Acaba de sair "Renda Básica de Cidadania" (L&PM), de Eduardo Suplicy. O senador de São Paulo explica o projeto que ele defende e promove há anos.
A idéia é simples: uma renda mínima (suficiente para evitar a miséria) para todos os cidadãos, TODOS, indiscriminadamente.
Alguém dirá: o que vai fazer o presidente da Fiesp com, sei lá, R$ 300 por mês? Não seria melhor reforçar os programas de assistência, ou seja, oferecer R$ 600 a uma família em apuros e nada a quem não precisa?
Quando meu filho nasceu, em Paris, em 1981, fui beneficiado por um programa de alocações distribuídas a todas as gestantes que passassem pelos exames pré-natais recomendados. Ao receber o primeiro cheque (devia ser o equivalente de R$ 200), ficamos perplexos. O valor era inferior ao de nossas contribuições mensais (obrigatórias) ao próprio sistema do qual nos tornávamos beneficiários. Então, por quê?
Argumenta-se, por exemplo e com razão, que a distribuição de uma renda básica para todos evitaria o custo burocrático necessário para estabelecer quem precisa mesmo de ajuda.
Mas o verdadeiro interesse do projeto está no próprio princípio de uma renda que todos receberiam, simplesmente por serem cidadãos. As conseqüências mais relevantes são, ao meu ver, psicológicas.
1) Quem precisa de ajuda não deverá comprovar sua indigência, ele não estará recorrendo à "generosidade" social, apenas desfrutando de um direito. Será ajudado não por ser pobre, mas por ser cidadão.
2) O direito de todos a uma renda básica mudaria nossa maneira de conceber a comunidade na qual vivemos. Aquém das diferenças sociais e econômicas, mesmo extremas, nossa comunidade nos apareceria como um empreendimento comum, que reverte seus dividendos para todos.
Trata-se de uma prática política que afirma com força a dignidade de todos e, sobretudo, que instila em cada um a convicção de que existe uma coisa pública.
O programa valeria como uma terapia comportamental em que, mudando os atos, tenta-se modificar o estado de espírito do paciente: no caso, seriam modificados nosso entendimento e nossa experiência da coletividade. Não seria nada mal.
Somos expostos a uma massa de discursos de campanha. São palavras, logicamente, que querem nos seduzir, ou seja, são exercícios retóricos, em que o que importa é a arte da persuasão.
Uma das formas da persuasão consiste em invocar um princípio que os outros são compelidos a compartilhar. Se falo "em nome de tudo o que é sagrado e bonito...", por exemplo, sugiro que, ao discordar de mim, você estará desprezando o sagrado e o bonito. Claro, a gente não cai em qualquer armadilha, mas a persuasão trabalha às escondidas.
Ora, poucos dos discursos políticos que estamos ouvindo invocam, como princípio comum, a existência e a dignidade da coisa pública.
Há o discurso (sempre presente) que invoca genericamente a esperança: "Amanhã o Sol se despertará cantando".
Há o discurso paternalista, que invoca o amor pela autoridade de nossa infância: "Terão um pai bondoso que cuidará de vocês, meus pequenos". Em sua versão populista, ele invoca a generosidade para com o "povo sofrido". Ao ouvi-lo, sempre me lembro de uma inscrição que apareceu, em 1968, na fachada da universidade de Milão. Na época, existia um grupo "revolucionário" que se chamava "Servire il popolo" (servir ao povo). A inscrição dizia: "Eu não sirvo a ninguém, que o povo se sirva sozinho".
Há os discursos fracionários, que invocam o partido ou a classe acima do interesse público. Por exemplo, a deputada Angela Guadagnin não fez um discurso, mas dá na mesma: celebrou com passes de samba a impunidade de um colega de partido que trapaceou na contabilidade dos fundos de campanha (ela acaba de inventar, aliás, uma nova figura do Carnaval: a "trapassista").
Há os discursos que fazem apelo a princípios morais, fés religiosas, valores "tradicionais" etc. A relação disso com a gestão da coisa pública é um enigma.
Há o discurso nacionalista, que parece fazer apelo à nação como bem comum, mas, de fato, só esquenta identificações: "Ganharemos a Copa, o biocombustível é nosso, e Santos-Dumont foi o primeiro". Mas o que isso tem que ver com a gestão da coisa pública?
A ausência de uma retórica republicana é responsável, ao menos em parte, pela estranha situação atual, em que o caixa dois e o uso de fundos públicos para partido e campanha parecem "naturais" -inclusive aos olhos da gente.
Na quebra do sigilo do caseiro Francenildo Costa, espanta-me, além do abuso de poder, a suposição que a motivou: o caseiro só poderia ter sido pago por alguém. Aparentemente, nem Palocci nem seus assessores consideraram que um cidadão pudesse testemunhar por dever cívico, em nome da coisa pública.
A ausência da retórica republicana é crônica no Brasil, talvez com a exceção da Primeira República (o livro de Luiz Felipe D'Avila, "Os Virtuosos", que estou lendo, confirma essa tese).
Mas não é proibido mudar: afinal, quem está com o controle remoto na mão somos nós. Agora, cuidado: a retórica da coisa pública é chata, não dá jingle nem samba para passista.
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