quinta-feira, 16 de março de 2000

A culpa e os outros méritos de João Salles

Em 1997, no morro Dona Marta (Rio de Janeiro), João Salles filmou um documentário justamente famoso, "Notícias de uma Guerra Particular". Assim ele conheceu Marcinho VP, traficante, acusado de homicídio. Criou-se, se não uma amizade, uma curiosidade recíproca. João propôs para Marcinho uma bolsa de R$ 1.200 por mês se ele abandonasse o tráfico e tentasse escrever um livro sobre sua vida. Funcionou durante quatro meses.

Quando isso veio à tona, logo antes do Carnaval, deu um estorvo no governo carioca e pano para debate. João foi generoso ou ingênuo? Inventou uma passarela entre morro e asfalto ou apenas ajudou um foragido?

Um amigo, parado numa sinaleira carioca, olha ao redor circunspecto e comenta: "Precisa tomar cuidado por causa dos bolsistas...". Os chistes vingam, como sempre, para assinalar e esconder alguma verdade doída. No caso, trata-se da ferida que divide a "cidade partida". Mas também de contradições que não valem só para o Rio: paradoxos de nossa cultura. Eis quatro pontos, só para começar a pensar.

1. Nós, modernos, não acreditamos em essências subjetivas, mas na possibilidade de cada um mudar radicalmente. Com isso, nossas legítimas pretensões de segurança e de vingança se chocam com a suspeita de que, na hora da punição, o criminoso poderia não ser mais o mesmo sujeito que nos lesou. Como punir quem pode mudar? Imaginou-se um sistema penal paradoxal, que ofereceria ao mesmo tempo segurança e vingança para as vítimas e uma chance para os criminosos mudarem. Neste sistema, Marcinho se emendaria redigindo suas memórias atrás das grades. Tudo bem, mas como fica se de fato o sistema penal é só punitivo?

2. Alguns evocam a "ingenuidade" de João Salles. É engraçado, eu não vejo nenhuma ingenuidade na paixão moderna de reformar, educar e salvar aos outros. A modernidade começou batizando e convertendo à força índios, negros e judeus. Supostamente buscando o bem.

A fantasia de redenção segue ativa em nosso cotidiano: há o homem que casa com uma prostituta para tirá-la da rua e a mulher que sonha em seduzir um homossexual.

Esta vontade de mudar os outros é a face escondida de nossa tolerância: "somos ambos humanos", dizemos ao próximo, "mas quero te mudar. Aceito você, mas não assim como você está". Adoramos ser São Jorge liberando a donzela, mas evitamos de nos perguntar: e se a donzela gostasse de ficar cravada na rocha pelo bafo do dragão?

Pessoalmente, como João Salles, agiria para conquistar a alma de um Marcinho. Mas este esforço é eventualmente uma violência, não uma ingenuidade.

3. Por que querer salvar logo um bandido? Não há remédio: a modernidade é fadada a idealizar o fora-da-lei -cangaceiro ou hollywoodiano. Somos individualistas, vivemos proclamando que nossa liberdade estará acima de toda imposição social. Mas, para conseguir viver com os outros, tragamos -resignados e um pouco covardes- qualquer dose de conformismo. Com esta amargura na garganta, como não criar romances com a vida (miserável) de quem sai atirando nas margens?

4. Entrevistando João Salles para a revista "Veja", Thais Oyama observou: "Muita gente classificou sua atitude como uma tentativa de expiar uma culpa pelo fato de ser muito rico" (a família Salles é dona do Unibanco). João Salles: "É difícil que alguém neste país não tenha culpa social". Oyama de novo: "É melhor fazer algo movido a culpa que não fazer nada?".

Oyama se faz porta-voz de um lugar-comum de nossa cultura: o gesto que se origina na culpa perde sua nobreza, pois hoje é "cool" estar satisfeito consigo mesmo, sem reservas. A culpa está fora de moda.

O modelo dessa culpa culpada é: gostamos de geléia, a mãe decidiu que não, porque é quaresma. Desejamos a geléia, mas, por sentir culpa, aceitamos a frustração. Ou então roubamos uma colherada e, pela mesma razão, não aproveitamos direito. Em suma: a culpa seria submissão a valores que não são de nosso feitio e que nos impedem de gozar das coisas que desejamos.

Mas a história da geléia proibida é um modelo arcaico de culpa, afastado da experiência contemporânea. Com poucas exceções patológicas, nós, modernos, saboreamos a geléia sem lágrima nenhuma. Nossos apetites se legitimam sozinhos e se deixam dificilmente culpabilizar.

A culpa que João Salles reivindica é a culpa moderna: nesta, nossos desejos são a autoridade suprema, portanto é com eles que ficamos sempre em dívida. Não somos culpados de desobedecer a interdições de geléias variadas. Hoje nos sentimos culpados quando não conseguimos fazer o que desejamos.

Alguns de nós, como João Salles, têm anseios de justiça -uma vontade de mudar o mundo, de torná-lo melhor. É fácil ficar em dívida com este desejo, se sentir culpado de não conseguir realizá-lo.

Outros não conhecem esta culpa. Uma emergente, ao perceber olhares de inveja, comenta, feliz: "O povo me adora". Ela, por exemplo, não se sente culpada, porque não deseja, nunca desejou mudar nada.

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