quinta-feira, 13 de janeiro de 2000

No ano novo, prometo parecer sincero e autêntico

Eu ficaria satisfeito se recebesse um dólar por cada criança americana que abriu sua lista de intenções para o ano novo com a promessa de nunca (mais) mentir.

Mentir, nos EUA, é o pecado fundamental. Melhor encarar as consequências de uma verdade incômoda do que falar falsidades. O presidente Clinton que o diga: os americanos preferem lhe perdoar as escapadelas com Mônica Lewinski a suas tentativas de ocultá-las.

De um ponto de vista europeu e latino-americano, as mentiras de um "gentleman", por exemplo, devem ser consideradas com condescendência, pois a honra de uma dama passa antes das exigências de sinceridade de seu cavalheiro. Desse mesmo ponto de vista, há mil fidelidades que poderiam anteceder o compromisso com a verdade. Mentir visando o bem não é nenhum paradoxo para nós.

Outro exemplo: a significação das cartas de recomendação. No Brasil ou na Europa, elas manifestam sobretudo o apoio de quem recomenda: "Por respeito a mim, trate bem o portador da presente". Nos EUA, a carta de recomendação é escondida do recomendado para que nada impeça quem recomenda de falar verdades desagradáveis. Ou seja, pediu recomendação: leva a verdade. A carta vale portanto como atestado verídico, não como manifestação de apoio. Aliás, é mais fácil pedir dinheiro emprestado a um amigo americano do que lhe pedir para mentir.

Em contraponto, a sinceridade se torna a virtude americana originária. George Washington, herói fundador, poderia ser celebrado por uma série de razões: coragem, persistência, honestidade etc. Na lenda, fica como o homem que nunca disse uma mentira, nem quando criança. É engraçado, pois nos terríveis invernos da guerra de independência, se Washington não tivesse mentido a seus homens sobre salários, perspectivas da campanha ou mesmo previsões do tempo, provavelmente não sobraria ninguém para discutir com os ingleses.
Resumindo, nos EUA, mentir é um pecado a priori e a sinceridade é uma virtude abstrata.

Há uma explicação clássica para isso: numa sociedade individualista realizada e composta por agentes sociais iguais em princípio e direito- a mentira produziria uma confusão social intolerável. Se as pessoas não se definem por nascença, sangue etc., sinceridade e autenticidade se tornam valores cruciais, pois sem eles nunca saberíamos direito com quem estamos lidando. Quanto mais uma sociedade for moderna, tanto mais a sinceridade e a autenticidade serão suas obrigações morais.

É isso que, anos atrás, me lembro de ter entendido, lendo "Sinceridade e Autenticidade", de Lionel Trilling, o grande crítico americano. Ser sincero e autêntico é uma obrigação cultural moderna justamente porque nossa história pessoal nos define mais do que nossa estirpe ou nossas heranças. Nós nos inventamos e os outros nos conhecem porque lhes apresentamos essa nossa invenção, portanto, torna-se crucial não mentir. Isso vale da conversa fiada até o amor, passando pelo mercado do trabalho: se consigo meu emprego pelo que eu fiz e sei fazer e não por ser amigo do marquês, não posso mentir, devo ser eu mesmo.

Mas aqui surgem alguns pepinos. Pois o que é ser "eu mesmo", ser autêntico, se por nascença e natureza não somos mais nada? E o que é se apresentar sinceramente aos outros senão levá-los a acreditar na imagem que inventamos para nós?

Nessa altura, é útil parar duas horas. O tempo de assistir ao "Talentoso Sr. Ripley", a nova adaptação do romance de Patricia Highsmith por Anthony Minghella (diretor de "O Paciente Inglês"). Ripley (o extraordinário Matt Damon) é o herói que prefere ser um falso alguém do que um verdadeiro ninguém. Nessa empreitada, ele não recua perante nada. Ora, sem entrar em detalhes, o filme é imperdível sobretudo pela experiência que proporciona: ele acua o espectador na inconfortável posição de torcer angustiadamente por Ripley, o impostor, embora ele nos indigne moralmente.

Acontece que Ripley é inevitavelmente dos nossos. Sua aventura lembra que, por mais que prezemos autenticidade e sinceridade, ser alguém em nosso mundo é sempre um jogo de aparências e por isso mesmo de imposturas. É o paradoxo moderno: devemos e queremos ser autênticos e sinceros e, ao mesmo tempo, nosso ser social se resume em fazer os outros acreditarem em nossa aparência.

Em suma, dispúnhamos de uma explicação sociológica pela qual a sinceridade é um valor indispensável ao funcionamento da sociedade moderna. Talvez uma outra interpretação seja mais bem-vinda, embora mais complexa: sinceridade e autenticidade se tornam valores cruciais justamente porque, na modernidade, a impostura é erigida em sistema social. É proibido mentir não porque nossa sociedade é construída na confiança, mas porque ela é organizada na mentira. E a maior mentira consiste em afirmar que queremos falar a verdade. Em outras palavras, somos mentirosos demais para não venerar a sinceridade.

De qualquer forma, para este ano novo, prometo parecer cada vez mais autêntico e sincero.

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