Meus amigos se queixam: assistir a um filme comigo é uma chatice. É raríssimo que eu saia de um espetáculo disposto a compartilhar críticas alegremente demolidoras.
Minha atitude básica é sempre um preconceito favorável, uma gratidão pelo trabalho de quem escreveu, atuou, dirigiu, montou, editou. Além disso, o esforço para entender e para gostar me parece mais prazeroso e mais "rentável".
Quando era criança, às vezes, um adulto preparava uma "surpresa" (uma mesa posta especialmente para meu aniversário ou uma cestinha de ovos de chocolate para a Páscoa) e me pegava pela mão: "Venha comigo e feche os olhos". Na grande maioria dos casos, não havia surpresa nenhuma; eu já tinha entrevisto os preparativos, alguém chegara em casa no dia anterior com os ovos nos braços. Pior ainda, nada daquilo correspondia ao que eu desejava: a festa de aniversário seria estereotipada e chata, os ovos nunca eram do chocolate de que eu gostava e, de qualquer forma, teria preferido brincar no terreno baldio ao lado de casa.
Podia escolher: dava a mão e fechava os olhos ou, numa declaração de independência, manifestava que eu era grande demais para aquela surpresa "idiota".
Pode ser que desse a mão por preguiça e submissão. Mas acho que me deixava levar porque era mais divertido e instrutivo. Descobria assim o que os adultos imaginavam que fosse a felicidade de uma criança, aprimorava meu entendimento do que eles queriam comigo. Ter acesso ao desejo dos adultos me interessava mais do que me proclamar experto, recusando-me a cair em suas encenações.
Com livros, filmes, peças de teatro, acontecia a mesma coisa. No mínimo, deixando-me seduzir, tentando gostar, descobria (ou imaginava descobrir) para onde o autor queria me levar.
Mais tarde, duas idéias confirmaram essa disposição. Estudando filosofia (kantiana), aprendi que criticar não significa apenas aprovar ou reprovar, mas sobretudo entender como uma obra se tornou possível e, para seu autor, necessária. Estudando psicanálise, adotei uma idéia de Lacan: quem mais se engana é quem emprega sua energia para evitar ser enganado.
Quando, apesar de meus esforços, não consigo gostar de uma obra nem um pouco, prefiro me calar. Os comentários negativos dariam, eventualmente, prova de minha argúcia, mas não diriam nada que prolongasse a obra de maneira a torná-la mais rica, para mim e para os outros. Uma exceção: quando o lugar para onde o autor me leva ou seu jeito de me pegar me indignam, aí grito.
Nesta semana, estreou "Árido Movie", de Lírio Ferreira. Os amigos que foram ao cinema comigo acharam o filme engraçado (e é mesmo), mas saíram criticando: segundo eles, o filme "se perde" entre várias histórias.
Há a história do paulistano que volta ao sertão de Pernambuco para enterrar o pai. Há a história de seus amigos, que querem acompanhá-lo e transformam essa nobre missão numa balada maconheira. Há a história da cineasta que percorre o árido para filmar a água que não tem. Há as histórias de vendeta e cobiça. Há a sabedoria do Meu Velho, que não se sabe se ilumina o sertão ou lucra com a seca. E por aí vai.
Ora, para mim, a curiosa variedade dos enredos é o interesse do filme, pois ela corresponde ao catálogo dos diversos caminhos pelos quais sempre se aventura nossa visão do sertão: a suposição idealizada e nostálgica de sei lá qual sabedoria, o fascínio pelo atraso e por suas tradições violentas, a sedução de um cenário insólito para nossas festinhas etc. Em suma, não é o filme, mas o sertão (seu tema) que se perde por esses caminhos, tornando-se tema inesgotável de ficções, romances, poemas e "instalações" de artistas modernosos.
Quem tem razão: meus amigos ou eu? Não sei, mas fico com a impressão de que eu saí ganhando.
Outro assunto. Nas últimas semanas, assisti, na HBO, a um seriado de seis capítulos, "Filhos do Carnaval", de Cao Hamburger. Faço um pedido à produtora, a Gilberto Gil, à HBO, aos donos de salas de cinema e ao próprio Cao Hamburger: por favor, não deixem que esse extraordinário seriado seja apenas a sorte de quem tem televisão a cabo, assina HBO e conseguiu liberar suas noites de domingo. Distribuam em DVD, passem de novo na TV aberta, transformem em dois filmes de três horas cada um. Dêem um jeito.
"Filhos do Carnaval" é uma das melhores obras dos últimos anos. Raramente a televisão e o cinema nacional conseguiram uma excelência narrativa e formal equivalente. Quem viu não esquece a agilidade da câmara e o uso de uma cor sem tons vermelhos, que dá ao filme uma qualidade dramática parecida com a do melhor preto-e-branco. A narrativa, sem psicologismos, é por isso mesmo estranhamente profunda. O resultado é cativante.
Mais um detalhe: Cao Hamburger demonstra que, quando um filme é grande, a questão de saber se ele "glamouriza" ou não seus personagens (pouco exemplares, de fato) é sem pertinência. Pois eles nos conquistam e nos fazem sonhar sem que tenhamos a menor vontade de ser como eles.
Nenhum comentário:
Postar um comentário