quinta-feira, 7 de outubro de 1999

Oficial, gentleman e degredado

Augusto Pinochet está em Londres sob prisão domiciliar. Amanhã, a Justiça britânica decidirá se ele deve ou não ir para a Espanha e ser processado por ao menos alguns dos horrores cometidos durante seu governo.

Seja qual for a decisão, haverá apelos. Talvez ele fique na Inglaterra, num limbo jurídico, até morrer. É também possível que, por razões humanitárias (é o cúmulo) ou políticas, Pinochet volte para o Chile para se fazer esquecer. Pouco importa.

Mesmo que o general seja solto hoje, há de se saborear uma pequena vingança. Pois ele já encontrou uma punição pouco banal quando em outubro de 1998 foi preso em Londres.
Pinochet não imaginava que isso pudesse lhe acontecer, pois, indo para Londres, ele pensava estar passando em casa. Como então seus conterrâneos civilizados (no caso, os europeus) não reconheceriam nele um par, um amigo, um próximo? Não bastaria os ingleses verificarem o perfume delicado do seu "after shave", o brilho de seus sapatos (que podiam até ser argentinos, mas imitação Bond Street) e o corte de suas camisas? Apesar da dor nas costas não veriam eles seu porte ereto e naturalmente autoritário?

O "The New York Times" relatou que, quando o detetive A. Hewitt, da Scotland Yard, lhe entregou o mandato de prisão, Pinochet comentou: "Estou sendo humilhado. Sou um general com 64 anos de serviço. Sou um gentleman que sabe o que é honra".

Pinochet se olha no espelho e vê o quê? Um oficial e um gentleman: a prestância de um soldado fiel e corajoso ou então a tranquila elegância de um militar aposentado instalado na poltrona de couro de um clube inglês. Devia, aliás, ser essa a imagem de si que o acompanhava nessa viagem a Londres.

Mas, quando olho para Pinochet, eu vejo outras coisas: um peito coberto de condecorações vazias, o cabelo brilhantinado, os óculos escuros envolventes. É a imagem da truculência brega: poderia ser "el general dictador" se um dia Angeli, Laerte e Glauco precisassem de um desses para a tira dos "Los Três Amigos".

Essa imagem manchada por pingos de sangue, suor e gritos é o retrato de Dorian Gray do general, escondido nos porões da guerra suja. Pinochet, naturalmente, prefere se contemplar no espelho do alfaiate de Londres. E devia presumir que todos os ingleses o veriam como o via seu alfaiate.

Ora, parece que os ingleses viram o retrato no porão. Prenderam o general, como se fosse ele, pode ter pensado, um índio Mapuche qualquer. Em suma, eles não entenderam que o general pertencia a mesma raça superior que a deles.

Fecharam-lhe na cara a porta do único clube que lhe importa. Seus fãs poderão recebê-lo de volta com bandeiras e aplausos no aeroporto de Santiago. Tanto faz. Para o tempo que lhe sobra, ele deverá ficar no Chile e saberá que lá fora ele não é considerado diferente das caras de povo que seus homens pisaram.

Para se defender, em dezembro de 1998, Pinochet teve de declarar que ele não poderia reconhecer o direito de julgá-lo a nenhuma corte que não fosse chilena.

Que desastre: o general teve de renunciar assim à sua nacionalidade especial de elite colonial. Ele era inglês por gosto, e, por ideal, a Inglaterra de seus sonhos deve ser o império vitoriano, a potência colonial por excelência. Ele era espanhol por ter sido a Espanha a potência que originalmente colonizou o Chile. Agora tanto a Espanha quanto a Inglaterra parecem desconhecer seu filho fiel. O prendem e processam. O que pensaria Pizarro se fosse preso e processado por matar alguns incas rebeldes e mandar ouro para a Espanha e para a Inglaterra?
Na frente da Corte de Justiça, onde corre o processo de Pinochet, grupos de chilenos se manifestam a favor e contra o general. Os que pedem que ele seja solto nem são todos fascistas. Alguns podem estar defendendo uma espécie de orgulho nacional: Pinochet é nosso, nós o julgaremos.

Eles esquecem que as elites mais sinistras, na América do Sul, sempre se mantiveram estrangeiras, coloniais.

Isso não só por preferência bancária, mas também por estarem convencidas de que a injustificável diferença social e econômica teria fundamento em alguma diferença étnica originária.

A história de Pinochet, aliás, sugere um interessante sistema de punição para ditadores e outros malandros poderosos do terceiro mundo. Seria uma espécie de nova versão do degredo.
Banqueiros corruptos, donos de imobiliárias caloteiras, deputados e vereadores cassados, ex-presidentes impeachados deveriam ser degredados ao contrário. Ou seja, como essas elites não se consideram nacionais, ser excluído dos Estados Unidos e da Europa é para elas ser excluído de casa, do lugar ao qual elas acham que verdadeiramente pertencem.

O degredo para elas deveria ser a condenação a ficar para sempre no terceiro mundo, junto com os povos que essas elites continuaram tratando como trataram os índios no tempo da conquista.

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