escondido nos porões da guerra suja. Pinochet, naturalmente, prefere se contemplar no espelho do alfaiate de Londres. E devia presumir que todos os ingleses o veriam como o via seu alfaiate.

Ora, parece que os ingleses viram o retrato no porão. Prenderam o general, como se fosse ele, pode ter pensado, um índio Mapuche qualquer. Em suma, eles não entenderam que o general pertencia a mesma raça superior que a deles.

Fecharam-lhe na cara a porta do único clube que lhe importa. Seus fãs poderão recebê-lo de volta com bandeiras e aplausos no aeroporto de Santiago. Tanto faz. Para o tempo que lhe sobra, ele deverá ficar no Chile e saberá que lá fora ele não é considerado diferente das caras de povo que seus homens pisaram.

Para se defender, em dezembro de 1998, Pinochet teve de declarar que ele não poderia reconhecer o direito de julgá-lo a nenhuma corte que não fosse chilena.

Que desastre: o general teve de renunciar assim à sua nacionalidade especial de elite colonial. Ele era inglês por gosto, e, por ideal, a Inglaterra de seus sonhos deve ser o império vitoriano, a potência colonial por excelência. Ele era espanhol por ter sido a Espanha a potência que originalmente colonizou o Chile. Agora tanto a Espanha quanto a Inglaterra parecem desconhecer seu filho fiel. O prendem e processam. O que pensaria Pizarro se fosse preso e processado por matar alguns incas rebeldes e mandar ouro para a Espanha e para a Inglaterra?
Na frente da Corte de Justiça, onde corre o processo de Pinochet, grupos de chilenos se manifestam a favor e contra o general. Os que pedem que ele seja solto nem são todos fascistas. Alguns podem estar defendendo uma espécie de orgulho nacional: Pinochet é nosso, nós o julgaremos.

Eles esquecem que as elites mais sinistras, na América do Sul, sempre se mantiveram estrangeiras, coloniais.

Isso não só por preferência bancária, mas também por estarem convencidas de que a injustificável diferença social e econômica teria fundamento em alguma diferença étnica originária.

A história de Pinochet, aliás, sugere um interessante sistema de punição para ditadores e outros malandros poderosos do terceiro mundo. Seria uma espécie de nova versão do degredo.
Banqueiros corruptos, donos de imobiliárias caloteiras, deputados e vereadores cassados, ex-presidentes impeachados deveriam ser degredados ao contrário. Ou seja, como essas elites não se consideram nacionais, ser excluído dos Estados Unidos e da Europa é para elas ser excluído de casa, do lugar ao qual elas acham que verdadeiramente pertencem.

O degredo para elas deveria ser a condenação a ficar para sempre no terceiro mundo, junto com os povos que essas elites continuaram tratando como trataram os índios no tempo da conquista.