quinta-feira, 6 de janeiro de 2000

Os jovens reduzem a cinzas duas imagens

Em Brasília, abril de 1997, o índio Galdino dos Santos foi queimado vivo por cinco jovens da classe média. Quem não se lembra? Durante várias semanas o país se indignou a fundo e mergulhou em sua alma para descobrir alguma razão para esse horror.

A tentação era pensar em um mal especificamente brasileiro. Afinal, toleramos formas de miséria extrema e de degradação que são barbáries próximas ao extermínio. Também sofremos (assim como se sofre de uma doença) do caráter atavicamente ávido e predatório das elites. Portanto não seria estranho que essas e (eventualmente) seus rebentos desconsiderassem totalmente a vida de quem está fora da única corrida que vale (do ponto de vista dominante).

No último dia 30 de dezembro, o editorial da Folha lembrava que em 1999 mais sete moradores de rua (este eufemismo para sem-teto) foram queimados, cinco deles por companheiros de infortúnio. O que não é, mas parece, menos trágico. O barco moderno é assim: não podendo suprimir os pobres, mas querendo melhorar a vida de todos, suprime-se a terceira classe. Quem não pode pagar a segunda vai para os tubarões. Se os clandestinos se matam entre eles, tanto melhor. Enfim, no Brasil, os assassinos de mendigos, em sua maioria, não foram adolescentes ditos de boa família. Pequena variante do mesmo drama nacional?

Não parece. No dia 23 de dezembro, o "The New York Times" publicou um artigo que me deixou estupefato. O texto começava descrevendo uma série de assassinatos selvagens: cinco batidos até a morte e dois decapitados em Denver. Outro batido, esfaqueado e decapitado em Richmond, Virgínia, a cabeça neste caso foi levada até uma ponte para pedestres e aí exposta. Em Seattle, mais dois. Outros em Dallas, em Chico, Califórnia, em Portland, Oregon, e por aí vai. Era uma lista de sem-tetos barbaramente assassinados nos Estados Unidos em 1999.

Nessa contagem feita a partir dos relatos na imprensa foram 29 mortos em um ano. Mais seis que mal sobreviveram aos ataques. Esses números assustadores subestimam o fenômeno, pois trata-se apenas dos ataques mencionados pela imprensa (a polícia não conta de maneira diferenciada os crimes contra moradores de rua). Além disso, sem-tetos e mendigos raramente registram queixas.

Os autores desses crimes são na maioria menores de 21 anos, o mais jovem tendo apenas 14.
O artigo do "Times" considera que não foi uma safra especial. Também é constante que a maioria dos suspeitos e acusados desse tipo de violência sejam adolescentes ou pré-adolescentes.

Apesar de ser um leitor cuidadoso da grande imprensa americana, eu não fazia idéia de que a história do índio Galdino fosse um crime globalizado. Ao contrário, como muitos outros, pensava que era a expressão de uma iniquidade brasileira.

Ora, em 1999, nos EUA houve 29 Galdinos. Também nenhum deles produziu o tipo de indignação que surgiu no Brasil em 97. Não houve nenhum "mea culpa" nacional. Nem está tendo agora depois do dito artigo. A morte dos sem-tetos parece lastimável, sem mais.
Deveríamos festejar, então, nossa capacidade de nos indignar, de compadecer e de nos questionar? Pode ser.

De qualquer forma, parece que, pelo mundo moderno afora, alguns adolescentes acham que matar mendigos e sem-tetos é programa. Esses assassinatos e ataques só podem ser a ponta de um vasto iceberg de ódio. Mas por que um adolescente passaria a odiar mendigos, excluídos e sem-tetos?

Certo: a sociedade sugere que esse jogo não constitui uma grande culpa. Em nosso mundo, eliminar um mendigo ou um sem-teto é como roubar algo que não vale nada, sei lá, um chiclete já mastigado.

Mesmo assim, os jovens que se envaidecem de matar um mendigo ou que acham graça em sacaneá-lo não devem agir só pelo prazer de confirmar um subentendido social.

Talvez os sinistros braseiros sejam os autos-de-fé da juventude: queimando (ou desprezando) mendigos e sem-tetos, os jovens reduzem a cinzas duas imagens.

Por um lado, eles exorcizam um futuro que poderia ser deles, tentam apagar uma ameaça de ostracismo que espreita suas vidas, caso eles viessem a fracassar.

Por outro lado, eles queimam (e aqui está o verdadeiro auto-de-fé) um destino que provavelmente eles desejam: uma hipóstase de sua possível revolta, de sua vontade de cair fora, pegar a estrada e presentear as exigências dos pais com um belo "beatnik" ou um "drop-out".

De fato, para um adolescente, o medo de não conseguir se conformar com ideais dominantes se confunde com a aspiração a ser diferente. Desprezar, sacanear ou mesmo matar mendigos, índios ou excluídos é uma maneira de lutar contra o pavor de fracassar ("apago o mendigo que eu mesmo, fracassando, poderia vir a ser") e no mesmo tempo de silenciar a aspiração a uma vida rebelde ("apago também aquele morador de rua que, contra todas expectativas, eu poderia gostar de ser").

Em suma, não deveríamos estranhar demasiado esses jovens sádicos e assassinos. Eles batem exatamente no que nossa cultura lhes ensina a detestar: o fracasso e sua própria rebeldia.

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