quinta-feira, 4 de maio de 2006

Palavras vazias

Aos 12 anos, fiquei um mês de cama. Não me lembro se foi por uma gripe ou algo mais sério, mas sei que passava meu tempo lendo. Alguém me oferecera um tratado sobre o Diabo: era uma longa compilação, desde a queda de Lúcifer até os cultos satânicos modernos. O livro terminava com um apêndice que explicava as diferentes maneiras de convocar o demônio.

Era crucial evitar que Satanás, uma vez convocado, se apoderasse de minha alma sem oferecer uma contrapartida valiosa -tipo: "Dano-me para a eternidade, mas você fará meus deveres de casa até o fim de meus estudos". Ora, o livro propunha rituais minuciosos (pentagramas, círculos de sangue etc.) que eram impossíveis de realizar no meu quarto. Salvo um: uma fórmula de duas páginas, cuja simples leitura em voz alta garantiria que o capeta se apresentasse manso e bem-disposto. Problema: a fórmula só funcionaria se ela fosse lida sem erros; uma letra fora do lugar bastaria para que o diabo aparecesse na minha frente indignado e poderosíssimo. Detalhe: o texto era composto por uma série de nomes diabólicos com uma concentração de consonantes de dar inveja a uma lista telefônica polonesa, e o risco de errar na pronúncia era considerável. Na solidão de meu quarto, comecei a ler em voz alta. Dezenas de vezes, amarelei antes do fim. Mas, logo, recomeçava. Por quê?

Não acho que estivesse a fim de encontrar o capeta, tampouco tinha um pacto importante para lhe propor, mas não resistia à sedução de palavras que, segundo o livro que estava na minha mão, teriam o poder de evocar o próprio espírito do mal.

Pois bem, o best-seller mundial do último ano é "O Código Da Vinci", de Dan Brown. No seu rasto, vêm "O Enigma do Quatro", de Caldwell e Thomason, e "O Clube Dante", de Matthew Pearl. Isso, sem contar "O Historiador", de Elizabeth Kostova, ou "O Terceiro Segredo", de Steve Berry.

Na minha (prazerosa) leitura, são romances que pertencem ao filão de "O Nome da Rosa", de Umberto Eco (1980).

Fora o sucesso de público, o que a história de Maria Madalena tem a ver com os vampiros ou com o terceiro segredo de Fátima? Por que juntar esses romances num mesmo "filão"?

Certamente, eles satisfazem ao gosto "new age" pelas coisas arcanas e "espirituais", ou seja, encorajam-nos a acreditar que a vida seja mais misteriosa do que ela é. Desse ponto de vista, eles não são diferentes das façanhas de Harry Potter e da magia de Paulo Coelho.

Mas não é só isso: todos os romances que mencionei contam histórias em que as palavras têm um valor muito especial. Morre-se por um livro inédito de Aristóteles, mata-se por um evangelho apócrifo; uma frase pronunciada em voz alta comanda a aparição do vampiro; quase sempre, o segredo está em alguns textos que é preciso encontrar, ler, meditar e interpretar perfeitamente -textos em que cada letra conta.

É bem possível que o motivo do sucesso atual desses best-sellers seja, então, o esvaziamento dos discursos que enchem o dia-a-dia de nossos ouvidos: a nostalgia por uma palavra magicamente plena e eficiente bate forte num momento (ou numa época) em que as palavras que nos interpelam parecem curiosamente fúteis.

Em sua maioria, as falas públicas (das quais somos os destinatários) não apostam na nossa capacidade de entender, memorizar, pensar e julgar; sobretudo, elas supõem de antemão sua própria irrelevância: desprezam sua capacidade expressiva, seu texto e sua mensagem. O que é despejado em nossos ouvidos cultiva apenas aquela função da linguagem que Jakobson chamava "função apelativa", ou seja, a função pela qual quem fala quer nos induzir a agir segundo seus desejos.

Criminosos convictos nos falam de ética pública e pedem cumplicidade, políticos desqualificados nos prometem futuros radiosos e pedem votos, publicitários mentirosos nos garantem a felicidade a preço de banana e pedem compras. O texto não tem importância nenhuma, só importa que ele nos convoque.

Nos primórdios da psicologia comportamental, Pavlov condicionou um cachorro para que salivasse a cada vez que ele escutava uma campainha. Pois bem, espera-se que sejamos como o cachorro de Pavlov no meio de um concerto de campainhas, salivando sem parar e sem pensar.
Em suma, estamos na posição do capeta de minha infância, mas recebendo fórmulas incoerentes. O capeta, em princípio, ficaria furioso. E nós?

Bom, aparentemente, em compensação, somos seduzidos por histórias em que as palavras contam, pois escondem (e, eventualmente, revelam) um sentido, histórias em que a ação é fruto de uma atenta meditação do que foi dito e está escrito.

Aparte: estreou na semana passada, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, a nova peça de Gerald Thomas, em homenagem a Samuel Beckett, "Asfaltaram a Terra". Na verdade, são quatro peças breves (apresentadas duas de cada vez, em dias alternados), com Serginho Groisman, Luiz Damasceno, Fabiana Gugli e o próprio Thomas como protagonistas. Ninguém melhor que Gerald Thomas consegue transformar em espetáculo a extraordinária cacofonia que assombra os ouvidos modernos.

quinta-feira, 27 de abril de 2006

"Estrela Solitária": fuga para o passado

Nos anos 70, na França, descobri um estranho fenômeno: a cada ano, cidadãos adultos, em número significativo, mas incerto (na casa dos milhares), sumiam, simplesmente.

Alguns, ao sumirem, cometiam um crime: paravam de pagar dívidas, abandonavam crianças etc. Esses eram contabilizados e procurados ativamente. No entanto, a maioria deixava apenas seus amigos, parentes e conhecidos um pouco (ou muito) preocupados. A polícia, uma vez avisada, registrava a ocorrência, mas não sabia bem o que fazer. Na ausência de um delito, investigar o quê? Mesmo se uma investigação tivesse êxito, por que a polícia comunicaria a quem que fosse o novo paradeiro do "desaparecido"?
A lei nos dá o direito de sumir, sem dever explicações para ninguém. E, de fato, pelo mundo afora (não só na França, é óbvio), há pessoas que, um belo dia, vão embora.

A idéia já me passou pela cabeça. Aliás, ela me tenta a cada vez (e foram muitas vezes, nos últimos anos) em que empacoto ou desempacoto a incrível quantidade de trastes que levo comigo nas mudanças, objetos de "valor afetivo", papéis misteriosos guardados porque "nunca se sabe", fotografias, cartas: o amontoado de contratos puramente simbólicos que me ligam (de uma maneira mais ou menos tolerável) ao meu passado e aos outros.

Essa tentação de sumir pelo vasto mundo me parece expressar a vontade de nascer de novo e, se possível, desta vez, debaixo de um repolho -sem dever nada a ninguém.

Pois é, se essa idéia passou alguma vez por sua cabeça, não perca, sob nenhum pretexto, o novo filme de Wim Wenders, "Estrela Solitária", que estreou na sexta-feira passada. E, se a dita idéia nunca lhe ocorreu, também não perca: no mínimo, o filme (que é uma obra-prima) será de grande ajuda para entender quem é o seu vizinho (às vezes, mais vizinho do que você imagina) que pensa em fugir da vida que ele tem.
Como disse, eu entendia a tentação da fuga como uma vontade de zerar as contas e de recomeçar. Em suma, achava que eu quisesse fugir para o futuro.

Mas o filme de Wenders propõe um caso diferente ou, então, uma interpretação diferente, que poderia valer para todos os fugitivos, ou para sua maioria (inclusive para mim). Por mais que a fuga manifeste uma vontade de recomeçar, sua direção não é necessariamente o futuro; pode ser o passado. Foge-se não só do peso das obrigações acumuladas ao longo da vida, mas também (e talvez sobretudo) de sua insuficiência. Foge-se, por exemplo, na procura daqueles fios que deixamos cair ao longo da estrada e que poderiam ter ligado nossa vida aos outros de uma maneira que valesse a pena.

O protagonista de Wim Wenders (Sam Shepard, que co-assina o roteiro) não corre atrás de uma liberdade perdida. Ao contrário, ele descobre um dia que sua vida foi bem animada e, por isso mesmo, passou sem que ele se desse conta, sem deixar rastos, sem construir laços. E foge para o passado.

Alguém lhe pergunta, num momento crucial do filme: "Do you want to be related?". A frase não pode ser traduzida de maneira sintética, ela não significa apenas "Você quer ser parente de alguém?" (a legenda, no caso, está francamente errada); a pergunta concerne à vontade ou não de estar na malha dos afetos, tristes ou alegres, que organizam uma existência e distribuem as obrigações que esses afetos acarretam. Ou seja, o sentido é: "Quer ou não viver com os outros?".

Logo depois desse momento, o protagonista passa uma noite sentado num sofá que, jogado anteriormente pela janela, está no meio de uma rua. Ele escuta as vozes humildes do cotidiano de quem vive com os outros, as conversas, os gritos, os suspiros ofegantes do amor.

É difícil escolher: podemos viver como heróis de filme de bangue-bangue, entre um adeus cinematográfico ("Não chore, querida, voltarei antes de a neve cair") e uma volta tão cinematográfica quanto o adeus (apareceremos no horizonte, montados num cavalo branco ou numa velha Packard, tanto faz). Ou, então, podemos viver sem cenas triunfais, no murmúrio do dia-a-dia, que nem sempre é engraçado, mas no qual os que estão ao redor de nós podem justificar nossa existência, dar-lhe um sentido que não seja apenas espetacular.
Ou seja, podemos viver para sermos as "estrelas solitárias" do filme de nossa vida ou deixar que os outros nos enredem num emaranhado que será menos glorioso.

Apartes:
1 - Apesar de meu último parágrafo, continuo pensando que o título original, "Don't Come Knocking" (literalmente: não venha bater na minha porta), mereceria uma tradução melhor.

2 - Diante da morna reação de alguns críticos, fico perplexo. Não sei se devo me surpreender com a incapacidade de enxergar a extraordinária qualidade cinematográfica do filme (a luz fria que bate nas ruas de Butte, Montana, parece a extensão dos melhores quadros de Edward Hopper, quando ele pintava o enigma da solidão americana) ou se devo me surpreender com a incapacidade de reconhecer no roteiro uma meditação terna, divertida e profunda sobre um dilema fundamental da subjetividade contemporânea.

quinta-feira, 20 de abril de 2006

Meu jeito de ser crítico (e um pedido para "Filhos do Carnaval")

Meus amigos se queixam: assistir a um filme comigo é uma chatice. É raríssimo que eu saia de um espetáculo disposto a compartilhar críticas alegremente demolidoras.

Minha atitude básica é sempre um preconceito favorável, uma gratidão pelo trabalho de quem escreveu, atuou, dirigiu, montou, editou. Além disso, o esforço para entender e para gostar me parece mais prazeroso e mais "rentável".

Quando era criança, às vezes, um adulto preparava uma "surpresa" (uma mesa posta especialmente para meu aniversário ou uma cestinha de ovos de chocolate para a Páscoa) e me pegava pela mão: "Venha comigo e feche os olhos". Na grande maioria dos casos, não havia surpresa nenhuma; eu já tinha entrevisto os preparativos, alguém chegara em casa no dia anterior com os ovos nos braços. Pior ainda, nada daquilo correspondia ao que eu desejava: a festa de aniversário seria estereotipada e chata, os ovos nunca eram do chocolate de que eu gostava e, de qualquer forma, teria preferido brincar no terreno baldio ao lado de casa.
Podia escolher: dava a mão e fechava os olhos ou, numa declaração de independência, manifestava que eu era grande demais para aquela surpresa "idiota".

Pode ser que desse a mão por preguiça e submissão. Mas acho que me deixava levar porque era mais divertido e instrutivo. Descobria assim o que os adultos imaginavam que fosse a felicidade de uma criança, aprimorava meu entendimento do que eles queriam comigo. Ter acesso ao desejo dos adultos me interessava mais do que me proclamar experto, recusando-me a cair em suas encenações.

Com livros, filmes, peças de teatro, acontecia a mesma coisa. No mínimo, deixando-me seduzir, tentando gostar, descobria (ou imaginava descobrir) para onde o autor queria me levar.

Mais tarde, duas idéias confirmaram essa disposição. Estudando filosofia (kantiana), aprendi que criticar não significa apenas aprovar ou reprovar, mas sobretudo entender como uma obra se tornou possível e, para seu autor, necessária. Estudando psicanálise, adotei uma idéia de Lacan: quem mais se engana é quem emprega sua energia para evitar ser enganado.

Quando, apesar de meus esforços, não consigo gostar de uma obra nem um pouco, prefiro me calar. Os comentários negativos dariam, eventualmente, prova de minha argúcia, mas não diriam nada que prolongasse a obra de maneira a torná-la mais rica, para mim e para os outros. Uma exceção: quando o lugar para onde o autor me leva ou seu jeito de me pegar me indignam, aí grito.

Nesta semana, estreou "Árido Movie", de Lírio Ferreira. Os amigos que foram ao cinema comigo acharam o filme engraçado (e é mesmo), mas saíram criticando: segundo eles, o filme "se perde" entre várias histórias.

Há a história do paulistano que volta ao sertão de Pernambuco para enterrar o pai. Há a história de seus amigos, que querem acompanhá-lo e transformam essa nobre missão numa balada maconheira. Há a história da cineasta que percorre o árido para filmar a água que não tem. Há as histórias de vendeta e cobiça. Há a sabedoria do Meu Velho, que não se sabe se ilumina o sertão ou lucra com a seca. E por aí vai.

Ora, para mim, a curiosa variedade dos enredos é o interesse do filme, pois ela corresponde ao catálogo dos diversos caminhos pelos quais sempre se aventura nossa visão do sertão: a suposição idealizada e nostálgica de sei lá qual sabedoria, o fascínio pelo atraso e por suas tradições violentas, a sedução de um cenário insólito para nossas festinhas etc. Em suma, não é o filme, mas o sertão (seu tema) que se perde por esses caminhos, tornando-se tema inesgotável de ficções, romances, poemas e "instalações" de artistas modernosos.

Quem tem razão: meus amigos ou eu? Não sei, mas fico com a impressão de que eu saí ganhando.
Outro assunto. Nas últimas semanas, assisti, na HBO, a um seriado de seis capítulos, "Filhos do Carnaval", de Cao Hamburger. Faço um pedido à produtora, a Gilberto Gil, à HBO, aos donos de salas de cinema e ao próprio Cao Hamburger: por favor, não deixem que esse extraordinário seriado seja apenas a sorte de quem tem televisão a cabo, assina HBO e conseguiu liberar suas noites de domingo. Distribuam em DVD, passem de novo na TV aberta, transformem em dois filmes de três horas cada um. Dêem um jeito.

"Filhos do Carnaval" é uma das melhores obras dos últimos anos. Raramente a televisão e o cinema nacional conseguiram uma excelência narrativa e formal equivalente. Quem viu não esquece a agilidade da câmara e o uso de uma cor sem tons vermelhos, que dá ao filme uma qualidade dramática parecida com a do melhor preto-e-branco. A narrativa, sem psicologismos, é por isso mesmo estranhamente profunda. O resultado é cativante.

Mais um detalhe: Cao Hamburger demonstra que, quando um filme é grande, a questão de saber se ele "glamouriza" ou não seus personagens (pouco exemplares, de fato) é sem pertinência. Pois eles nos conquistam e nos fazem sonhar sem que tenhamos a menor vontade de ser como eles.

quinta-feira, 13 de abril de 2006

O verdadeiro petista

A vida moderna é cansativa. Não estou pensando na correria, na competição forçada, na expectativa constante de crescimento (aprenda mais, ganhe mais, compre mais, namore mais, transe mais, "seja" mais).

Tudo isso pode, de alguma forma, ser administrado, mas sem grande resultado: o cansaço permanece. Por quê?

A explicação é simples: não é a vida, é a subjetividade moderna que é cansativa. Já faz séculos que vivemos, no fundo, sem regras. Claro, há hábitos morais e princípios nos quais acreditamos, mas, justamente, eles valem só porque queremos respeitá-los.

Todas nossas escolhas, em última instância, são questões de foro íntimo; nós devemos decidir, a cada instante, se o que é legal ou conforme aos costumes coincide com o que NOS parece certo ou justo. Agir segundo os costumes e a lei não basta para justificar nem para desculpar. "Fiz assim porque é o que todos fazem ou porque assim manda a lei", para nós, não é uma razão suficiente, visto que respeitar os costumes ou a norma é uma escolha nossa.

Na clínica psicoterápica, aliás, constata-se que as culpas dolorosas não são as culpas por ter transgredido leis e costumes, mas as culpas por ter deixado de escutar nossa voz interior, por ter deixado de seguir nosso desejo ou nossa consciência moral.

Em suma, o que é extenuante, na modernidade, é ser sujeito.

A esse cansaço responde uma nostalgia de tempos passados, em que as regras e a tradição se encarregariam de decidir por nós: apelos aos "valores" perdidos, aspirações a uma vida simples e rural, vocações monásticas.

Mas a grande "cura" desse cansaço é oferecida pelas paixões de grupo, que afogam nossa incerteza no funcionamento coeso de uma coletividade onde esqueceríamos a tarefa de sermos sujeitos para sermos apenas (alívio) funcionários exemplares. Uma vez que estivermos perdidos no grupo, a extenuante pergunta íntima sobre o bem e o mal poderá ser substituída pela questão, mais simples: "Agimos ou não como o grupo manda? Fomos ou não seus instrumentos adequados?".

Os grupos que preenchem essa função estão ao serviço da covardia do sujeito: "A tarefa de decidir no foro íntimo é cansativa? Pois bem, há grupos que oferecem férias, férias da subjetividade".

Um exemplo: um bando de torcedores cruza alguém que se aproxima do estádio com uma bandeira do time oposto. Um torcedor do bando arranca a bandeira das mãos do "inimigo". Em seu estado normal, longe do grupo, o torcedor poderia se perguntar: "Quem sou eu? Um sujeito com história, família, valores, pensamentos próprios? Ou me defino apenas como um torcedor? Quem dita meus atos é minha complexa subjetividade ou o grupo ao qual pertenço hoje?".
A história fornece exemplos menos inócuos.

Há as palavras de Stálin aos camaradas que mostravam um certo desconforto na hora de arrancar aos camponeses russos seus míseros meios de subsistência: elas fazem apelo à necessidade, para os bolcheviques, de serem, como se dizia, "homens de ferro", ou seja, homens de palha de um grupo que os aliviava da responsabilidade de seus atos ("Stálin, a Corte do Czar Vermelho", de Simon Montefiore, acaba de sair em português; é imperdível).

Há o famoso discurso de Himmler aos oficiais SS que se dedicariam à "solução final": salienta a necessidade de eles se mostrarem "à altura" da tarefa genocida, ou seja, de esquecerem os escrúpulos, as compaixões e aquelas "picuinhas" que atormentam e cansam a subjetividade moderna, para que pudessem "ser" SS e exterminar sem "fraquezas".

Dediquei meu doutorado à sedução que é exercida pelos grupos que autorizam seus membros a descansar e a desistir de sua subjetividade. Mantive a tese inédita talvez porque sua questão central me parecesse pertencer a uma outra época, à época "passada" dos totalitarismos.
Pois bem, acho que vou mudar de idéia graças ao deputado Jorge Bittar, que, nestes dias, mostrou-me que a questão continua viva e urgente. A tentação de sacrificar "escrúpulos" morais, de esquecer o foro íntimo e deixar o grupo decidir por nós não é coisa do passado. Está dormindo num canto, esperando momentos propícios.

Jorge Bittar, deputado do PT, não gostou do relatório da CPI dos Correios (ou seja, achou que o relatório não era partidário como ele queria que fosse) e xingou o senador Delcídio Amaral, presidente da dita CPI, também do PT. Além das palavras chulas -as quais substituem uma violência que, num Estado democrático, não pode ser física (não dá para eliminar Delcídio, eh?)-, ele disse (frase impagável) que o senador não se portou "como um verdadeiro petista".
Para quem desiste de ser sujeito para se fazer instrumento do grupo, o outro, o que escuta seu foro íntimo, é um "traidor".

Não é a Câmara, mas o PT que deve condenar oficialmente as palavras de Jorge Bittar. Ou então deveremos entender que o PT é um daqueles grupos que oferecem férias à subjetividade de seus membros, ou seja, que pedem que eles ajam não segundo a complexidade da consciência, não segundo o que lhes parece certo ou errado, mas só como instrumentos ao serviço do partido.

quinta-feira, 6 de abril de 2006

Corpo e mente

No número de dezembro 2005 do "Archive of General Psychiatry" (vol. 62, nº 12), foi publicada uma pesquisa dirigida por Janice Kiecolt-Glaser, do Institute for Behavioral Medicine Research (instituto de pesquisa em medicina comportamental) da universidade de Ohio, EUA. Seu tema: as interações conjugais negativas e a cicatrização.
Foram escolhidos 42 casais, entre 22 e 77 anos. Nos braços de todos, maridos e mulheres, foram criadas oito pequenas feridas, que foram cobertas de maneira a medir as variações dos fluidos que o corpo produz para facilitar a cicatrização.

Depois disso, os casais foram expostos a duas sessões de "conversa". A primeira foi orientada para que fosse uma troca agradável sobre o que cada um queria modificar em seu comportamento para melhorar a vida do casal. A outra foi orientada para que os casais brigassem (temas preferidos: dinheiro e sogros).

A pesquisa constatou que a cicatrização era sempre mais lenta depois das brigas. Os casais mais briguentos mostraram uma cicatrização que era apenas 60% da dos outros.

É provável que os achados, já bem significativos, subestimem o impacto da hostilidade entre marido e mulher, pois se presume que, em casa, as crises dos casais briguentos sejam crônicas e mais violentas do que sob observação externa.

Conclusão: se você deve e pode programar uma operação, tente primeiro arrumar sua vida afetiva.

Conclusão mais genérica: a má qualidade de uma relação e sua desagregação agem no corpo e são péssimas para a saúde.

É um ovo de Colombo. Alguém poderia perguntar: por que essa pesquisa, se ela comprova uma obviedade que, intuitivamente, todos sabemos desde sempre?

Pois é, pesquisas como essa, aparentemente "inúteis", estão mudando, aos poucos, nossa visão de nós mesmos.

Durante os últimos quatro ou cinco séculos (no mínimo), fomos fundamentalmente dualistas. Ainda hoje, vivemos e pensamos como se a mente e o corpo fossem coisas separadas.
Graças a esse dualismo, nossa ciência se desenvolveu com eficácia e rapidez. Se tivéssemos enxergado as infecções como conseqüência de sortilégios ou males do espírito, não teríamos descoberto a existência de bactérias e os antibióticos para matá-las.

Mas o custo foi grande: uma incapacidade de reconhecer o sujeito como um todo, corpo e mente. Na medicina, admite-se a necessidade de atender com carinho e de escutar um pouco as queixas do paciente. Há médicos para reconhecer que o "estresse" faz mal ("Tire umas férias"). E há enfermidades para as quais "fatores psicológicos" são reconhecidos como causas possíveis: certos casos de pressão alta, algumas disfunções da tireóide e por aí vai. Mesmo nesses casos, o "psíquico" aparece como um fator que "contribui" à enfermidade e ele é quase sempre genérico (o termo "estresse", por exemplo, quer dizer tudo e nada).

A medicina não opera quase nunca com o pressuposto de que o "psíquico" seja, na verdade, uma parte do "físico". Curioso, pois ele é a experiência de transformações químicas e neurônicas que são impostas pelas circunstâncias da vida e que agem sobre o conjunto da subjetividade (corpo e mente).

Talvez as recentes pesquisas que descobrem o "óbvio" anunciem uma mudança cultural, um novo convívio entre mente e corpo -quem sabe, o fim de seu divórcio.

Parece que estamos, aos poucos, descobrindo que nossa subjetividade não é dividida entre corpo e mente. Nessa descoberta, aliás, a psicologia deveria ter a tarefa de definir e diferenciar afetos, emoções e relações com uma sutileza que corresponda à sutileza das tomografias computadorizadas e das análises bioquímicas. Seria bom parar de associar as alterações do cérebro e do corpo, finamente descritas, com platitudes psicológicas, como o fatídico "estresse".

Falando em pesquisas que descobrem o "óbvio", mais uma. No decorrer deste ano, a revista "Psychological Science" publicará uma pesquisa de James A. Coan e outros, que foi recentemente resumida na imprensa americana.

Foram escolhidos 16 casais muito felizes. A mulher de cada casal foi inserida num tubo de ressonância magnética e lhe foi dito que ela receberia uma leve descarga elétrica no tornozelo. As imagens do cérebro mostraram, em todas as mulheres, uma atividade intensa nas regiões envolvidas na expectativa de dor e emoções negativas. Foi suficiente que o marido inserisse a mão no tubo e tocasse sua mulher para que essa atividade cerebral diminuísse, sempre e drasticamente.

Conclusão: o toque de uma pessoa querida é curativo e modifica a atividade cerebral. Visto que a sensação de dor física é ligada ao nível de sua antecipação, uma mão amada pode ser considerada um sedativo eficiente.

Conclusão indireta: a rejeição total sem contato físico não é só uma punição psíquica, é também uma agressão contra o corpo -se é que faz sentido manter a distinção de corpo e mente.
Enfim, uma indicação: viver sem tocar os que a gente ama (por exemplo, criar filhos sem abraços e carinho) significa condená-los a uma dor que não é "só" psíquica.

quinta-feira, 30 de março de 2006

O discurso dos políticos

Acaba de sair "Renda Básica de Cidadania" (L&PM), de Eduardo Suplicy. O senador de São Paulo explica o projeto que ele defende e promove há anos.

A idéia é simples: uma renda mínima (suficiente para evitar a miséria) para todos os cidadãos, TODOS, indiscriminadamente.

Alguém dirá: o que vai fazer o presidente da Fiesp com, sei lá, R$ 300 por mês? Não seria melhor reforçar os programas de assistência, ou seja, oferecer R$ 600 a uma família em apuros e nada a quem não precisa?

Quando meu filho nasceu, em Paris, em 1981, fui beneficiado por um programa de alocações distribuídas a todas as gestantes que passassem pelos exames pré-natais recomendados. Ao receber o primeiro cheque (devia ser o equivalente de R$ 200), ficamos perplexos. O valor era inferior ao de nossas contribuições mensais (obrigatórias) ao próprio sistema do qual nos tornávamos beneficiários. Então, por quê?

Argumenta-se, por exemplo e com razão, que a distribuição de uma renda básica para todos evitaria o custo burocrático necessário para estabelecer quem precisa mesmo de ajuda.
Mas o verdadeiro interesse do projeto está no próprio princípio de uma renda que todos receberiam, simplesmente por serem cidadãos. As conseqüências mais relevantes são, ao meu ver, psicológicas.

1) Quem precisa de ajuda não deverá comprovar sua indigência, ele não estará recorrendo à "generosidade" social, apenas desfrutando de um direito. Será ajudado não por ser pobre, mas por ser cidadão.

2) O direito de todos a uma renda básica mudaria nossa maneira de conceber a comunidade na qual vivemos. Aquém das diferenças sociais e econômicas, mesmo extremas, nossa comunidade nos apareceria como um empreendimento comum, que reverte seus dividendos para todos.
Trata-se de uma prática política que afirma com força a dignidade de todos e, sobretudo, que instila em cada um a convicção de que existe uma coisa pública.

O programa valeria como uma terapia comportamental em que, mudando os atos, tenta-se modificar o estado de espírito do paciente: no caso, seriam modificados nosso entendimento e nossa experiência da coletividade. Não seria nada mal.

Somos expostos a uma massa de discursos de campanha. São palavras, logicamente, que querem nos seduzir, ou seja, são exercícios retóricos, em que o que importa é a arte da persuasão.
Uma das formas da persuasão consiste em invocar um princípio que os outros são compelidos a compartilhar. Se falo "em nome de tudo o que é sagrado e bonito...", por exemplo, sugiro que, ao discordar de mim, você estará desprezando o sagrado e o bonito. Claro, a gente não cai em qualquer armadilha, mas a persuasão trabalha às escondidas.

Ora, poucos dos discursos políticos que estamos ouvindo invocam, como princípio comum, a existência e a dignidade da coisa pública.

Há o discurso (sempre presente) que invoca genericamente a esperança: "Amanhã o Sol se despertará cantando".

Há o discurso paternalista, que invoca o amor pela autoridade de nossa infância: "Terão um pai bondoso que cuidará de vocês, meus pequenos". Em sua versão populista, ele invoca a generosidade para com o "povo sofrido". Ao ouvi-lo, sempre me lembro de uma inscrição que apareceu, em 1968, na fachada da universidade de Milão. Na época, existia um grupo "revolucionário" que se chamava "Servire il popolo" (servir ao povo). A inscrição dizia: "Eu não sirvo a ninguém, que o povo se sirva sozinho".

Há os discursos fracionários, que invocam o partido ou a classe acima do interesse público. Por exemplo, a deputada Angela Guadagnin não fez um discurso, mas dá na mesma: celebrou com passes de samba a impunidade de um colega de partido que trapaceou na contabilidade dos fundos de campanha (ela acaba de inventar, aliás, uma nova figura do Carnaval: a "trapassista").
Há os discursos que fazem apelo a princípios morais, fés religiosas, valores "tradicionais" etc. A relação disso com a gestão da coisa pública é um enigma.

Há o discurso nacionalista, que parece fazer apelo à nação como bem comum, mas, de fato, só esquenta identificações: "Ganharemos a Copa, o biocombustível é nosso, e Santos-Dumont foi o primeiro". Mas o que isso tem que ver com a gestão da coisa pública?

A ausência de uma retórica republicana é responsável, ao menos em parte, pela estranha situação atual, em que o caixa dois e o uso de fundos públicos para partido e campanha parecem "naturais" -inclusive aos olhos da gente.

Na quebra do sigilo do caseiro Francenildo Costa, espanta-me, além do abuso de poder, a suposição que a motivou: o caseiro só poderia ter sido pago por alguém. Aparentemente, nem Palocci nem seus assessores consideraram que um cidadão pudesse testemunhar por dever cívico, em nome da coisa pública.

A ausência da retórica republicana é crônica no Brasil, talvez com a exceção da Primeira República (o livro de Luiz Felipe D'Avila, "Os Virtuosos", que estou lendo, confirma essa tese).
Mas não é proibido mudar: afinal, quem está com o controle remoto na mão somos nós. Agora, cuidado: a retórica da coisa pública é chata, não dá jingle nem samba para passista.

quinta-feira, 23 de março de 2006

Dois tipos de homem solitário

Reagindo à minha coluna da semana passada, Álvaro de Campos, um leitor com quem dialogo com freqüência, notou que, ao escrever sobre percalços amorosos, eu me ocupo raramente daquela "maioria que não está mesmo casada e que nem por isso deixa de sofrer por amor".

Por sorte, acaba de estrear "A Garota da Vitrine", de Anand Tucker, que traz para o cinema "A Balconista" (Record), um breve e excelente romance de Steve Martin, mais conhecido como ator.
"A Garota da Vitrine" é um filme divertido e tocante. Só me atrapalharam um pouco as (raras) intervenções da voz em off do narrador; é como se Steve Martin (que assina também o roteiro) quisesse esclarecer a moral da história. É uma pena, pois a história tem mais "moral" do que cabe na voz em off do narrador. A literatura e o cinema são livres matrizes de sonhos, pesadelos e reflexões sobre nossa vida, e sempre acho chatos os cineastas e os romancistas que nos dizem o que deveríamos pensar dos acontecimentos que eles nos contam.

"A Garota da Vitrine" é a história da jovem Mirabelle, dividida entre o charme de Ray Porter, um homem que poderia ser seu pai (só que bem mais rico do que o dito pai), e as investidas de Jeremy, um rapaz muito desajeitado. Mas o filme é também o drama de Ray Porter, dividido entre seu amor por Mirabelle e suas "razões" para continuar solteiro.

Ora, existem várias categorias de homens solitários; destaco as duas mais gerais.

Há os que decidiram que a vida divertida é a do beija-flor e vão esvoaçando de parceira em parceira. Aqui, aparentemente, nenhum drama, apenas a comédia das juras falsas e das mentiras que têm as pernas curtas.

E há os que se apaixonam, amam, mas não conseguem se engajar numa relação e ainda menos numa convivência. Eles são (e se vivem como) personagens trágicos, num conflito insolúvel entre sua paixão amorosa e a necessidade de preservar a solidão da qual, literalmente, adoram sofrer.
Os primeiros invocam, às vezes, como razão de sua escolha, a "fraqueza" (ou seja, a força) da carne: declaram-se incapazes de resistir às tentações de uma aventura. Na verdade, seu santo protetor é Dom Juan, cujo objeto de cobiça não eram as mulheres, mas os sinais de que sua sedução funcionava: "Uma vez confirmado que a outra me deseja, não preciso levá-la até a cama, já posso inscrevê-la no meu catálogo das conquistas; é isso que importa e me dá prazer". Por causa dessa paixão pelo desejo do outro (e não pelo outro), Jean-Pierre Winter, num bonito livro de psicanálise, "Os Errantes da Carne", faz de Dom Juan um protótipo de histeria masculina.
Os segundos -os que amam, mas não se engajam- não sabem direito qual razão invocar para explicar sua conduta. Genuinamente apaixonados e amados pela parceira, eles continuam sozinhos. Ray Porter é um desses.

Por que ele não faz de Mirabelle sua companheira? Esqueça a diferença de idade, que é a racionalização da qual ele se serve para justificar seu celibato. O que sobra, em contraponto aos encontros prazerosos do casal, são as imagens de uma solidão que é, ao mesmo tempo, sofrida (com uma certa complacência com a dor produzida pela falta do outro) e esplendorosa, cinematográfica e, portanto, desejável. No filme, propositadamente, a solidão de Ray é um clichê: sozinho no seu avião particular, Ray contempla o pôr-do-sol pensando em Mirabelle ou, então, sozinho na beira da piscina de sua casa vazia, Ray olha para as estrelas e, claro, pensa em Mirabelle.

A solidão pode ser um clichê cinematográfico porque a visão de nós mesmos (nós homens) sozinhos é uma grande utopia -uma utopia cultural e subjetiva.

Em 1970, Paul Slater publicou "The Pursuit of Loneliness" (a procura da solidão). Era uma análise impiedosa dos valores da cultura moderna que transformam a solidão em ideal: autonomia, independência, vontade de preservar as potencialidades futuras, liberdade para se transformar em outra pessoa etc.

Era também um panfleto profético, que previa um mundo urbano (o dos anos 80 e 90) de "yuppies" enclausurados em apartamentos desenhados por decoradores, espaços que não tolerariam a intrusão caótica de mais um ser humano.

O livro de Slater continua valendo, mas a psicanálise pode acrescentar algo para explicar o drama dos Ray Porters e a comédia dos dom-juans. Ambos devem sua aparente e solitária "liberdade" a uma extraordinária fidelidade ao primeiríssimo amor de sua vida.

Os dom-juans, tentando seduzir todas as mulheres, reconhecem e proclamam que, de fato, só uma lhes importa, a que nunca estará no seu catálogo, por ela ser irremediavelmente a mulher de um outro: a mãe.

Os Ray Porters escolhem um caminho diferente, mas que leva para o mesmo lugar: "Visto que não posso ter a única que me importa, não terei nenhuma. E aposto que a mãe se enternecerá diante da imagem sublime de minha solidão, que é dolorosa, mas heróica por ser a prova de minha eterna fidelidade".

Sofrer de solidão pode se tornar, assim, mais prazeroso do que trocar carícias, tapas e beijos.

quinta-feira, 16 de março de 2006

"Mentiras Sinceras"

Espero que "Mentiras Sinceras", de Julian Fellowes, continue em cartaz e que os amantes e os amados (casados ou não, heterossexuais ou homossexuais, tanto faz) tenham o tempo de assistir ao filme, em massa.

O título original é "Separate Lies", mentiras separadas, mas gostei da tradução brasileira. "Mentiras Sinceras" evoca o estranho balé de verdade e mentira em todo triângulo amoroso: "Minto quando escondo minha paixão por outro ou por outra? Ou, então, a verdadeira mentira é o casamento que vivo e a insatisfação que escondo?".

Ser sempre sincero não é fácil. No filme, Anne (Emily Watson) tenta ser sincera com o marido, James (Tom Wilkinson), e também com seu próprio desejo. Mas a verdade não é simples: Anne, por exemplo, não sabe bem o que a joga nos braços de William (Rupert Everett), seu amante. Quando explica ao marido o que lhe acontece, ela não invoca o amor ou a paixão; apenas consegue dizer que não sabe renunciar a William porque os encontros com ele são "easy", fáceis: o amante não lhe pede nada ou quase.

Talvez a maioria dos relacionamentos amorosos adoeçam e morram por causa disto: não porque o parceiro deixou crescer uma barriga displicente nem porque a gente estaria cansado da mesmice e a fim de novidades, mas porque, ao vivermos juntos, aos poucos, perdemos a generosidade. E a generosidade é (ou, melhor, deveria ser) o próprio do amor; ela está quase sempre presente, aliás, quando a gente se apaixona. Explico.

O amor que nasce idealiza o amado, mas essa idealização é contemplativa, não é normativa. Ou seja, pedimos, eventualmente, que o amado ou a amada estejam perto de nós, mas não que mudem e ainda menos que renunciem a serem quem eles são.

Claro, enxergamos neles algo que eles podem não ser, mas o encanto amoroso é justamente esse engano: "Seja como você é, pois é assim que descubro em você tudo o que quero, mesmo que talvez você não seja nada disso". Em suma, o amor, inicialmente, é respeitoso. Se você não é bem o que vejo em você, o engano é meu; amar consiste em querer e saber continuar se enganando.
As coisas mudam quando começamos a medir a distância entre o ser amado e o ideal que lhe penduramos nas costas. De repente, o engano nos parece ser uma artimanha do outro; é ele que deveria se emendar para voltar a ser o ideal que inspirava nosso amor.

O encanto do começo se transforma, assim, numa lista inesgotável de pequenas ou grandes exigências. Tudo o que pedimos ao ser amado (que ele ganhe mais, que seja simpático com nossos amigos, que nos acolha com um sorriso, que pare de roncar no nosso ouvido, que leia Goethe em alemão, que não coma com as mãos, que não caminhe na nossa frente na rua, que esteja em casa na hora certa) é apenas um derivativo. O que queremos é a volta do que nós mesmos perdemos: o encanto pelo qual enxergávamos nosso ideal no ser amado. Esse encanto impunha o respeito, ou seja, permitia que deixássemos o amado e a amada serem, simplesmente, eles mesmos.

A trama de "Mentiras Sinceras" é a de sempre quando, num casal, um dos dois se interessa por um terceiro. Anne ama James e James ama Anne. Mas Anne encontra William, que não tem nada de especial, mas é "easy", e ela quer viver esse amor. James sofre. Anne também sofre. Não se sabe bem como a história de Anne e James terminará (minha hipótese é que o casal resistirá).

A história acontece numa sólida burguesia (ou mesmo aristocracia) inglesa, em que a dificuldade do triângulo amoroso não é parasitada por problemas financeiros ("Se nos separarmos, quem ficará com o quê?"). Anne e James não têm filhos e não devem se preocupar com os efeitos de seus atos e sentimentos nas crianças ("Como ficarão? O que pensarão? Quanto anos de análise tudo isso lhes custará?"). O triângulo amoroso, em suma, é reduzido ao essencial.

É também graças a essa redução ao essencial que o filme pode oferecer uma extraordinária lição de amor. Anne é exemplar por ela não saber as razões de seu amor por William e por continuar amando James. James é exemplar porque sofre, mas trabalha com afinco para evitar transformar seu sofrimento em mais uma cobrança ciumenta. Ao contrário, James se serve da ocasião para reinventar sua capacidade de amar Anne com a generosidade e o respeito do amor que nasce, ou seja, sem lhe pedir que ela seja diferente do que ela é.

A lição que James aprende (e nós com ele) é que o amor, quando não é atravessado e deformado pelas piores exigências neuróticas e narcisistas, confere ao amante um dever para com o amado, mas nenhum direito sobre ele.

Jacques Lacan, um grande psicanalista francês, disse mais de uma vez (a primeira foi, talvez, em seu seminário de 56/57) que o maior sinal de amor é (deveria ser?) o dom do que a gente não tem. Algo assim: "Ofereço-lhe o que não tenho e que você não quer e não me pede". Seja qual for nossa interpretação desse aforismo, ele é certamente o oposto da miséria amorosa ordinária, em que amar significa pedir ao outro o que a gente quer. Ou, pior ainda, pedir-lhe aquela "coisa" de que a gente precisa.

quinta-feira, 9 de março de 2006

Os Iks, Kitty Genovese e o Engenho de Dentro

Na coluna da semana passada, comentei uma reportagem de Elvira Lobato sobre o que aconteceu recentemente numa rua do Engenho de Dentro, bairro de classe média da zona norte carioca.
Numa madrugada, os moradores encontraram um carro com dois cadáveres retalhados; uma das cabeças estava exposta em cima do capô. Provavelmente, tratava-se de uma desova "exemplar" do tráfico. Pois bem, foi uma algazarra de zombarias e fotografias (utilidade comprovada dos celulares com câmara digital).

Propus uma primeira reflexão, que resumo brevemente. Num mundo higienista, a subjetividade é definida pelo corpo, visto que, entre os sonhos que dão sentido à vida, prevalece o ideal do bem-estar físico. É ótimo para a saúde, mas a conseqüência é que a morte do outro não é mais um espetáculo propriamente angustiante; o cadáver nos mostra o que já acreditamos: no fundo, somos apenas alguns quilos de carne e ossos.

Não conseguirei responder a todos os leitores que me escreveram, mas, encorajado pelos comentários, proponho mais duas reflexões suscitadas pelo caso do Engenho de Dentro.
Como entender, além da indiferença, o escárnio dos corpos massacrados?

1) Um antropólogo inglês, Colin Turnbull, viveu três anos (de 1964 a 1967) entre os Iks (leia: iiiks), um povo de caçadores-coletores nas montanhas de Uganda. Em princípio, os caçadores-coletores estão sempre em movimento: os homens caçam e as mulheres colhem produtos espontâneos da natureza (raízes, sementes etc.).

Os Iks eram uma sociedade tradicional com costumes de cooperação tanto na caça como na colheita, mas, a partir dos anos 50, as nações africanas começaram a cuidar de suas fronteiras, criaram parques nacionais etc. Conclusão: os Iks foram aprisionados num território limitado e inóspito.

Em "The Mountain People" (o povo da montanha), de 1972, Turnbull narra a catástrofe cultural dos Iks, assolados por fome e miséria. Foram-se solidariedade e cooperação. Os homens pararam de levar suas presas para as mulheres e as crianças se alimentarem: eles comiam sozinhos, na hora. O mesmo valia para as mulheres em sua colheita. A sociedade se desfazia no "cada um por si". Sobreviver era a tarefa imperativa de cada indivíduo, e o infortúnio do outro passou a ser, justamente, divertido: "Melhor ele do que eu".

2) Em 13 de março de 1964, Kitty Genovese, aos 29 anos, foi assassinada numa rua tranqüila de classe média, no bairro de Queens, em Nova York. Voltando do trabalho, de madrugada, ela foi esfaqueada 17 vezes por um estuprador. Seu martírio durou meia hora; repetidamente, o agressor foi embora e voltou para completar sua "obra". Por que essas interrupções? Os gritos de Kitty acordaram os vizinhos, alguns abriram a janela para apostrofar o assassino: "Deixe aquela moça em paz". Mas, entre as 38 testemunhas desse horror, ninguém desceu na rua e ninguém chamou a polícia.

A morte de Kitty teve várias conseqüências. Para começar, foi instituído um número único e simples (911, em Nova York) para contatar a polícia em caso de urgência e mudou o atendimento: nada de "Quem está falando? Seu RG? Seu CPF?", mas, ao contrário, "Senhora, fique calma, estamos a caminho, só me diga exatamente onde você está".

Os psicólogos sociais americanos se dedicaram a entender o acontecido. Poucos meses depois da morte de Kitty, reuniu-se um simpósio sobre a inércia do espectador urbano. Seis anos e muita pesquisa mais tarde, em 1970, Latané e Darley publicaram "The Unresponsive Bystander: Why Doesn't He Help?" (o espectador inerte: por que não ajuda?), que ainda é uma obra de referência.

Latané e Darley constataram alguns funcionamentos instrutivos: a "abdicação da responsabilidade" ("Isso não é comigo, é com as autoridades, com a polícia") e a "difusão da responsabilidade" ("Não preciso chamar a polícia, pois um outro certamente já se encarregou disso"). Esse segundo funcionamento cria um paradoxo curioso: quanto mais numerosos forem os espectadores, tanto menos cada um deles se sentirá compelido a intervir. Da próxima vez que você for esfaqueado, escolha um lugar com uma ou duas testemunhas no máximo.

Poucas semanas depois da morte de Kitty, Stanley Milgram, outro genial psicólogo social, publicou seu comentário na revista "The Nation". No fim do texto, ele observava que talvez a inércia dos espectadores fosse um efeito da divisão urbana. Nos anos 60, para os nova-iorquinos de classe média que foram acordados pelos gritos de Kitty, a rua e a madrugada eram uma outra cidade, se não um outro país. Uma vez fechada a porta de sua casa e até à manhã seguinte, eles consideravam (e constatavam) que o espaço urbano pertencia a um povo que não tinha nada a ver com eles, um povo de drogados, bêbados, miseráveis e criminosos. Quem circulava naquele espaço não fazia parte de sua comunidade.

É o que podem ter pensado os moradores do Engenho de Dentro: "São cadáveres do tráfico, destinados a intimidar drogados que não pagam suas dívidas. Nada a ver com a gente. Podemos festejar, pois são mortos de uma outra tribo, uma tribo inimiga".

quinta-feira, 2 de março de 2006

Apocalipse agora

Na Folha de 20 de fevereiro, uma ótima reportagem de Elvira Lobato me deixou perplexo e enjoado. Clovis Rossi, no dia seguinte, manifestou uma reação parecida.
Eis os fatos relatados.

O Engenho de Dentro é um bairro antigo, de classe média, da zona norte do Rio de Janeiro. Nesse bairro, numa rua tranqüila de casas antigas e calçamento de pedras, foi abandonado um Honda Fit "com uma cabeça sobre o capô, e os corpos de dois jovens negros, retalhados a machadadas, no interior do veículo".

As vítimas eram "moradores da favela Camarista Meier e teriam sido executados pelo Comando Vermelho em razão de dívidas com o tráfico". Até aqui o horror é ordinário: há sociopatas malucos nas fileiras do crime.

Mas Lobato continua: "A reação dos moradores foi tão chocante como as brutais mutilações. Vários moradores buscaram seus celulares para fotografar os corpos, e os mais jovens riram e fizeram troça dos corpos.

Os próprios moradores descreveram a algazarra à reportagem. "Eu gritei: Está nervoso e perdeu a cabeça?", relatou um motoboy que pediu para não ser identificado, enquanto um estudante admitiu ter rido e feito piada ao ver que o coração e os intestinos de uma das vítimas tinham sido retirados e expostos por seus algozes.

"Ri porque é engraçado ver um corpo todo picado", respondeu o estudante ao ser questionado sobre a causa de sua reação."

Conversei com Elvira Lobato. Soube assim qual foi a "piada" do estudante, que, sobriamente, ela não quis relatar; vendo as tripas expostas, o jovem perguntou ao cadáver (peço desculpa aos leitores sensíveis): "O que foi, cagou pelo umbigo?".

Uma moça teve a reação normal: "sentiu náuseas". Mas o que aconteceu com os outros?
Os meios de comunicação modernos nos servem uma dose inédita de corpos aos pedaços, vítimas estraçalhadas de atentados, guerras e catástrofes naturais. Será que a morte dos outros se tornou banal, indiferente à força de aparecer no noticiário? Essa explicação não me satisfaz.

Freud definiu a angústia como "sinal de alerta para o Eu". Ela nos assola quando uma experiência ameaça ou anula as mil razões que inventamos para dar uma significação à nossa existência -por exemplo, quando nos sentimos reduzidos a alguns quilos de matéria sem sentido. A náusea e o vômito (reações habituais diante de um cadáver aberto) tentam expulsar de nós aquele mesmo interior do corpo cuja visão sugere que, no fundo, atrás das histórias, das imagens e das idéias que compõem nossa subjetividade, somos só isto: carne e ossos.

No pronto-socorro de qualquer hospital, o humor sardônico e gozador é o jeito de manter afastada uma angustia que tornaria impraticável a tarefa dos médicos e da enfermagem. É possível que a zombaria do Engenho de Dentro se explique da mesma forma, como uma defesa maníaca contra a presença excessiva do intolerável.

Mas há uma outra hipótese, pela qual a zombaria não seria uma defesa contra o intolerável, mas o sinal de que, para muitos, a morte dos outros cessou de ser angustiante -e isso não por simples efeito de sua transformação em espetáculo cotidiano. A hipótese é esta: num mundo em que a subjetividade fosse cada vez menos definida por valores, sonhos ou ideais e cada vez mais confundida com o corpo, nesse mundo, a visão da carne de decepados e torturados não seria angustiante, pois ela não ameaçaria nossa subjetividade, apenas a apresentaria num arranjo inusitado, "engraçado".

Ora, já faz quase dois séculos que o higienismo de nossa cultura celebra a simples sobrevivência e o bem-estar físico como valores centrais, se não supremos. Claro, se cultuamos o bom funcionamento do corpo, detestamos a idéia de NOSSA morte. Em compensação, podemos ser insensíveis à morte DOS OUTROS; sua carne inerte e atormentada nos lembra apenas o que já "sabemos": a subjetividade se reduz ao corpo, estes quilos de matéria sangrenta são nossa última "verdade".

Mais de 1 milhão de pessoas visitaram, até hoje, "BodyWorlds", a exposição itinerante de Gunther Von Hagens (www.bodyworlds. com), que leva pelo mundo afora cadáveres esfolados e fatiados, no intento de "democratizar a anatomia". Pois é, para que essa "democratização" seja possível sem angústia, é necessário que os esfolados não ameacem nossa subjetividade, ou seja, que a gente possa se conceber e resumir pela anatomia.

Nestes dias, pude folhear o fac-símile de um maravilhoso código iluminado de 1313, "Apocalipse". As torturas dos pecadores são horrendas: corpos esfolados, serrados, martelados, fervidos, cegados. Para o homem da Idade Média, essa carne supliciada era o triunfo do sentido da vida, o juízo final em que se revelava que, justamente, o que contava não era o corpo, eram as intenções e os atos.

Para nós, os cadáveres de Von Hagens, os trucidados do Rio, os corpos ensangüentados das vítimas de guerras e atentados talvez confirmem a tese oposta: somos só isto, corpos. No crepúsculo do sentido da vida, o "apocalipse now" não é angustiante e pode ser cínico e gozador, como no filme de Coppola.


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

A vergonha de ser pobre

Em princípio, a vergonha que sentimos por um ou outro de nossos atos não nos exclui da convivência social. Ao contrário, ela nos convida a resgatar nossa dignidade com novas ações e a voltar para o mundo de cara lavada.

Mas há uma outra vergonha, radical, que pode nos afastar da coletividade, sem retorno: é a vergonha de quem somos, não de algo que fizemos.

Os crimes infamantes, "hediondos", por exemplo, são atos que jogam uma sombra sinistra e quase definitiva sobre o réu. Nossa sociedade parece pedir, nesses casos, uma vergonha radical, que afete não tanto o crime quanto o próprio "ser" do culpado. Um protótipo, imortalizado pelo romance de Nathaniel Hawthorne, "A Letra Escarlate", é a punição da adúltera por uma letra inscrita em seu corpo; outro é o costume islâmico de cortar a mão de quem rouba. Em ambos os casos, a punição é uma marca indelével: a vergonha não é apenas relativa aos atos, ela é um estigma duradouro que identifica e exclui quem errou.

Mas não é preciso procurar tão longe: as dificuldades de qualquer ex-presidiário que queira refazer sua vida mostram que, mesmo na administração ordinária de nossa justiça, uma vergonha radical e excludente pode ser parte da punição.

Acaba de sair em livro de bolso "Hiding from Humanity: Disgust, Shame, and the Law"(escondendo-se da humanidade: desgosto, vergonha e a lei), de Martha Nussbaum, professora de ética da faculdade de direito da Universidade de Chicago (a primeira edição é de 2004). Nussbaum mostra que uma vergonha radical ainda produz exclusão nas sociedades modernas. Há a vergonha dos criminosos que pagaram sua dívida com a sociedade, mas continuam manchados por uma aura de infâmia, assim como há a vergonha dos negros, das minorias sexuais, dos incultos, dos miseráveis, dos gordos ou dos fumantes.

A crítica de Nussbaum (que retoma um clássico da sociologia dos anos 60, "Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada", de Erving Goffman) baseia-se num grande princípio da moral moderna: nossa vida é livremente inventada e reinventada por nossos atos, portanto, nossos atos podem ser punidos e envergonhados, mas nunca deve ser envergonhada e estigmatizada nossa "essência".

Há também uma razão pragmática para criticar a vergonha radical e excludente. James Gilligan, professor de psiquiatria da universidade Harvard, pesquisa os efeitos sociais da vergonha que exclui. Um bom resumo de seu trabalho é o artigo "Shame, Guilt, and Violence" (vergonha, culpa e violência), publicado num número especial sobre vergonha de "Social Research", vol. 70, nº 4, 2003 (www.findarticles.com/p/articles/
mi-m2267/is-4-70/ai-112943739
).

Desde 1975, as pesquisas de Gilligan mostram que a maioria dos atos criminosos encontram sua motivação no sentimento de humilhação. A perda de dignidade ameaça o sujeito com a perspectiva de uma morte mais cruel do que a morte de seu corpo: uma morte simbólica, que torna vergonhosa sua simples existência. Essa vergonha radical evoca o desamparo de um recém-nascido que não fosse acolhido no mundo por amor algum.

Para Gilligan, a miséria, em si, não é nunca causa da violência, mas a coisa muda se ela for acompanhada pela exclusão social: a vergonha de ser excluído fala mais alto do que os freios morais. Qualquer ato é possível na tentativa desesperada de exigir o respeito dos outros: "Se eles percebem que não têm meios não violentos de se tornarem independentes e de tomar conta de si mesmos (habilidades, educação e emprego), a atividade e a agressividade estimuladas pela vergonha podem se manifestar em comportamentos violentos, sádicos e mesmo homicidas".
Conseqüência: um sistema penal humilhante, que desacate a humanidade de seus condenados, só produz neles a necessidade de voltar a impor respeito pela violência de seus atos.

Outra conseqüência: uma coletividade pode conviver em paz apesar de grandes diferenças sociais e econômicas, mas à condição que ela não exclua e envergonhe uma parte de seus membros.

Ora, na semana passada, concluí minha coluna observando o seguinte: uma "elite" insegura, decidida a confirmar sua legitimidade ostentando e esbanjando, transforma a pobreza do povo em motivo de vergonha e exclusão, ou seja, induz o povo a sentir vergonha de sua própria condição.

A conclusão fica com Yuri Lotman, o pai da ciência dos signos, num breve ensaio, "Semiótica dos Conceitos de Vergonha e Medo", que me foi oportunamente lembrado por uma leitora, Ude Baldan (em português, o texto está nos "Ensaios de Semiótica Soviética""). Lotman afirma que é possível organizar uma coletividade ao redor do medo (medo da punição, medo dos invasores, medo da violência etc.), mas seria uma coletividade animalesca: uma sociedade autenticamente humana é organizada pela freio moral garantido pela vergonha.

Pois bem, quando uma "elite" desprovida dessa vergonha exclui e humilha o povo, a coletividade se organiza do jeito que sobra: pelo medo da violência de seus excluídos.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Privilegiados sem-vergonha

Na modernidade , os privilegiados não são príncipes nem condes. Eles devem seu status à sua riqueza e, fato crucial, ao olhar dos outros: "Pertenço à classe A ou B pela minha renda, mas essa não significaria nada se as classes C, D e E não me reconhecessem como privilegiado".

A exigência de reconhecimento torna nossa vida um pouco fútil, mas, em compensação, todos podemos melhorar nossa condição: é só dar duro (ou ter sorte) e exibir nosso sucesso aos outros.
De fato, essa melhor modernidade possível é, com freqüência, um mundo prepotente e vulgar.
Os privilegiados modernos "devem" esbanjar para que os outros reconheçam que eles pertencem ao andar de cima. Além disso, a promessa de que sempre haverá novos privilegiados (ou seja, a mobilidade social) é uma parte imprescindível do pacote.

Ora, acontece que uma "elite" econômica recente é sempre insegura de seu direito de ser elite. Conseqüência: empurrada pelo anseio de mostrar seu novo status ao mundo, a "elite" econômica emergente usa e abusa de seu poder. Por conceber a vida como uma feira de vaidades, ela só conhece uma vergonha: a vergonha de não conseguir impressionar os menos favorecidos.

É difícil que a crítica desse hábito da mente transforme os costumes dos neoprivilegiados. Ao serem criticados, eles entendem as vozes que os reprovam apenas como manifestações de inveja reprimida, ou seja, indiretamente, de reconhecimento de seu status.

Na Folha de quinta passada, Walter Salles escreveu sobre "os idiotas", que sobrevoam de helicóptero em vôo rasante as praias de Ilha Grande. Aposto que, nos olhares indignados de quem acha intolerável sua vulgaridade, eles enxergam a prova de uma inveja que confirmaria sua superioridade. Para eles, a verdadeira vergonha é a de não ter um helicóptero.

Será que a sem-vergonhice dos privilegiados é uma fatalidade moderna?

De fato, não é obrigatório que os privilegiados comprovem seu status pelo esbanjo e pela ostentação. Afinal, por que não desejariam ser reconhecidos por sua generosidade e por sua responsabilidade social? Não é assim que eles se tornariam propriamente uma elite?

Sem dúvida; mas, para isso, seria preciso que os neoprivilegiados mudassem sua visão do mundo. Seria preciso que eles constatassem, ou melhor, sentissem que a experiência humana (inclusive a deles próprios) é mais complexa do que a tarefa de melhorar, comprovar e ostentar status.
Fazer valer a complexidade da experiência humana e nos interessar por ela, essa é uma das funções básicas da cultura, em todas as suas formas. A cultura é, para nós, modernos, o equivalente dos códigos que, nas sociedades tradicionais, ditavam as condutas certas e os motivos de vergonha. À diferença desses códigos, a cultura não é normativa: ela nos dá acesso a um repertório infinito de destinos e nos convida a medir livremente a qualidade de nossos atos num labirinto de histórias complexas como é, de fato, a vida. O problema é que, em geral, a cultura não está entre as prioridades dos neoprivilegiados.

Claro, o tempo ajuda. Nas melhores condições, em duas ou três gerações, os neoprivilegiados podem deixar de se preocupar tanto com a ostentação que comprovaria seu status e descobrir a complexidade do mundo. Eles podem, em suma, produzir uma elite que mereça esse nome.
Também há casos excepcionais, em que os neoprivilegiados não se perdem na tarefa de ostentar suas conquistas. Às vezes, eles carregam consigo uma sólida referência à cultura ancestral de sua origem humilde.

Mas a regra geral continua a mesma: quanto mais rápido o acesso a um status superior e quanto menor o apego à cultura, tanto mais a necessidade de ganhar legitimidade produz privilegiados sem pudor no uso e abuso de seu poder.

O Brasil é um país de alta mobilidade social (veja-se o livro de José Pastore e Nelson do Valle Silva, "Mobilidade Social no Brasil"). E não se pode dizer que o apego à cultura garanta, entre nós, uma rápida transformação dos privilegiados em verdadeira elite. Essas duas condições prometem ondas inesgotáveis de privilegiados sem-vergonha.

A essas condições, acrescente-se o caráter conservador da modernização brasileira. "Elites" inseguras, na procura de uma maneira definitiva de confirmar o privilégio que elas acabam de conquistar, perguntam-se, inquietas: "Se qualquer um pode estar amanhã no meu lugar, que privilégio é o meu?". A solução que elas encontram é um paradoxo: elas se afirmam pela ostentação (como as "elites" modernas), mas procuram meios de garantir a exclusão dos menos favorecidos (como as elites tradicionais). Querem subir na vida fechando a porta atrás de si.
Seu estratagema é duplo. Econômico: consiste em fazer o necessário para que os menos favorecidos permaneçam longe da escada que permitiria sua ascensão social.

Psicológico: trata-se de envergonhar o povo, de transformar sua pobreza em motivo de vergonha.

Para isso, basta que a ostentação e o abuso se tornem costumes da comunidade inteira, de forma que, para todos, a única vergonha que importa seja a de não conseguir impressionar os outros. Nasce assim a vergonha de ser pobre.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Dois tipos de vergonha (moralidade 2)

A última coluna terminou assim: "Como funciona (ou não funciona) a vergonha numa sociedade moderna, como a nossa?". Começo a responder.

Dois tipos de vergonha organizam coletividades diferentes: uma vergonha, digamos, antiga, que vale para as sociedades tradicionais (como o Japão de Ruth Benedict, que mencionei na semana passada) e uma vergonha moderna, que vale para nós.

A vergonha antiga não é apenas uma longínqua realidade histórica ou antropológica. Todos podemos conhecer por experiência, em nossa vida, ambas as vergonhas. Caracterizá-las porque correspondem a sociedades distintas é só uma maneira simples de explicá-las.

A vergonha antiga é dominante nas sociedades tradicionais, em que existem códigos de honra ou normas de conduta para cada grupo e casta da coletividade. O sujeito dessas sociedades é (e se sente) definido pelo grupo ou pela casta aos quais ele pertence: quem desrespeita os códigos não cumpre com os requisitos de sua própria identidade. Ele se envergonha porque seu ato compromete a significação de sua existência, quebra a integridade de seu ser.

Por exemplo, um nobre do século 12, saqueando uma aldeia a caminho de Jerusalém, podia estuprar mocinhas sem sentir vergonha alguma. Por mais que já houvesse, na época, alguém para reprovar seus atos, estuprar mocinhas numa cruzada não era um comportamento que sacudisse os alicerces de sua identidade. No entanto, se ele faltasse à palavra dada, mesmo que ninguém soubesse disso e pudesse reprová-lo, ele, provavelmente, desmoronaria de cima de seu cavalo, traidor de sua casta e de seus ascendentes. Essa seria sua vergonha.

A modernidade acabou com os códigos de honra e as normas de conduta para cada casta, porque suprimiu as castas. Com isso, nasceu, ou melhor, tornou-se dominante um novo tipo de vergonha.

Para explicar a mudança, recorro ao clássico de Norbert Elias, "O Processo Civilizador". Elias mostra que a modernidade transformou os tratados de boas maneiras. Até o século 15 ou 16, os tratados explicavam o que os homens da corte deviam fazer para pertencerem à corte (esse era, aliás, o sentido da "cortesia" -ser cortês significava pertencer à corte). A partir do século 15, os tratados começam a salientar que as boas maneiras não são apenas os hábitos de uma casta de cortesões, elas servem para que os outros olhem para a gente com simpatia.

No passado, alguém não assoprava o nariz na manga do vizinho porque isso não condizia com sua identidade (de cortesão, no caso). Hoje, agimos da mesma forma, mas para que o vizinho nos considere com carinho, visto que poupamos sua manga.

Em outras palavras, os códigos de honra e as normas de conduta são substituídos, na modernidade, pelo olhar e pela consideração dos outros. Quando agimos errado, a vergonha não nasce do receio de perdermos nossa identidade, mas da previsão de que seremos malvistos, reprovados. O drama de quem vai para a lista negra do SPC não é que ele compromete sua identidade de comerciante ou consumidor, mas que ele "suja seu nome na praça".
Trata-se de experiências psicológicas distintas.

A vergonha antiga é o sentimento de uma dívida simbólica que não foi paga: desrespeitamos nossa herança ou as leis de nossa estirpe, casta ou família, traímos o que nos definia. A vergonha moderna é o sentimento de uma perda de amor: os outros não gostarão mais de nós.
A vergonha antiga é a sensação de uma indignidade interna: não estamos à altura de quem somos. A vergonha moderna é externa: o que nos envergonha é a rejeição, o desamparo que nos assolará quando ninguém mais nos amará.

A vergonha antiga se preocupa com nossa identidade, a vergonha moderna se preocupa com nossa reputação.

Cuidado, nenhuma "leviandade" nessa mudança. Nosso lugar na sociedade não é mais decidido pelo berço, não é um destino; por isso mesmo, ele só pode depender da opinião que os outros têm de nós (e, portanto, de nossa capacidade de sermos aceitos e amados por eles).

Conseqüência: na modernidade, as razões de vergonha não correspondem a um código fixo, elas variam ao longo do tempo, seguindo as mudanças dos hábitos e dos costumes, ou seja, da maneira de pensar da coletividade que nos aprova ou reprova.

Um único grande princípio, fixo e inaugural (que tentarei explicar na próxima coluna), afirma-se apesar da variação dos costumes: em matéria de amor, paixões e desejos eróticos, para nós, não há vergonha. Ou melhor, só há uma vergonha possível (parecida, aliás, com a vergonha antiga): a vergonha de não assumir e não viver o desejo da gente.

O maravilhoso filme de Ang Lee em cartaz nestes dias, "O Segredo de Brokeback Mountain", é um exemplo perfeito. Seu sucesso (merecido) prova que, desde o começo dos anos 60 (época dos fatos narrados), os costumes mudaram. Além disso, um "detalhe" chama a atenção: em nenhum momento os protagonistas sentem vergonha por seu amor e desejo homossexuais. Eles se escondem para proteger-se do preconceito local, mas nunca se envergonham. Nisso eles são heróis modernos.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

Culpa e vergonha (Moralidade 1)

Em 2005, as CPIs escancararam atos de corrupção, apropriações indébitas, malversações variadas. A campanha eleitoral deste ano promete uma reprise e uma ampliação do mesmo espetáculo.

Mesmo assim, a impressão de muitos é que tudo isso seja apenas a ponta de um iceberg. É como se estivéssemos convencidos de que uma desonestidade endêmica compromete cada órgão vital do país, se não cada consciência.

Pagamos a dívida com o FMI, conseguimos um superávit primário e, quem sabe, com a inflação controlada e a baixa dos juros, a dívida interna diminua. Mas não há como festejar: o país nos parece sofrer de um déficit mais fundamental, que nenhuma política econômica sarará, um déficit moral.

Durante o século 20, aliás, muitos sociólogos e ensaístas brasileiros se debruçaram sobre esse déficit moral, perguntando-se como ele teria chegado a ser um "costume" nacional. Um costume, segundo a definição proposta por Tocqueville, é um hábito do corpo e do espírito, um hábito compartilhado por uma coletividade; ele dá forma a escolhas e atos de maneira, por assim dizer, espontânea, irrefletida.

É nesse contexto que dedico uma pequena série de colunas (seguidas, mas com possíveis exceções) ao funcionamento de alguns reguladores da moralidade em nossa sociedade.
Num livro famoso, "O Crisântemo e a Espada", de 1946, uma grande antropóloga americana, Ruth Benedict, tentou entender a sociedade japonesa.

Ela chegou a uma conclusão que se tornou clássica: há sociedades em que o comportamento moral é regulado pela vergonha (por exemplo, o Japão) e outras em que ele é regulado pela culpa (por exemplo, as sociedades ocidentais modernas). Em cada tipo de sociedade, ambos os afetos estariam presentes como motivações e deterrentes, mas um deles seria dominante.
Nas sociedades em que predomina a vergonha, o sujeito escolhe agir, se abster ou impor limites à sua ação para não perder a face e para preservar ou resgatar sua honra e sua dignidade. Nas outras, o sujeito age para evitar a culpa ou para expiá-la.

A ação moral concreta é parecida nos dois tipos de culturas. Por exemplo, em ambos, um sujeito moral não rouba, mas, no primeiro caso, ele não rouba para evitar a desonra que espera o ladrão; no segundo, ele não rouba para não se sentir culpado.

A vergonha parece ser um regulador perfeito para as sociedades tradicionais, em que, acima da lei, vigem os códigos de honra, a fidelidade ao legado dos ancestrais, o sentimento de uma missão simbólica da estirpe e da casta -ideais que permitem medir nosso valor e nossa dignidade.
A culpa seria o regulador das sociedades individualistas modernas, cuja origem está na idéia cristã de que o indivíduo deve pouco ou nada a seu passado e aos grupos aos quais ele pertence, mas é contável diante de um Deus que sabe tudo e, em última instância, julgará e punirá ou recompensará.

O Brasil de hoje é, grosso modo (voltarei a essa aproximação), uma sociedade ocidental moderna e fundamentalmente cristã. Na oposição proposta por Benedict, o sentimento que regula nossa ação moral deveria ser sobretudo a culpa.

No entanto, a sabedoria da língua sugere algo diferente: a malandragem "não tem vergonha na cara", "sem-vergonha" é uma fórmula tão corriqueira que se tornou um adjetivo hifenizado, assim como "pouca-vergonha" se tornou um substantivo e o mesmo vale para "cara-de-pau".
Em matéria de moral, nossa língua espera mais da vergonha que da culpa. E, ao estigmatizar a imoralidade, ela deplora mais a falta de vergonha do que a falta de culpa.
Apesar da idéia de Benedict, nossa língua tem razão, sobretudo porque a culpa, de fato, é um péssimo regulador moral.

À primeira vista, que a gente acredite ou não nas penas do inferno, pareceria lógico que evitássemos as ações que (como sabemos sempre de antemão) não nos deixariam dormir tranqüilos. Mas qualquer terapeuta sabe que não é assim: a culpa funciona como uma espécie de pagamento antecipado. Autorizo-me a fazer algo que me parece errado justamente porque sei que me sentirei culpado, e meu sofrimento futuro compra, desde já, o perdão para meu ato.
A Igreja Católica, quando instituiu o arrependimento e a penitência como condições da confissão, inventou um dispositivo extraordinariamente permissivo. Posso pecar quanto eu quiser, pois já me arrependo, sinto-me culpado, sofro e meu sofrimento me remirá.

É a mesma dinâmica que funciona quando pedimos desculpas: numa palavra só, admitimos que nosso ato é errado, prometemos que nos sentiremos culpados, e essa promessa nos garante o perdão. Com isso, podemos furar a fila e passar a perna, à condição de murmurar "desculpe".
A vergonha é um regulador moral muito mais eficaz que a culpa porque meu sofrimento por perder a face não repara minha honra. Enquanto a própria culpa absolve o sujeito culpado, a vergonha mancha, e sentir vergonha não restitui a dignidade de ninguém. A única cura da vergonha está nos atos futuros do sujeito.

Mas como funciona (ou não funciona), então, a vergonha numa sociedade moderna, como a nossa?
Continua.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2006

Para uma São Paulo de sonho

Gilberto Dimenstein acaba de publicar "O Mistério das Bolas de Gude" (Papirus). Ler o livro é uma boa maneira de festejar os 452 anos de São Paulo.

Dimenstein, que é colunista da Folha, é apaixonado pelas cidades. Desta vez, ele nos conta as descobertas feitas em seu incansável passeio pelas ruas, pelos becos e pelas sarjetas de São Paulo e de Nova York, à procura dos sinais de uma vida possível.

Esses sinais são as pequenas histórias de homens e mulheres que transformaram ou estão transformando a "selva urbana" num espaço de convivência. Termina-se a leitura com a sensação de escutar um burburinho de coragem e carinho que pode vencer o ruído convulso do trânsito, dos ódios e das exclusões.

Na segunda-feira, no Masp, para celebrar o livro e o aniversário de São Paulo, participei de uma mesa-redonda: "São Paulo É Melhor do que Parece?". Eis como tentei contribuir ao debate.
Nos anos 50 e 60, eu vivia em Milão. O cinema italiano propunha vários filmes ambientados na cidade. Dois são famosos: "Milagre em Milão", de Vittorio de Sica (1950), e "Rocco e Seus Irmãos", de Luchino Visconti (1960). Ora, quase todos esses filmes apresentavam uma Milão que pouco tinha a ver com o cotidiano da gente, ou seja, dos jovens de classe média.
"Rocco", por exemplo, é um filme maravilhoso, graças ao qual descobríamos a realidade da imigração interna que estava mudando a cara do país. Mas as ruas pelas quais Rocco circulava eram tão exóticas para nós quanto o Japão dos "Sete Samurais".

Nos anos 60, o filme "milanês" que mais me marcou não era muito bom. Não me lembro do título nem da trama. Era uma história de jovens relativamente bem comportados, que se apaixonavam e se desapaixonavam, madrugavam para caçar na bruma do inverno, bebiam café no Corso Vitorio Emanuele e por aí vai. Esse filme anônimo sobrevive na lembrança dos adolescentes milaneses da época porque ele mostrava que o cenário de nossa vida podia ser o pano de fundo de uma ficção. Por um instante, parecia não ser necessário que nossos devaneios acontecessem em Paris ou em Londres. Talvez fosse possível sonhar ali mesmo, onde a gente vivia. Mas foi um filme só.

No seu livro, Dimenstein explica a extraordinária virada de Nova York, que, antes dos anos 90, era uma cidade tão violenta quanto os bairros inseguros de São Paulo. Houve o crescimento econômico, as políticas públicas de segurança e as iniciativas generosas que Dimenstein descreve.

Há um outro fator: mesmo em seus anos tétricos, Nova York nunca parou de ser um cenário de sonho. Nos anos 70, quem freqüentasse um teatro da Broadway devia se aventurar por uma inquietante zona de droga, prostituição e miséria. Mas essa desolação era o palco, por exemplo, de "Perdidos na Noite" (1969): em seus momentos mais sinistros, Nova York era uma matriz de ficção e devaneio. Já naqueles anos, era difícil passear por Manhattan sem esbarrar numa filmagem. E continua assim.

Duas conseqüências: 1) O cenário, de tanto estar presente, torna-se um dos protagonistas e é amado e idealizado como tal (há uma longa lista de filmes e seriados em que Nova York é parte do título); 2) Os espectadores dos filmes e os passeantes que se aglomeram ao redor do set das filmagens, por mais que a vida lhes sirva frustrações, aprendem que na sua cidade é permitido sonhar.

Ora, as cidades que prosperam são aquelas que escolhemos para serem cenário de nossos sonhos. Bonitas ou feias, ricas ou pobres, elas são as cidades de sonho.

O cinema brasileiro, com poucas exceções, segue o modelo de "Rocco". Por exemplo, "O Invasor", de Beto Brant, nos apresenta uma São Paulo que não é o espaço da vida da maioria dos espectadores. Com isso, a periferia pára de ser um universo esquecido e recalcado pela má consciência dos privilegiados. Mas, ao meu ver, o mais relevante é que talvez, graças ao filme, moradores da periferia descubram que seu espaço pode ser cenário de uma ficção: "Aqui também é possível sonhar". Infelizmente, na periferia quase não há cinemas...

A televisão foge do cenário urbano concreto. "Belíssima", de Sílvio de Abreu, a ótima novela do momento, acontece em São Paulo, mas essa é apenas uma declaração abstrata ("Viu a Paulista? Estamos em São Paulo."). Os personagens circulam por casas e apartamentos recontruídos em estúdio. Ninguém conversa num boteco da Vila Madalena, ninguém almoça no restaurante onde estivemos na semana passada, ninguém erra pelo shopping onde fomos no sábado, ninguém passeia pela rua onde fazemos nossas compras.

Há explicações financeiras e logísticas: a Globo produz suas ficções no Rio. No entanto, o Rio das novelas cariocas é um cartão-postal de fundo, bonito, mas tão abstrato quanto a Paulista vista de helicóptero.

Talvez não se trate só de logística e finanças. Talvez se trate de uma falta de amor.
Está na hora de acreditar que é possível inventar e contar histórias na paisagem concreta de nossa vida. Por quê? Porque podemos desrespeitar o espaço em que vivemos, mas sempre respeitamos o cenário de nossos sonhos.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

"A Marcha dos Pingüins" e a origem da moral

Fui assistir à "Marcha dos Pingüins", de Luc Jacquet, em companhia de crianças pequenas. Um compromisso foi necessário: eu me contentei com a versão dublada e as crianças toparam a sessão das dez. Antevia um desastre: elas dormiriam direto e eu não agüentaria a pieguice.

As previsões estavam erradas. As crianças ficaram acordadíssimas e saíram do cinema pensativas, sem pedir nenhum pingüim de pelúcia. Isso porque o filme, justamente, não é nada piegas. Ele é um grande drama.

A vida amorosa e reprodutiva dos pingüins cumpre uma lei férrea e cruel, ano após ano: percursos intermináveis, fome, meses de imobilidade gelada chocando um único ovo e por aí vai.
Nenhuma semelhança conosco: eles sobreviveram obedecendo a uma necessidade absoluta e impiedosa, enquanto a gente sobreviveu graças à variedade plástica de nossa escolhas amorosas e de nossos comportamentos sexuais e reprodutivos.

Pensei nos pingüins que aparecem misteriosamente em nossas praias. O Ibama faz um esforço danado para devolvê-los a seu habitat natural; são levados de volta, de avião, até à Antártida ou à Patagônia. Mas será que alguém lhes pergunta o que eles querem? Há uma séria possibilidade que eles estejam pedindo asilo político na zona sul carioca. Depois de ter visto o filme de Jacquet, eu não hesitaria a lhes reconhecer esse direito.

Apesar da distância entre nossa vida amorosa e a dos pingüins, nos EUA, alguns grupos conservadores propuseram a conduta dos pingüins como protótipo de monogamia e de dedicação à família. Algo assim: "Você se queixa porque os filhos e a família dão trabalho? Você quer mais prazer na sua vida? Você quer abortar? Olhe para os pingüins e arrepende-se". Fato surpreendente, o argumento funciona. Também graças à dramatização que dá voz às "personagens" da história, podemos simpatizar com os pingüins a ponto de considerá-los como semelhantes que, no caso, seriam mais morais que a gente.

Na história da cultura, aconteceu com freqüência que alguém apontasse nos animais qualidades exemplares para nós.

O filósofo David Hume, num apêndice de sua "Investigação Sobre os Princípios da Moral" (1751), ao querer mostrar que nossos sentimentos morais são, de uma certa forma, "naturais", invoca como exemplo a "benevolência" dos animais (de fato, os animais "benevolentes" existem mais nas fábulas do que na realidade, mas não é isso que importa). O que Hume chama "benevolência" é a capacidade de sentir simpatia pelos semelhantes. Para quase todos os filósofos britânicos do século 17 e 18, essa capacidade é o fundamento da moralidade: afinal, se soubermos nos colocar no lugar dos outros, nosso comportamento terá uma boa chance de ser moralmente aceitável.

Naquela época, ingleses e escoceses debateram como nunca sobre a origem dos sentimentos morais. Havia quem pensasse que eles fossem aprendidos, derivados da experiência (John Locke); havia os que pensavam que fossem colocados por Deus no nosso âmago desde o nascimento (Shaftesbury) e havia os que, como Hume e Adam Smith, ficavam sabiamente em cima do muro. Para todos, o núcleo da moral era a capacidade de simpatizar com o outro e, portanto, de querer seu bem. A questão discutida era: "De onde vem essa simpatia que nos torna morais?".

A psicologia pode contribuir (tardiamente) a esse debate.

Existe um transtorno grave, chamado transitivismo, no qual o sujeito perde a noção de seus limites e de sua individualidade e se confunde com os outros ou mesmo com objetos inanimados ao seu redor. O transitivismo, na medida certa, é também uma disposição crucial na constituição da subjetividade normal.

Por exemplo, mães e pais conhecem um estranho fenômeno que acontece nos primeiros anos de vida de qualquer criança: na brincadeira, eis que um amiguinho se machuca e a criança que assiste à cena começa a chorar como se a vítima fosse ela. Os adultos perguntam por quê e a criança aponta, em seu corpo, o lugar em que o outro se feriu.


Não se trata de uma compaixão generosa que seria congênita nas crianças. Acontece que o sujeito humano se constrói à força de identificações com os outros. Nos primeiros anos de vida, a capacidade de me colocar no lugar do semelhante me ajuda a responder à pergunta "Quem eu poderia vir a ser?". Mais tarde, a experiência dos outros continua nos enriquecendo tanto quanto a nossa, pois levamos conosco, dentro de nós, os semelhantes que encontramos ao longo da vida.

Talvez seja esse transitivismo, básico e normal, que esteja na origem da simpatia que funda nossa moralidade. Ele nos é tão necessário que não paramos de estender o campo dos semelhantes com os quais possamos nos identificar. Inventamos e cultivamos ficções para viver a experiência não só dos outros reais, mas também de um exército de personagens imaginárias.

Na mesma linha, descobrimos a fidelidade nos cachorros, a laboriosidade nas formigas, a tranqüilidade nas montanhas e, depois do filme de Jacquet, a abnegação nos pingüins.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

"O Céu de Suely"

"Céu" não conta uma tragédia da miséria; é "apenas" um filme sobre a dificuldade de viver

ESTREOU NA sexta passada "O Céu de Suely", de Karim Aïnouz (o diretor de "Madame Satã").
É a história de Hermila, uma jovem que, junto do namorado Mateus, deixou sua Iguatu natal, no Ceará, para tentar a vida em São Paulo. Dois anos mais tarde, eles decidem voltar. Hermila (a notável e homônima Hermila Guedes) chega a Iguatu com um filho nos braços e espera a reunião iminente com Mateus, que ficou em São Paulo por mais um tempo. Mas Mateus não comparece. Hermila quer ir embora de novo (e não atrás do namorado).

Para arrumar o dinheiro necessário, ela organiza uma rifa; o prêmio é uma noite no Paraíso com ela (que, para a rifa, mudou de nome: agora é Suely).

O filme é imperdível, porque é absolutamente "justo": raramente uma história me foi contada de uma maneira e num tom tão convincentes e tão próximos da vida.

Não sabemos bem por que Hermila e Mateus emigraram. Não foi fugindo da miséria. Talvez seja impossível viver em Iguatu (ou onde quer que seja, aliás) sem querer, um dia, colocar o pé na estrada.

Não sabemos bem por que eles quiseram voltar, mas um cartaz na saída da cidade anuncia: "Aqui começa a saudade de Iguatu". É verdade que uma inexplicável vontade de voltar sempre espreita, inevitavelmente, quem deixou o lugar que lhe foi atribuído pelo destino.

Por que Hermila não decidiria ficar em Iguatu? Afinal, lá ela tem amigas, a avó que cuida do netinho e até um novo namoro. Aviso: quem foi embora uma vez nunca mais pára de oscilar entre a saudade e a tentação da viagem.

Quando Hermila decide se rifar, pouco ou nada nos é dito sobre seu conflito interior; só seus sorrisos forçados falam da tênue fronteira entre o prazer de seduzir e o asco de se oferecer.
A força do filme está nesse pudor, graças ao qual os personagens se tornam curiosamente familiares, próximos da gente. Pois não há desesperos, tangos ou tragédias que transformem suas gestas num espetáculo ou numa farsa. Conhecia a sinopse de "O Céu de Suely" há tempos, pela imprensa.

Antes de assistir ao filme de Aïnouz, quis rever um antecedente italiano dos anos 70, em que é contada a história de uma mulher (Sofia Loren) que se rifa. Trata-se de um filme em episódios, "Boccaccio 70", e o episódio em questão, "A Rifa", é dirigido por Vittorio de Sica com roteiro de Cesare Zavattini. Os nomes de De Sica e Zavattini são associados ao período mágico do neo-realismo do cinema italiano (De Sica assinou obras-primas: "Ladrões de Bicicletas" e, justamente com roteiro de Zavattini, "Umberto D"). Ora, o glorioso neo-realismo italiano dos anos 50 pariu, nos anos 70, uma proliferação de chanchadas, em que, digamos assim, o que sobrava de "realismo" era uma transformação grotesca e cínica da vida. Ou seja, a prova de que a realidade estava na tela consistia na vulgaridade risível das histórias e dos personagens.

Esse declínio cultural tem suas explicações: o neo-realismo italiano dos anos 50 foi a obra de uma geração para quem o pós-guerra era brutal, miserável, mas animado por uma esperança que encorajava a levar o mundo a sério. Depois da decepção do "milagre italiano" dos anos 60 (que viu o triunfo de uma "elite" sinistra e gananciosa), aparentemente, só dava para zombar.

Era assim: o cinema americano nos mostrava os heróis (da história ou do cotidiano, tanto faz), e a nós, que tínhamos perdido a chance de sermos heróis, sobrava sermos palhaços. Uma parte do público achava engraçado, ria ao se ver nesse espelho deformante. Outros (eu entre eles) achavam desesperador e ficavam, como Hermila, com vontade de ir embora.

Faça a experiência: compare os compradores dos bilhetes da rifa no filme de Aïnouz e no de De Sica. Os compradores de "O Céu de Suely" são complexos, divididos, seu desejo é contaminado pela vergonha e pelo mal-estar; alguns se indignam com a proposta. Os compradores de De Sica são estereótipos de idiotice, uma massa de farsantes.

Teria sido fácil cair na mesma armadilha e apresentar os compradores da rifa de Suely como caretas tragicômicas, como um bando de peões bêbados, desdentados e assanhados (alguma lembrança do cinema brasileiro do passado?). Mas o filme de Aïnouz não é uma tragicomédia da miséria, não conta um fato grotesco do subdesenvolvimento. É "apenas" um filme tocante sobre a dificuldade de viver.

O aborto dos outros

No suplemento ao volume 12 (novembro 2004) de "Reproductive Health Matters" (questões de saúde reprodutiva, www.rhmjournal.org.uk), foi publicada uma pesquisa sobre a reação dos ginecologistas-obstetras brasileiros à gravidez não desejada. Os autores são Aníbal Faúndes (Cemicamp e Unicamp), Graciana Alves Duarte (Cemicamp), Jorge Andalaít Neto (Febrasgo) e Maria Helena de Sousa (Cemicamp). O Cemicamp é o Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas e a Febrasgo é a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia.

Em 2003, um questionário foi distribuído aos 14.320 ginecologista
s-obstetras da Febrasgo. Desses, 4.270 responderam: uma amostragem significativa.

Depois de registrar a idade, a situação familiar, as opiniões sobre o aborto e a relevância da fé religiosa do médico entrevistado, o questionário perguntava qual seria sua reação diante de uma paciente que não quisesse continuar sua gravidez por razões outras das que a lei brasileira permite (estupro e risco de vida para a mãe). A alternativa era ajudar (praticar o aborto, encaminhar para um colega que praticaria, explicar o uso do abortivo Cytotec) ou recusar a ajuda. Eram propostas duas situações: com uma paciente "qualquer" e com uma parente.

Enfim, o questionário perguntava ao médico: "Se você é mulher, já teve uma gravidez absolutamente não desejada e sentiu que um aborto era necessário? O que você fez?". Ou, então: "Se você é homem, aconteceu que sua parceira tivesse uma gravidez absolutamente não desejada e sentisse que um aborto era necessário? O que ela fez?".

A pesquisa constatou que a conduta do médico depende de suas opiniões sobre a prática do aborto, e pouco importa que a paciente seja ou não membro da família do profissional. Agora, quando a gravidez não desejada é a da própria médica ou da parceira do médico, a coisa muda.

Só uma pequena percentagem dos entrevistados tinha vivido pessoalmente uma situação em que um aborto parecesse necessário. Mas, nesse grupo reduzido, 70% dos que se declaravam contra o aborto por razões de consciência escolheram interromper a gravidez.

Os autores comentam: "A atitude dos médicos muda quando o dilema de uma gravidez não desejada os afeta diretamente". "Mesmo que fossem fortemente opostos ao aborto, provavelmente eles entenderam sua situação como "excepcional" (...) O que talvez eles não percebam é que, para cada mulher que passa por um aborto, as circunstâncias são excepcionais".

Claro, o "rigor" moral é facilmente praticável quando ele se aplica aos outros e não à gente. Mas não quero estigmatizar a "hipocrisia" de quem é "contra" o aborto e abre uma exceção quando o problema surge em casa. Com os autores da pesquisa, considero que qualquer situação de vida é "excepcional", inclusive a do médico que abre uma exceção só para si ou para sua parceira.
Essa disposição a conceber o indivíduo como "exceção" é hoje facilmente criticada por ser "permissiva" ou imoral: se cada caso é um caso, regras e preceitos valem pouco ou nada, não é? Pode ser, mas o pensamento moral de quem lida com casos, todos únicos, é sempre mais complexo e profundo do que o pensamento de quem lida com princípios.

Acho estranho, aliás, que a unicidade da experiência humana seja freqüentemente invocada apenas como uma atenuante ("Desculpe-me, pois minha história é diferente") e não promovida como um valor: a grandeza da inquietude moral moderna consiste justamente na capacidade de reconhecer que pode haver regras, mas, antes disso, há, sobretudo, casos.

Acho estranho, mas não deveria, pois esse é só um exemplo de uma mudança que é urgente entender. Voltemos ao aborto: até 20 anos atrás, o debate opunha dois ideários. Os que eram contra invocavam sua fé religiosa, a vida como valor absoluto, a necessidade de manter (pelo peso das conseqüências) a "seriedade" das relações sexuais, a existência de uma alma subjetiva desde a concepção. Os que eram a favor promoviam o direito de as mulheres disporem de seu corpo, o direito de cada criança ser desejada ou aceita no mundo (pela racionalidade do planejamento familiar), o direito ao prazer dos corpos sem a intenção reprodutora. Enfrentavam-se sistemas de valores opostos, mas ambos positivos, afirmativos.

Ora, nos últimos anos, os "progressistas" parecem ter perdido a confiança em seu próprio ideário. Talvez por ressaca do sonho socialista (mas essa explicação começa a cansar), os ideais libertários nascidos nos anos 60 e 70 não são mais vividos e promovidos como um conjunto de valores positivos, capazes de dar forma a uma sociedade.

O debate mudou de cara: aparentemente, os valores tradicionais enfrentam não valores opostos, mas só sua própria crise. Ou seja, o debate entre morais diferentes se transformou em debate entre a moralidade tradicional e seus fracassos.

Talvez a dita pós-modernidade seja isto: um desânimo dos valores libertários, que não conseguem mais se apresentar como valores. Com isso, cada vez mais, os valores tradicionais encontram apenas, como oposição, uma espécie de hedonismo envergonhado.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

"Apenas um Beijo"

Está em cartaz "Apenas um Beijo", de Ken Loach.

Resumo: na Escócia, Casim, um DJ de origem paquistanesa, apaixona-se por uma professora católica, ms. Hanlon, e desafia as tradições de sua família imigrante e muçulmana.
O filme é a obra mais certeira e honesta que eu conheça sobre o conflito dominante de nossa época.

Vistos das Américas, os carros que os jovens de origem árabe continuam queimando nas periferias de Paris (425 nesta passagem de ano) podem parecer fogueiras exóticas. Deste lado do Atlântico, por mais que sejamos "subdesenvolvidos", somos irremediavelmente modernos: as esperanças (sociais e econômicas) nos definem mais do que nossa ascendência. O imigrante americano sacrificou raízes e tradições em troca do sonho (frustrado ou não) de uma vida, como se diz, mais digna.

Claro, é sempre tentador opor o "cinismo" dos sonhos americanos (status e dinheiro) à riqueza e ao calor das comunidades tradicionais. Mas o filme de Loach nos lembra que a modernidade não é só um sonho de consumo; a modernidade é, antes de mais nada, uma história de amor: a paixão amorosa entre diferentes, distantes e estranhos é o protótipo da livre escolha dos sujeitos contra as exigências de seu próprio passado.

No filme, ms. Hanlon deve responder à pergunta: "Você vai sacrificar a continuidade da tradição e a incondicionalidade dos afetos familiares por uma paixão que pode acabar amanhã?". Ela não mente, não promete amor eterno, mas tampouco desiste.

A modernidade é isto: um pulo no escuro, sem garantias.

Os pais de Casim foram para a Europa atrás da liberdade de culto, depois da dolorosa separação religiosa de Índia e Paquistão. "Detalhe" imprevisto, o que eles procuravam e encontraram tem um preço: uma divisão psíquica (que brota em seus rebentos) entre as tradições da comunidade e a liberdade subjetiva moderna. O "viva e deixe viver", cujos benefícios eles desejaram e conseguiram, vinga na cabeça de seus filhos.

"Se queriam que fôssemos iguais a vocês, por que vieram fazer seus filhos aqui?" A pergunta é colocada aos pais pela irmã menor de Casim, exasperada pelo conflito que ela vive entre o amor filial e a modernidade que a contamina.

Para a segunda geração, a tragédia é a regra: Casim poderia amar ms. Hanlon na dor e na culpa de quem desobedece ao seu passado ou, então, ele poderia queimar carros e jogar bombas, fomentando seu ódio pela liberdade que o tenta.

Por que esse conflito estoura agora? Por que ele não explodiu antes? É que estamos vivendo, desde os anos 60, a última revolução moderna. A luta entre a liberdade de inventar a vida e as dívidas do passado é tão difícil que criamos uma arte (ou ciência, que seja), a psicanálise, só para isto: para aprender a lidar com os restos do passado.

Nos anos 70, no posfácio de "O Zen e a Arte da Manutenção da Motocicleta", Robert Pirsig ainda escrevia: "Não sei que tipo de futuro se prepara atrás da gente, mas o passado, desdobrado na nossa frente, domina tudo o que podemos enxergar".

Na noite de domingo, depois de assistir ao filme de Loach, tive um sonho engraçado, cujo conteúdo manifesto me ajudou a escrever esta coluna.

Estava sentado numa mesinha de bar com Demétrio Magnoli, que é também colunista da Folha, às quintas-feiras, na página dois. Eu tentava explicar ao Demétrio que o conflito de culturas que assola nossos tempos não é econômico, tampouco é entre Oriente e Ocidente, mas é o mesmo desde o século 13, entre a aventura arriscada da liberdade e o conforto opressivo das tradições.
Como num filme, a câmara recuava e revelava que estávamos em cima de um promontório rochoso que dominava uma planície onde começava uma grande batalha, no estilo do enfrentamento final nas "Crônicas de Nárnia" ou no "Senhor dos Anéis".

À nossa direita, avançava um vasto exército de cavaleiros armados. Havia imames, mas também papas, cardeais e figuras de aspecto mais laico: o presidente do Irã e pastores evangélicos.
À nossa esquerda, no começo, não havia ninguém. Logo aparecia um velho barbudo, que caminhava se apoiando num bastão de peregrino: era Walt Whitman; atrás dele, vinha um homem mais jovem, que era Henry David Thoreau. No sonho, pensei que ele estava lá por seu elogio da "Desobediência Civil".

Comecei a me preocupar, pois me parecia um exército curiosamente rarefeito. Logo, precedido do barulho redondo do motor, numa nuvem de poeira, apareceu o enorme Hudson 49 de "On The Road", com Kerouac no volante e Neal Cassidy do seu lado. Já me senti melhor. Enfim, ultrapassando a todos, surgiu a motocicleta de Robert Pirsig, com o filho, Chris, adolescente, na garupa.

Aí senti uma estranha certeza de que esse exército de Brancaleone, sem armas, apenas louco de paixão pelo pé na estrada, pela aventura da vida e pela vontade de contá-la, ganharia o dia. Acordei de bom humor, pensando, meio adormecido, que, se os outros entoassem hinos e encantações, certamente a banda do submarino amarelo tocaria para nós.

Cuidado, o filme de Loach pode sair de programação rapidamente.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

O fim do ano e o medo de perder

O ano acaba. A mudança de data traz consigo uma esperança de renovação: é um momento em que pensamos em nossos projetos -para o ano que vem e também em geral, para o futuro, a longo prazo.

É engraçado. Muitas vezes, acho que o futuro nos preocupa demais, a ponto de nos impedir de saborear o presente. Mas, por outro lado (e paradoxalmente), parece-me que nossos projetos são quase sempre modestos, inibidos, sem ousadia, como se não nos permitíssemos sonhar e correr atrás de nossos sonhos.

Os adolescentes, por exemplo, são constantemente convidados a sacrificar seu presente e a preparar-se para as exigências do futuro ("não saia, pare de vagabundear e sente-se para estudar"). Ao mesmo tempo, na maioria dos casos, o futuro com o qual eles sonham (e que deveria funcionar como seu pensamento dominante) é curiosamente razoável, "sossegado", mas mediano, se não medíocre.

Claro, os pais adotam, de fato, em relação aos filhos, uma espécie de moral estóica: quem desejar menos não será, talvez, mais feliz, mas será sem dúvida menos infeliz em caso de fracasso e de frustração. Queremos tanto o bem de nossos rebentos que acabamos cortando suas asas: "sonha bem quem sonha pouco".

Mas essa explicação não basta: não só os jovens parecem sonhar à surdina. A gente também. Por que será que, quando sonhamos e projetamos o futuro, somos facilmente medrosos?

Em 2002, surpreendentemente, um psicólogo ganhou o prêmio Nobel de Economia: Daniel Kahneman. Todos os seus trabalhos (muitos dos quais escritos com Amos Tversky, que morreu em 1996 e, portanto, não pôde ser premiado junto com seu colega) questionam um pressuposto da teoria econômica (hoje quase defunto), segundo o qual o sujeito da economia (ou seja, nós, quando tomamos decisões econômicas) seguiria princípios racionais, escolhendo o que é mais útil e mais proveitoso.

A teoria que tornou Kahneman e Tversky famosos se chama "Prospect Theory", teoria do prospecto, ou seja, teoria de como a gente avalia as expectativas futuras, no momento de decidir. Eles escreveram dois textos cruciais sobre o assunto, um em 1979 e outro em 1992 (disponíveis ambos on-line no endereço http://prospect-theory.behaviouralfinance.net/).

A "Prospect Theory"" mostra o seguinte: na hora de correr um risco ou de evitá-lo, nossa decisão não é guiada apenas pela consideração das chances efetivas de sucesso ou fracasso, mas outros fatores menos "racionais" (em particular, o medo de perder) tornam-se determinantes.

Escolho uma das experiências realizadas por Kahneman. Note-se que o valor em jogo (digamos, R$ 1.000) corresponde a um terço da renda média do grupo social de onde vêm os entrevistados (as experiências foram realizadas na Suécia e repetidas e confirmadas nos EUA). No começo da experiência, supõe-se que o sujeito tenha recebido, de presente, um dinheiro; dessa forma, as perdas eventuais não mudariam perigosamente sua condição financeira.

Então, você já recebeu R$ 1.000. Agora, você deve escolher entre A) receber R$ 500 certos e B) correr um risco pelo qual há 50% de chances de você ganhar R$ 1.000 e 50% de chances de você não ganhar nada. A grande maioria dos entrevistados (84%) escolhe ficar com os 500 certos e evita o risco de não ganhar nada na esperança de ganhar mais.

Situação inversa. Você recebeu, de presente, R$ 2.000. Agora, você deve escolher entre A) perder 500 inevitavelmente e B) correr um risco pelo qual há 50% de chances de você perder R$ 1.000 e 50% de chances de você não perder nada e ficar com todos os seus 2.000. Aqui uma boa maioria dos entrevistados (69%) prefere correr o risco de perder mais, na esperança, obviamente, de não perder nada. Só 31% optam pela perda inevitável de R$ 500.

Conclusão: quando se trata de ganhar, nossa aversão ao risco é muito maior do que quando se trata de perder. Em outras palavras, não é para ganhar, mas para não perder que estamos dispostos a mais sacrifícios. Para não perder, estamos até prontos a correr o risco de perder mais ainda.

De fato, muitos jogadores conseguem deixar a mesa quando estão ganhando, contentando-se com o dinheiro que levarão para casa, mas são poucos os jogadores que conseguem parar de jogar quando estão perdendo. Em regra, o jogador não se resigna às perdas e segue apostando e acreditando numa mudança da sorte, até esgotar sua conta e seu crédito. Outro exemplo é o do investidor que se agarra a ações que declinam ruinosamente e prefere esperar um milagre a vender e limitar seu desastre.

Ora, a descoberta de Kahneman e Tversky se aplica fora do âmbito estreitamente econômico: na hora de arriscar, o que fala mais alto é o medo de perder. Quando limitamos medrosamente nossos sonhos, o que vale não é tanto a vontade de torná-los mais razoáveis e realizáveis, mas o medo de abandonar o conforto resignado do status quo.

Os psicanalistas dizem a mesma coisa, em termos apenas diferentes: não há desejo sem perdas, e quem não aceita perder se impede de desejar.

Enfim, meus votos para todos: um Ano Novo sem medo de perder.