quinta-feira, 27 de abril de 2006

"Estrela Solitária": fuga para o passado

Nos anos 70, na França, descobri um estranho fenômeno: a cada ano, cidadãos adultos, em número significativo, mas incerto (na casa dos milhares), sumiam, simplesmente.

Alguns, ao sumirem, cometiam um crime: paravam de pagar dívidas, abandonavam crianças etc. Esses eram contabilizados e procurados ativamente. No entanto, a maioria deixava apenas seus amigos, parentes e conhecidos um pouco (ou muito) preocupados. A polícia, uma vez avisada, registrava a ocorrência, mas não sabia bem o que fazer. Na ausência de um delito, investigar o quê? Mesmo se uma investigação tivesse êxito, por que a polícia comunicaria a quem que fosse o novo paradeiro do "desaparecido"?
A lei nos dá o direito de sumir, sem dever explicações para ninguém. E, de fato, pelo mundo afora (não só na França, é óbvio), há pessoas que, um belo dia, vão embora.

A idéia já me passou pela cabeça. Aliás, ela me tenta a cada vez (e foram muitas vezes, nos últimos anos) em que empacoto ou desempacoto a incrível quantidade de trastes que levo comigo nas mudanças, objetos de "valor afetivo", papéis misteriosos guardados porque "nunca se sabe", fotografias, cartas: o amontoado de contratos puramente simbólicos que me ligam (de uma maneira mais ou menos tolerável) ao meu passado e aos outros.

Essa tentação de sumir pelo vasto mundo me parece expressar a vontade de nascer de novo e, se possível, desta vez, debaixo de um repolho -sem dever nada a ninguém.

Pois é, se essa idéia passou alguma vez por sua cabeça, não perca, sob nenhum pretexto, o novo filme de Wim Wenders, "Estrela Solitária", que estreou na sexta-feira passada. E, se a dita idéia nunca lhe ocorreu, também não perca: no mínimo, o filme (que é uma obra-prima) será de grande ajuda para entender quem é o seu vizinho (às vezes, mais vizinho do que você imagina) que pensa em fugir da vida que ele tem.
Como disse, eu entendia a tentação da fuga como uma vontade de zerar as contas e de recomeçar. Em suma, achava que eu quisesse fugir para o futuro.

Mas o filme de Wenders propõe um caso diferente ou, então, uma interpretação diferente, que poderia valer para todos os fugitivos, ou para sua maioria (inclusive para mim). Por mais que a fuga manifeste uma vontade de recomeçar, sua direção não é necessariamente o futuro; pode ser o passado. Foge-se não só do peso das obrigações acumuladas ao longo da vida, mas também (e talvez sobretudo) de sua insuficiência. Foge-se, por exemplo, na procura daqueles fios que deixamos cair ao longo da estrada e que poderiam ter ligado nossa vida aos outros de uma maneira que valesse a pena.

O protagonista de Wim Wenders (Sam Shepard, que co-assina o roteiro) não corre atrás de uma liberdade perdida. Ao contrário, ele descobre um dia que sua vida foi bem animada e, por isso mesmo, passou sem que ele se desse conta, sem deixar rastos, sem construir laços. E foge para o passado.

Alguém lhe pergunta, num momento crucial do filme: "Do you want to be related?". A frase não pode ser traduzida de maneira sintética, ela não significa apenas "Você quer ser parente de alguém?" (a legenda, no caso, está francamente errada); a pergunta concerne à vontade ou não de estar na malha dos afetos, tristes ou alegres, que organizam uma existência e distribuem as obrigações que esses afetos acarretam. Ou seja, o sentido é: "Quer ou não viver com os outros?".

Logo depois desse momento, o protagonista passa uma noite sentado num sofá que, jogado anteriormente pela janela, está no meio de uma rua. Ele escuta as vozes humildes do cotidiano de quem vive com os outros, as conversas, os gritos, os suspiros ofegantes do amor.

É difícil escolher: podemos viver como heróis de filme de bangue-bangue, entre um adeus cinematográfico ("Não chore, querida, voltarei antes de a neve cair") e uma volta tão cinematográfica quanto o adeus (apareceremos no horizonte, montados num cavalo branco ou numa velha Packard, tanto faz). Ou, então, podemos viver sem cenas triunfais, no murmúrio do dia-a-dia, que nem sempre é engraçado, mas no qual os que estão ao redor de nós podem justificar nossa existência, dar-lhe um sentido que não seja apenas espetacular.
Ou seja, podemos viver para sermos as "estrelas solitárias" do filme de nossa vida ou deixar que os outros nos enredem num emaranhado que será menos glorioso.

Apartes:
1 - Apesar de meu último parágrafo, continuo pensando que o título original, "Don't Come Knocking" (literalmente: não venha bater na minha porta), mereceria uma tradução melhor.

2 - Diante da morna reação de alguns críticos, fico perplexo. Não sei se devo me surpreender com a incapacidade de enxergar a extraordinária qualidade cinematográfica do filme (a luz fria que bate nas ruas de Butte, Montana, parece a extensão dos melhores quadros de Edward Hopper, quando ele pintava o enigma da solidão americana) ou se devo me surpreender com a incapacidade de reconhecer no roteiro uma meditação terna, divertida e profunda sobre um dilema fundamental da subjetividade contemporânea.

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