quinta-feira, 17 de fevereiro de 2000

Um "custo Brasil" a mais

Leio na imprensa americana uma história de corrupção. O superintendente das escolas de Lynn, Massachusetts, é acusado de ter promovido indevidamente sua própria mulher, empregado seu advogado pessoal sem licitação e outras coisas parecidas. Numa outra cidade, uma figura análoga gastou US$ 600 mil para consultorias não muito bem definidas e, sobretudo, em parte efetuadas pela sua irmã.

A corrupção brasileira e a americana não são muito diferentes: banalidade e universalidade da mesquinhez.

Mas há uma diferença notável entre os relatos de corrupções tão parecidos. Os relatos americanos (tanto na imprensa quanto nas conversas de bar) são factuais e pouco indignados. É muito raro que eles sejam acompanhados por considerações gerais sobre a malvadeza humana, e é impensável que o acontecido seja atribuído a algum traço do suposto caráter americano. A caricatura nacional não é nunca invocada como explicação.

Os relatos brasileiros, ao contrário, assumem um tom autoflagelador. O pior nos é reservado por estarmos no Brasil e sermos brasileiros: "Meus irmãos, somos sem-vergonha, malandros, aproveitadores etc.". Não que o Brasil seja só isso, mas o que há de ruim em nosso destino é o preço que pagamos por estarmos respirando ares culturalmente mefíticos no sovaco desse gigante.

Pelo mundo afora, todos indivíduos, grupos, famílias, sociedades sofremos de passivos herdados. É ótimo investigar esses passivos, para melhor ultrapassá-los. Essa é, por exemplo, uma das funções de qualquer psicanálise. Mas não seria preocupante se, cada vez que eu fizesse uma besteira, me consolasse e desculpasse alegando meu "custo Contardo"? "Oh! Não paguei impostos? É "custo Contardo", sabem como é, minha família nunca gostou mesmo."

Em suma, certamente há um "custo Brasil", ou seja, uma série de dificuldades que devemos à história do país. Mas há também um "custo Brasil" suplementar e talvez mais oneroso, que é um efeito retórico.

O Brasil, por exemplo, rouba a cena de nossas narrativas. Sinto falta de histórias que sejam de amor, de ódio, de aventura ou simplesmente de vida e nas quais o Brasil não seja um protagonista sorrateiro, mas sempre crucial. Será que é possível se apaixonar na Lapa, transar nos motéis da marginal, jantar no edifício Itália, descer para Santos num domingo, sem que o mau governo, a injustiça social, os problemas do trânsito, o passado bandeirante, os restos da escravatura e todos os traços da identidade nacional sejam convocados para contar, legitimar e justificar a história?

Esse "custo Brasil" retórico empobrece também nossos esforços de compreensão. Ele induz à preguiça do pensamento e inibe a ação. Pouco adianta dar respostas concretas para os problemas que nos assolam, pois a causa do que não funciona é sempre mais geral e, por isso, está fora do alcance. Por exemplo, imaginemos que a produtividade brasileira esteja baixa. Poderemos reconhecer que o protecionismo serviu à miopia de empreendedores pusilânimes, os quais aproveitaram das vacas gordas sem modernizar o aparelho produtivo. Mas logo chegaremos a uma causa originária: por exemplo, os ditos empresários encheram seus bolsos, em vez de modernizar suas fábricas, porque as elites brasileiras são uma herança do extrativismo colonial etc.

As coisas vão se explicando, até que em última instância tudo acontece "porque o Brasil". Poderia se tornar uma expressão sem verbo: há criminosos porque o Brasil, há corruptos porque o Brasil, há caudilhos porque o Brasil, há favelados porque o Brasil. E por aí vai. Melhor, por aí não vai a lugar nenhum, pois o Brasil torna-se assim a figura retórica do primeiro motor imóvel de todas as cadeias causais. Ele é portanto imutável, igual a si mesmo.

Esse Brasil retórico, origem de todos nossos infortúnios, vinga por ser também nosso sumo bem, nossa consolação: ele responde a nossas perplexidades, autoriza nossa inação e sobretudo cimenta nossa comunidade. Ele é uma língua compartilhada, que nos torna todos amigões. Graças a ele, podemos olhar para a Câmara Municipal, para o engenheiro que escravizou sua empregada, para o deputado do narcotráfico e piscar o olho uns para os outros, sorrindo encantados: "É isso aííííí!". Eis que nossos males são do Brasil, do mesmo jeito que os gols são da seleção. É o encontro festivo com uma imagem fácil e pitoresca que nos propõe prazeres narcisistas clandestinos.

Vivo, como muitos outros, uma contradição. Por um lado, há a paixão de entender uma herança que mistura ativos e passivos com a esperança de conseguir assim preparar um futuro melhor. Pelo outro, a irritação com o recurso contínuo a essa herança, em que a fascinação complacente nos imobiliza, como se, logo na hora de agir, Carmen Miranda saísse no palco e pedisse para permanecermos sentados para o show.

Melhor confessar, para que se entenda do que estou falando: ontem, um amigo me contou de um horror brasileiro qualquer. Seus olhos brilharam, irônicos, mas complacentes, ao concluir: "Isso é o Brasil!".
Pois é, não quero mais isso.

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