quinta-feira, 2 de março de 2006

Apocalipse agora

Na Folha de 20 de fevereiro, uma ótima reportagem de Elvira Lobato me deixou perplexo e enjoado. Clovis Rossi, no dia seguinte, manifestou uma reação parecida.
Eis os fatos relatados.

O Engenho de Dentro é um bairro antigo, de classe média, da zona norte do Rio de Janeiro. Nesse bairro, numa rua tranqüila de casas antigas e calçamento de pedras, foi abandonado um Honda Fit "com uma cabeça sobre o capô, e os corpos de dois jovens negros, retalhados a machadadas, no interior do veículo".

As vítimas eram "moradores da favela Camarista Meier e teriam sido executados pelo Comando Vermelho em razão de dívidas com o tráfico". Até aqui o horror é ordinário: há sociopatas malucos nas fileiras do crime.

Mas Lobato continua: "A reação dos moradores foi tão chocante como as brutais mutilações. Vários moradores buscaram seus celulares para fotografar os corpos, e os mais jovens riram e fizeram troça dos corpos.

Os próprios moradores descreveram a algazarra à reportagem. "Eu gritei: Está nervoso e perdeu a cabeça?", relatou um motoboy que pediu para não ser identificado, enquanto um estudante admitiu ter rido e feito piada ao ver que o coração e os intestinos de uma das vítimas tinham sido retirados e expostos por seus algozes.

"Ri porque é engraçado ver um corpo todo picado", respondeu o estudante ao ser questionado sobre a causa de sua reação."

Conversei com Elvira Lobato. Soube assim qual foi a "piada" do estudante, que, sobriamente, ela não quis relatar; vendo as tripas expostas, o jovem perguntou ao cadáver (peço desculpa aos leitores sensíveis): "O que foi, cagou pelo umbigo?".

Uma moça teve a reação normal: "sentiu náuseas". Mas o que aconteceu com os outros?
Os meios de comunicação modernos nos servem uma dose inédita de corpos aos pedaços, vítimas estraçalhadas de atentados, guerras e catástrofes naturais. Será que a morte dos outros se tornou banal, indiferente à força de aparecer no noticiário? Essa explicação não me satisfaz.

Freud definiu a angústia como "sinal de alerta para o Eu". Ela nos assola quando uma experiência ameaça ou anula as mil razões que inventamos para dar uma significação à nossa existência -por exemplo, quando nos sentimos reduzidos a alguns quilos de matéria sem sentido. A náusea e o vômito (reações habituais diante de um cadáver aberto) tentam expulsar de nós aquele mesmo interior do corpo cuja visão sugere que, no fundo, atrás das histórias, das imagens e das idéias que compõem nossa subjetividade, somos só isto: carne e ossos.

No pronto-socorro de qualquer hospital, o humor sardônico e gozador é o jeito de manter afastada uma angustia que tornaria impraticável a tarefa dos médicos e da enfermagem. É possível que a zombaria do Engenho de Dentro se explique da mesma forma, como uma defesa maníaca contra a presença excessiva do intolerável.

Mas há uma outra hipótese, pela qual a zombaria não seria uma defesa contra o intolerável, mas o sinal de que, para muitos, a morte dos outros cessou de ser angustiante -e isso não por simples efeito de sua transformação em espetáculo cotidiano. A hipótese é esta: num mundo em que a subjetividade fosse cada vez menos definida por valores, sonhos ou ideais e cada vez mais confundida com o corpo, nesse mundo, a visão da carne de decepados e torturados não seria angustiante, pois ela não ameaçaria nossa subjetividade, apenas a apresentaria num arranjo inusitado, "engraçado".

Ora, já faz quase dois séculos que o higienismo de nossa cultura celebra a simples sobrevivência e o bem-estar físico como valores centrais, se não supremos. Claro, se cultuamos o bom funcionamento do corpo, detestamos a idéia de NOSSA morte. Em compensação, podemos ser insensíveis à morte DOS OUTROS; sua carne inerte e atormentada nos lembra apenas o que já "sabemos": a subjetividade se reduz ao corpo, estes quilos de matéria sangrenta são nossa última "verdade".

Mais de 1 milhão de pessoas visitaram, até hoje, "BodyWorlds", a exposição itinerante de Gunther Von Hagens (www.bodyworlds. com), que leva pelo mundo afora cadáveres esfolados e fatiados, no intento de "democratizar a anatomia". Pois é, para que essa "democratização" seja possível sem angústia, é necessário que os esfolados não ameacem nossa subjetividade, ou seja, que a gente possa se conceber e resumir pela anatomia.

Nestes dias, pude folhear o fac-símile de um maravilhoso código iluminado de 1313, "Apocalipse". As torturas dos pecadores são horrendas: corpos esfolados, serrados, martelados, fervidos, cegados. Para o homem da Idade Média, essa carne supliciada era o triunfo do sentido da vida, o juízo final em que se revelava que, justamente, o que contava não era o corpo, eram as intenções e os atos.

Para nós, os cadáveres de Von Hagens, os trucidados do Rio, os corpos ensangüentados das vítimas de guerras e atentados talvez confirmem a tese oposta: somos só isto, corpos. No crepúsculo do sentido da vida, o "apocalipse now" não é angustiante e pode ser cínico e gozador, como no filme de Coppola.


Nenhum comentário:

Postar um comentário