quinta-feira, 3 de fevereiro de 2000

Irã, Nigéria, Paquistão, Arábia, Iêmen e EUA

O que têm eles em comum? Não é uma brincadeira. Há algo que só é próprio desses países.

Aqui vai: são os únicos países onde são justiçados criminosos que eram menores de 18 anos no momento do crime. Os EUA estão em primeiro lugar na lista, com o maior número dessas execuções desde 1990: dez.

Quando menciono esses dados da Anistia Internacional, recebo às vezes comentários do tipo: "Pois é, no Brasil os grupos de extermínio se encarregam das crianças criminosas. É muito pior-segue o comentário-, pois elas são mortas por vingança ou por medo, sem justiça. Nos EUA, ao menos, a coisa é feita segundo a lei".

Em suma, pensam meus interlocutores: "Se for preciso matar criminosos menores, melhor que seja feito pela comunidade em sua expressão legal e não por assassinos pagos por comerciantes exasperados. A primeira solução seria mais civilizada".

Tendo a pensar o contrário. Exterminadores e jagunços podem até gozar de impunidade, mas não são os apóstolos do bem social: eles são criminosos como suas vítimas. O ato dos carrascos oficiais, ao contrário, é apresentado como o bem social. Eles representam uma comunidade que pratica a execução de menores como forma de justiça.

Há um consenso ocidental e moderno de que a pena de morte não deve se aplicar a criminosos menores, pois eles são suscetíveis de mudar. Por isso eles são poupados e destinados à reabilitação.

Não é que confiemos nos adolescentes. Confiamos no poder pedagógico dos adultos, em nossa capacidade de corrigir os jovens. Nisso os norte-americanos não são diferentes de nós. Como se explica, então, sua presença nessa estranha lista?

Os cinco colegas dos EUA são países de cultura tradicional -onde a tradição pode e deve dizer o que é certo ou errado, quem deve ser punido, quando e como. Ao contrário, para nós ocidentais e modernos, a moral é um terreno minado, difícil, contraditório. Somos nós que devemos decidir o que é bem ou mal. O fundamento da justiça é tão subjetivo que, para julgar, nos identificamos com o culpado.
A sugestão cristã "quem estiver sem pecado, jogue a primeira pedra" é o começo do fim da certeza ética. Em suma, nossa autoridade moral é normalmente duvidosa e hesitante. Condenar deveria ser, para nós, um tormento.

Justamente, executar qualquer culpado supõe uma dupla certeza moral, difícil em nossa cultura: a certeza de reconhecer um mal sem desculpa e a certeza de sermos suficientemente diferentes do culpado para que a condenação não seja hipócrita. Executar menores implica mais uma certeza que chega a contradizer um dos princípios básicos de nossa cultura: o sujeito ocidental moderno se define por seu potencial de mudança, por seus futuros possíveis. Ora, para executar um menor, é necessário acreditar que ele não mudará.

Ao entrar na lista, os EUA -supostamente o protótipo de país ocidental moderno- parecem abandonar a atormentada incerteza moral que define a modernidade. Por qual milagre? Será que eles produziram, enfim, uma nova comunidade tão coesa que consegue legislar com o mesmo tipo de certeza moral de uma sociedade tradicional?

Seria o sonho de Rousseau realizado. Melhor e mais firme do que a própria tradição, a vontade geral dos cidadãos orienta a todos. Se for o caso, perdoem, mas não me dá vontade de festejar. Gosto de nosso sentimento de mediocridade moral. A incerteza do juízo, a hesitação em julgar por achar que somos tão indignos quanto os acusados, é o que temos moralmente de melhor. Sem isso, nossos gestos repressivos parecem pantomimas de palhaços hipócritas e facilmente sanguinários.

Desconfio da certeza moral norte-americana até porque, curiosamente, ela parece estar crescendo nos últimos anos. Felizmente para a carne mas infelizmente para o espírito norte-americano, a década que acaba foi de grande prosperidade para os EUA. Ora, o pragmatismo norte-americano é retroativo, ou seja, considera que, se algo deu certo, é porque mereceu a aprovação divina. A prosperidade econômica dos EUA produz, assim, autorização moral. Nos enriquecemos, portanto somos os eleitos. Porque duvidaríamos de nossas escolhas morais se, obviamente, é Deus que traça nosso caminho? Quem discordar, que se cuide.

P.S.
1.Clovis Rossi, em sua correspondência de Davos, relata que Umberto Eco preocupou empresários e políticos, anunciando o triste fim da ética tradicional. Engraçado. Será que a incerteza do julgamento moral que nos acompanha e vem crescendo há quase meio milênio é tão dura de aguentar? Não sei o que Eco tinha na cabeça, mas -em vez de chorar sobre as certezas perdidas- me parece urgente aceitar que nossa incerteza pode ser uma virtude. E, portanto, desconfiar de novas perniciosas certezas com as quais não sei se estamos a fim de viver.

2. O Estado de Illinois acaba de decidir uma moratória das execuções, por medo dos erros judiciários. Pois, desde 77, 13 condenados à morte foram inocentados e liberados. Na falta de uma boa incerteza moral, já é bom reconhecer que a gente não é infalível.

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